Estamos unidos pelo sofrimento de cinco séculos de opressão. Por Hugo Blanco. Peru |
Ancha khuyasqay zapatista wayqepanaykuna, sonqoykuta makikichispi chaskiychis.
Qankuna, ñoqayku, llapa Abya Yalapi paqariq llaqtakuna huñusqan kanchis pesqa pachaj wata ñak’ariyninchispi. Kushkallataq kanchis ichaqa ch’ulla saqmalla hina hatariyninchispi chay ñak’ariyninchista wikapananchispaq.
Meus muito queridos irmãos e irmãs zapatistas recebam em vossas mãos nosso coração.
Vocês, nós e todos os povos originários de Abya Yala (América) estamos unidos pelo sofrimento de cinco séculos de opressão. Mas também estamos unidos por nosso levantamento com um punho só para derrotar essa opressão.
………………………….
Saúdo ao povo mexicano e aos representantes de outros povos do mundo reunidos no Festival da Digna Raiva em representação de diversas lutas pela sobrevivência do gênero humano. Quando eu era jovem lutávamos por uma sociedade justa, no entanto agora quando me perguntam por que sendo tão velho continuo lutando, respondo que quero muito aos tataranetos de Bush y gostaria que existissem, porque com o aquecimento global produzido pelo capitalismo, se não acabamos com ele, ele acabará com a humanidade em menos de cem anos.
Os povos indígenas do continente temos duas raízes culturais fundamentais: O coletivismo y o amor y respeito pela natureza.
Uma das expressões do profundo coletivismo de nossas culturas é que em quéchua, em aimara, em guarani e em línguas maias, existem duas palavras para dizer “nós”, uma delas para o “eu” coletivo e a outra que inclui o interlocutor.
No referente ao amor pela natureza, assinalemos que antes da invasão ninguém era dono da terra, era a gente a que pertencia à terra, não a terra a que pertencia à gente, “mapuche” significa homem da terra.
Os indígenas temos sofrido os ataques do capitalismo desde muito antes de que este assumisse o poder político. Galeano assinala que América descobriu o capitalismo em 1492. O chamado “descobrimento” se realizou na busca de especiarias, não as encontraram, mas sim encontraram ouro e prata. No Peru começaram com o pedido de resgate de Atahuallpa, depois com o saqueio de templos e depois com a exploração das minas realizadas com um sistema pior do que a escravatura, dado que metiam nos porões a adolescentes e adultos que não saiam senão já mortos, por isso muitos preferiam suicidar-se antes que ir à mina e as mães matavam seus filhos. Essa foi a causa da rebelião de Tupac Amaru que estremeceu o poder espanhol. Portanto, essa revolução foi anticapitalista.
O capitalismo arrebatou de suas terras a milhões de irmãos indígenas africanos para escravizá-los em América. Eles realizaram rebeliões exemplares no Haiti e outros países, nas selvas brasileiras reviveram sua organização coletivista nos chamados quilombos.
No Peru, México e outros países o capitalismo usou métodos de servilismo feudal para o cultivo da terra ao serviço da economia mineira.
No Peru republicano o guano da ilha, excremento de aves marinhas usado em tempos pré-colombinos para fertilizar nosso solo, foi saqueado e enviado à Inglaterra. Para isso arrancaram nativos da China.
A exploração da borracha na selva amazônica serviu para escravizar e massacrar aos nossos irmãos dessa zona. Alguns desses povos têm horror da chamada “civilização” e vivem em isolamento voluntário.
Façamos um pouco de história.
Ao sistema de fazendas que no México foi liquidado pela revolução zapatista de 1910 e na serra boliviana pela revolução de 1952, no Peru começamos a derrubá-la em 1962 na província de La Convencióon, Cusco. O fazendeiro outorgava em usufruto uma pequena parcela ao camponês em troca de que este trabalhasse sem custo para a fazenda. Organizamos sindicatos para fazer reclamações menores pela via legal, alguns fazendeiros aceitaram discutir enquanto que outros optaram pelo encarceramento de dirigentes. A essa intransigência respondemos com a greve que consistiu em deixar de trabalhar nos cultivos da fazenda, mas, continuar trabalhando as parcelas outorgadas pelos fazendeiros. Esta greve se generalizou a 100 fazendas. Na fazenda Chaupimayo declaramos explicitamente que era a Reforma Agrária, no resto continuava chamando-se greve, mas na prática era o mesmo. Em várias fazendas voltamos a trabalhar os cultivos do fazendeiro, mas para benefício do sindicato.
Os fazendeiros iracundos andavam armados disparando ao ar ameaçando matar “aos índios ladrões”, quando os camponeses se queixaram à polícia, ela respondeu que éramos ladrões e que o patrão tinha direito a matar-nos como a cachorros. Na assembléia geral de delegados da província concordamos organizar a autodefesa armada e fui nomeado por unanimidade para cumprir essa tarefa. Recebi a visita do futuro guerrilheiro Luis De La Puente que me perguntou quando sairíamos a combate, respondi-lhe que quando o determinasse o campesinado no seu conjunto; me disse que isso era incorreto, que era o partido que devia determinar isso. Respondi-lhe que respeitava sua posição, mas que discrepava dela. Foi por decisão do campesinado indígena que entramos em ação ante o recrudescimento da repressão governamental. Depois de alguns choques em que morreu gente de ambos os lados nos dispersaram e depois capturaram. Tive a sorte de ser capturado por um corpo policial rival daquele que se enfrentou conosco, por isso estou vivo. De La Puente se levantou três anos depois com seu método do foco guerrilheiro dirigido pelo seu partido, foi preso e assassinado.
O governo militar depois de ter dissolvido nossa resistência armada não se atreveu a obrigar aos camponeses a voltar a trabalhar para os patrões, legalizou só nessa província a Reforma Agrária feita por nós. Os camponeses do resto do país desenvolveram ocupações de terra que foram respondidas pelo governo civil seguinte com massacres. Os militares temendo a insurreição fizeram um golpe de estado e generalizaram a Reforma Agrária.
Detenhamo-nos para falar da diferença entre a ação armada realizada por um grupo revolucionário ou pela decisão democrática coletiva da população.
É a que existiu entre o partido de De La Puente e nosso movimento; a que existe no México entre o Exército Popular Revolucionário e o Exército Zapatista de Liberação Nacional; a que existe na Colômbia entre as FARC e o movimento indígena que está em ascensão; a que atualmente há no Peru entre Sendero Luminoso e o MRTA e o movimento indígena em ascensão. Pode se alegar que os movimentos indígenas atuais não estão armados, em primeiro lugar consideramos que o inimigo lhes ensinará que devem fazê-lo como o está demonstrando na Bolívia, em segundo lugar pode ser que alguns estejam começando a armar-se, mas consideram que ainda não chegou o momento de usar as armas.
Em Cuba e na Nicarágua não se podia nem respirar, por isso as pessoas apoiaram ao foco. Agora há margem para a organização popular inclusive na Colômbia.
Dizem que Sendero Luminoso é produto da cultura andina, mas Superman e Tarzã não pertencem à cultura andina senão à cultura ianque, a nossa é uma cultura coletivista, é o coletivo quem decide, não um grupo iluminado. A guerra interna de 20 anos no Peru não trouxe a libertação, custo a vida de 70.000 peruanos, a maioria indígenas e a derrota das organizações populares. Desde aí é que vem reorganizando-se a luta popular.
O neoliberalismo ataca a natureza com o aquecimento global, o mono-cultivo, os transgênicos, o “terminator” que é uma semente que não germina, os agroquímicos, o envenenamento de água e terra que produzem os minérios e a extração de hidrocarbonetos. Ataca o coletivismo solidário lisonjeando o super-individualismo egoísta e destruindo as comunidades indígenas.
A isto chama de “progresso”. É o progresso até a extinção da humanidade.
Contra esse ataque se levantam a população indígena peruana e o resto dos oprimidos. Não há partido nem caudilho, nem organização nacional que dirija essas lutas, cada uma se dirige a si própria com seus próprios métodos. Começam a contatar-se entre si, é um processo lento, mas avança. Há triunfos locais: O município de Limatambo foi governado pelas comunidades indígenas. Tambogrande expulsou à minera canadense Manhatan. Em Piura se realizou um plebiscito que apontou “Mina não, Vida sim”. Em Moquegua a população botou presos a polícias e um general. Na selva amazônica os nativos venceram o governo, com paus e flechas lutaram pela humanidade defendendo o pulmão do mundo.
No jornal “Luta Indígena” não damos a linha, colhemos as experiências de lutas e impulsionamos o contato entre elas.
Vemos que a população indígena de outros países também se levanta contra os ataques do neoliberalismo ao coletivismo e à natureza. Isso o vemos no Equador, Bolívia, Paraguai, Colômbia, Chile.
A existência do zapatismo é muito importante especialmente para a população indígena do continente porque durante 15 anos está mostrando que é possível a existência de um autogoverno indígena. Por isso na contracapa do último número de “Luta Indígena” temos publicado o chamado zapatista a este Festival Mundial da Digna Raiva.
(Fiz entrega de um exemplar ao representante do EZLN)
Continuaremos fazendo conhecer no Peru todas as lutas, especialmente indígenas, de outros países e todas as conquistas do zapatismo.
Há uma grande diferença entre os habitantes do campo e da cidade.
Os indígenas e outros camponeses vêm com muita angústia que os córregos desaparecem, que os rios se estreitam, que os nevados se derretem, a morte da água é a morte para eles. Os habitantes das cidades se inteiram das coisas importantes que sucedem no mundo através da televisão e os jornais que são dirigidos por quem estão aquecendo o globo que dizem muito pouco a esse respeito. Ademais estão rodeados de supermercados e não vêm aproximar-se a morte. Dar-se-ão conta do aquecimento quando tenham que comer cimento, cobre, ouro.
Reitero: Nossa luta atual não é só por uma sociedade mais justa senão pela supervivência do gênero humano. A única solução ao aquecimento global é que não sejam as empresas multinacionais senão a sociedade no seu conjunto quem determine se se abre uma fábrica ou se explora uma mina.
Versão em português: Raul Fitipaldi, de América Latina Palavra Viva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário