sábado, 10 de maio de 2008

Persépolis: quando ser mulher é subversivo


Sergio Domingues


O belo filme de animação de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud denuncia a situação de opressão sobre as mulheres no Irã. Mas, também mostra que o machismo continua firme tanto lá, como cá.

A obra é uma adaptação de uma história em quadrinhos escrita e desenhada pela iraniana Marjane Satrapi. Um relato de experiências de sua própria vida. Junto com o francês Vincent Paronnaud, ela dirigiu a versão para o cinema, levando para um público maior os vários aspectos interessantes e bonitos da obra. Dentre estes, certamente, as contradições da condição feminina são as que merecem maior destaque.

Persépolis era o nome da antiga capital do Império Persa, que corresponde ao atual Irã. Como muita gente sabe, o Irã é muito conhecido pela rigidez de costumes, principalmente em relação às mulheres. Trata-se de um entendimento do islamismo que exagera no machismo, mesmo ele já sendo tão forte na tradição muçulmana em geral.

Mas, o que pouca gente sabe, ou já esqueceu, é que essa situação surgiu de uma revolução que ocorreu em 1979. E Persépolis não apenas mostra isso, como deixa visíveis muitas contradições daquele momento histórico. Na época, o país era governado por um ditador. Era o xá Reza Pahlevi. Um fantoche colocado no poder pelos Estados Unidos e Inglaterra, em 1941. De um lado, Pahlevi era um defensor da modernização capitalista. De outro, governou com mão de ferro reprimindo tanto os setores religiosos mais tradicionais do país, quanto socialistas e comunistas. Além disso, a política do Pahlevi em defesa dos capitalismos inglês e americano chocava-se com os interesses de parte dos empresários iranianos.

Uma combinação de grandes mobilizações populares e sindicais, greves, manifestações estudantis e revoltas de caráter religioso levaram à queda do xá, em fevereiro de 1979. Uma vitória conquistada graças à união entre muçulmanos xiitas, empresários descontentes e comunistas. Mas, como mostra o filme de Satrapi, na hora de formar o novo governo, a visão tradicionalista das lideranças xiitas prevaleceu. As idéias de liberdade e justiça social que a personagem Marjane via seu tio defender com tanta convicção foram derrotadas. Mas, não só. Os defensores dessas idéias foram presos, torturados e mortos aos milhares.

O fato é que não havia maiores divergências entre líderes muçulmanos, como o famoso aiatolá Khomeini, e os liberais que os apoiaram. Estes últimos só queriam o espaço para expandir seus negócios que lhes era negado pelo governo de Pahlevi. Já, os xiitas desejavam impor a lei santa de Maomé a toda a sociedade. Um acerto entre eles não foi difícil. Uns passaram a explorar mais, os outros a governar. As forças de esquerda falavam em fim da exploração. Portanto, não cabiam nesse acerto. A repressão que caiu sobre comunistas e socialistas foi uma lição dura. Uma demonstração de que a história não está “destinada a andar para frente” e que os aspectos religiosos de uma sociedade não são desprezíveis.

Para a menina Marjane, essa situação aparece no sofrimento de seus pais, sua avó e seu tio. Todos vendo o sonho de liberdade transformar-se no pesadelo da intolerância. O combate ao imperialismo transforma-se em proibição de ouvir músicas estrangeiras ou consideradas imorais. As roupas ocidentais, distantes da tradição local, são substituídas pelo uso obrigatório de roupas compridas e véus para as mulheres. Defender a igualdade entre homens e mulheres é cair em pecado. Até os homens adotam barbas como sinônimo de fidelidade ao novo regime.

Marjane não se rende. Sempre que pode, tenta desafiar a ordem. Tira o véu ou usa-o de forma não permitida, compra discos de rock no mercado paralelo, vai a festas em que se comete o crime de beber álcool, acusa suas professoras de mudarem fatos científicos e históricos para justificar a dominação muçulmana. Enfim, à medida que vai se tornando adulta, candidata-se rapidamente a acabar seus dias na prisão, como seu tio. Por isso, seus pais acham que é melhor que ela vá estudar na Áustria.

Longe do Irã, no entanto, Marjane também sofre. Já não tem que se esconder para se divertir, usa as roupas de que gosta e pode fumar e beber em público sem medo de ser apedrejada. Mas, além da tristeza causada pelas saudades de sua terra-natal, Marjane conhece o machismo em sua versão ocidental e vê a liberdade de consumo tornar tudo vazio e sem sentido. Depois de um terrível ataque de depressão, acaba voltando ao Irã. Entra num casamento sem futuro e reencontra todos os velhos problemas de opressão e intolerância. O comportamento esclarecido de seus pais e a sabedoria de sua avó só pioram o contraste com a repressão que reina na sociedade iraniana.

Resolve, então, partir para a França. O filme termina com a personagem principal se conformando à necessidade de viver longe de seu país e de seus familiares em nome de um pouco mais de liberdade. No entanto, ela parece saber que mesmo no ocidente moderno e cristão, a opressão somente muda de qualidade. E que querer fazer valer os direitos e liberdades para as mulheres ainda é altamente subversivo. Em qualquer parte do mundo.

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