Em defesa da liberdade na rede
Por Antonio Martins, Glauco Faria e Renato Rovai na Revista Forum
Quando se fala da luta pela inclusão digital e a defesa do software livre no Brasil, impossível não lembrar o nome do sociólogo e professor da faculdade Cásper Líbero Sérgio Amadeu. E não é à toa. Foi coordenador do Governo Eletrônico da prefeitura de São Paulo na gestão Marta Suplicy, sendo responsável pela criação da rede pública de telecentros, considerado o maior programa de inclusão digital do país. Já no governo Lula, ocupou a presidência do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI) da Casa Civil, participando da criação da criação do Comitê de Implementação de Software Livre (CISL).
Saiu do governo em 2005, mas nem por isso sua atuação tem sido menos pública. Mantém um blog (samadeu.blogspot.com) e recentemente foi um dos criadores do blog coletivo 300 (trezentos.blog.br), com variados autores e temáticas atestando que “a vida não se limita as relações de mercado capitalistas”, segundo descrição da própria página eletrônica.
É em defesa da liberdade de criação e de conteúdo presente em iniciativas como essa que Amadeu, junto com outros inúmeros ativistas, se mobiliza contra o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) que criminaliza várias ações corriqueiras hoje na rede como downloads de textos, músicas e vídeos convertidos para formato digital e a gravação deste em meios eletrônicos como CDs, DVDs ou mesmo um MP3. “E não faz isso de maneira clara porque traz como agenda oculta os interesses da indústria de copyright, os interesses da indústria bancária. Ele tenta atender a interesses que são da associação anti-pirataria, da associação fonográfica norte-americana”, critica.
Na entrevista a seguir, Amadeu fala da importância da internet hoje como instrumento para estimular a diversidade cultural e democratizar a comunicação e também de como a estrutura das redes pode modificar o cerne do sistema capitalista. “Compartilhar na rede é mais eficiente do que guardar ou competir. Isso coloca em questão a idéia de eficiência na rede e a dificuldade do capitalismo industrial. A lógica da repetição já foi alterada para a lógica da invenção, vale mais ser capaz de inventar do que de reproduzir”, argumenta. Confira abaixo.
Fórum – Do ponto de vista desse novo processo da democratização das comunicações, se é que ele existe, como você situa o meio internet? Em que momento ele se encontra?
Sergio Amadeu – A internet é um arranjo comunicacional, não uma mídia qualquer, é um conjunto de protocolos sobre diversos aparatos que utiliza uma infraestrutura antiga de telecomunicações. A forma como ela é feita, a independência das camadas físicas da internet, gerou um ambiente muito propício à democratização das comunicações. Na internet você pode criar não só conteúdos, mas sim novos formatos e novas tecnologias. Ela é uma obra inacabada, a qualquer momento pode-se criar um novo arranjo comunicacional e isso é o fantástico, porque ela pode ser recriada pelos seus usuários.
Quero lembrar que ela foi concebida a partir de um projeto do exército norte-americano, que logo o abandonou por conta da sua radicalidade tão distribuída. Um dos grandes arquitetos da internet, o Paul Baran, dizia que só existem dois tipos de rede, centralizada e distribuída. A internet é uma rede de comutação de pacotes de informação distribuída e isso faz uma diferença brutal.
O modo gráfico da rede, aquele que todo mundo confunde com a internet, que é a web, foi criado no final dos anos 80 e passou a ser popularizado com um interpretador do protocolo, que é o browser, a partir de 1992 principalmente e isso foi fundamental porque gerou os usos que a maior parte das pessoas tem.
E outras criações aconteceram: a voz e a imagem sobre IP e isso foi revolucionando o próprio uso da internet, portanto, eu digo, pra eu criar algo na internet não peço autorização pra ninguém. Para se criar alguma coisa no mundo anterior, da mídia de massa, você tinha que estar dentro de uma empresa, de uma corporação. Hoje não, você junta três meninos geniais e cria o Twitter, que vira uma nova aplicação que não é qualquer aplicação, é uma nova rede.
Você tem essa capacidade de criação contínua nesse espaço. É isso que está sob ataque, essa capacidade de criação. Porque isso incomoda aqueles que chegaram na rede, não acreditaram nela e agora tentam dominá-la. Quem são eles? É a velha indústria cultural, a indústria do copyright, aqueles que viviam de vários tipos de intermediação. Chegam em uma rede distribuída onde a intermediação é a própria rede.
Antes a nossa briga por comunicação era pelos canais de fala, na internet eu tenho uma queda das barreiras para me tornar um falante. O meu problema agora é outro, é a atenção, como obtenho essa atenção. Isso é completamente diferente de não poder falar. Alguns dizem que a coisa continua a mesma, o grande capital tem mais condições de ser mais ouvido. Não é verdade. A história recente da internet mostra que os maiores depositórios surgiram fora das grandes companhias de entretenimento, a própria CNN, o Google virou grande porque apostou que a internet ia crescer tanto que você teria no buscador o elemento estratégico da rede. O Google concentra muita atenção e acessos, o que não é bom, porque gera um elemento de poder muito forte.
Fórum – Justamente por isso, pelo Google ser um grande concentrador de serviços, mesmo quem não usa buscador, utiliza algum serviço relacionado. Isso pode ser uma ameaça?
Amadeu – Pode. O Google se torna uma grande corporação, coisa que não era, tem que contratar executivos, traz uma linguagem que não é da rede... Continua uma indústria que é da rede, como o Yahoo, que nasceu ali também, mas ao ter que lidar no mercado capitalista começa a existir o jogo de poder e aí é algo perigoso. O Google ainda resiste quando o governo Bush pede uma relação de todas as buscas feitas em alguns estados dos EUA e denuncia isso na opinião pública. Em compensação, segue a Microsoft na China, que fez tudo o que o governo chinês quis pra ganhar o mercado local. Daí faz-se um cálculo de empresa, para ser acessado na China tem que aceitar as regras da ditadura chinesa.
O Google vai concentrando informação e, ao mesmo tempo em que é uma empresa, vai aliando a vivacidade das redes com a lógica empresarial e se torna uma grande corporação. O usuário abre o seu Gmail e faz uma busca e a empresa sabe quem está fazendo a busca. Se ele abrir o Orkut, faz isso sem precisar de senha, ele já está ali dentro. Repare, há um grande risco de essa empresa ter o controle do seu perfil e analisar o seu comportamento. Ah, mas vão fazer que tipo de uso? Não sei, mas que podem fazer uso daquilo que colocamos como um risco para a liberdade e a navegação sem vigilância, então não é um exagero quando alguns teóricos, como o [Gilles] Deleuze, falavam que estávamos entrando em uma situação de sociedade do controle. A diferença da sociedade de controle para uma sociedade disciplinar é que esta introjeta em você o medo; o medo da prisão, o medo de ser vigiado. Hoje não, a rede que te liberta é a rede que te vigia. Dois em um.
Uns amigos me ligaram: “pô, você já cadastrou o seu celular no Google Latitude?”. Respondi “claro que não”. Por que não? Porque não quero que ninguém controle onde estou, as operadoras já sabem onde estou agora porque o meu sinal evidencia. Mas imagine juntar todas essas informações em um só lugar. Eles insistiram dizendo”mas você pode escolher os amigos que podem te ver”. Mas o problema não são os amigos, é a empresa que vai ter acesso a isso.
Por outro lado, o Google incentiva práticas muito boas na rede, a gratuidade, a colaboração, no entanto há esses grandes riscos que tememos e não é algo de paranoicos. A própria comunidade de softwares livres tem várias restrições à forma como o Google trabalha com os códigos, alguns eles liberam, outros não. Os estratégicos ficam guardados, são segredos de negócios.
Fórum – Em relação a essa lógica de que os grandes sempre dominam, se houver muita gente partilhando das informações, colaborando, as corporações também de certa forma não terão que ser mais abertas para poderem prosperar?
Amadeu – Acredito nisso, mas creio em outra coisa. não concordo com a teoria da cauda longa, acho que ela não expressa bem o que é a internet. A internet é mais um maremoto, oscila o tempo todo porque a qualquer momento um grupo que não estava no jogo cria uma ferramenta nova e dá certo. A todo momento se tem essas alterações. Pode-se ver isso no fenômeno dos blogs, a idéia de micro-audiência é forte, mesmo os grandes conseguem visibilidade porque articulam essas micro-audiências, vão fazendo clusters. A internet viabiliza uma profunda diversificação sócio-cultural e é isso que está em disputa. O futuro da internet não está claro, mesmo se os grandes vão ganhar ou perder. Estamos no início desse processo de distribuição e muitos grupos que até o início dos anos 2000 não acreditava na internet chegaram tentando impor seus controles.
Alguns pontos problemáticos para o futuro da internet dizem respeito a quem controla a infraestrutura de alta velocidade, as operadoras de telecomunicação. São poucas no mundo e a tendência é reduzir cada vez mais. Há duas empresas chinesas, a Vodafone, a Telefônica, algumas americanas... são poucas que controlam a estrutura física pela qual os fluxos existem. Então repare o poder que eles têm. Isso não é teórico. Há inúmeros casos em que interferem na comunicação.
A grande briga hoje nos EUA é pela neutralidade na rede: as camadas lógicas da internet até hoje não recebiam interferência de quem controlava a camada física, e isso garantia que desde que uma camada se comunique com a outra você pode criar qualquer coisa, inclusive o peer to peer (P2P), algo que as operadores de telefonia odeiam porque tem que dar mais banda e estão perdendo dinheiro. O próprio voz sobre IP afetou a rentabilidade dessas empresas, nenhuma empresa séria hoje que tem conhecimentos tecnológicos vai ligar suas filiais por telefonia fixa, vai usar voz sobre IP, é muito mais barato. Isso tirou dinheiro das operadoras, que começaram a ponderar as possibilidades de se fazer do ciberespaço um espaço para o mercado. No mercado, você tem precificações diferentes, dá-se velocidade pra quem pagar mais. Assim, alguns pacotes de informação passam, outros não passam. Isso viola o princípio histórico de neutralidade de uma camada sobre a outra, porque impõe a discriminação de pacotes de informação a partir da aplicação, do IP de origem e do IP de destino. Eles querem implantar uma relação de mercado no cibereespaço.
Fórum – Mas porque eles não têm conseguido isso?
Amadeu – Têm conseguido em alguns lugares como nos EUA; aqui no Brasil isso é ilegal porque não teria sentido olhar o pacote de informação porque você estaria violando a velocidade. Com a comunicação em dados, o que se transfere na rede? Pacotes de informação usando protocolos de internet, o TCP-IP principalmente. Aí, o que acontece? Alguns desses pacotes levam aplicações P2P, é muito fácil identificar uma aplicação desse tipo. E aí, o que a Telefônica faz? Usa um farejador de pacotes que bloqueia o p2p e voz sobre IP, privilegiando o que for da empresa. O Skype, que não tem acordo com ela, atrasa-se o pacote da voz, por isso ocorre o delay. Isso é feito propositalmente pelas operadoras de telefonia. Eles dizem que não, você tem que ter a prova pra levar pra Anatel, mas quando você está baixando uma mídia, música ou um arquivo qualquer em uma rede torrent, que é uma rede P2P, começa a ver sua velocidade porque eles têm softwares que regulam, sabem que você está usando uma rede p2p e começam a reduzir sua banda. Isso tudo, no Brasil não é legal, mas muitas vezes as pessoas não sabem que isso está acontecendo com elas.
Esse é um grande imbróglio, quem controla a infraestrutura pode controlar os aplicativos que uso e até o conteúdo. Tem um caso que considero emblemático, aconteceu em um show da banda Pearl Jam em 2007, um ano antes da eleição do Obama. Eles faziam um show no Papalooza, que estava sendo transmitido via internet e o vocalista pega uma música do Pink Floyd, Another Brick on the Wall e modificam um verso para Hey Bush leave the world alone. De repente some o som a AT & T achou por bem censurar a transmissão porque estavam falando mal do presidente dos EUA. Não é brincadeira. Esse grupo de jovens entrou pela campanha pela neutralidade na rede porque sentiu na pele o poder de quem controla a infraestrutura.
Outro problema é a indústria do copyright, que acredita piamente que se conseguir impedir a existência do P2P irá se revigorar e as pessoas vão deixar de compartilhar arquivos digitais. Vai de encontro ao que o professor Henry Simon nos ensina, que a internet trabalha com computadores e computador é uma máquina de copiar em alta velocidade. Na hora em que você aumenta o processamento dela, aumenta a capacidade de copiar, ela trabalha com copy de dígitos. Na hora que você põe uma máquina de copiar em alta velocidade, daí diz “não copiem”? É um contrasenso.
A própria internet é um meio técnico para compartilhamento, você pode fazer virar outra coisa, mas ela é afeita ao compartilhamento. Em sendo assim, ela viola o antigo intermediário. Por exemplo, pega-se um grupo no Brasil, que é o Teatro Mágico, hoje coloca milhares de jovens em seus shows sem aparecer no rádio ou na televisão. Por que? Com as músicas liberadas na internet eles conseguem ter sucesso, vender CDs em seus shows – o que é algo inusitado - e tem milhares de fãs, conseguem viver praticamente só de apresentações. A rede eliminou a distância entre o fã e a banda porque também caiu o custo do aparato de produção. Mas gravar uma música e por na rede com qualidade é muito caro... Era, não é mais. O que era muito caro, que é distribuir, se resolve na rede, que é o maior distribuidor. Se você tem uma banda de garagem hoje não vai atrás de uma gravadora com a caneca na mão, vai fazer uma rede social, um site, um blog, subir suas músicas e botar na rede. Se você for bom, vai criar um vínculo com várias pessoas. E é essa jogada que a indústria do copyright não entendeu. No caso da música, o antigo modelo perdeu totalmente o sentido.
Outros intermediários estão sendo afetados. Um deles é o jornalismo, repare na eleição do Irã agora. Qual o melhor lugar para acompanhar? No Twitter, no Orkut e nos blogs. Não é entrando na CNN.
Fórum – Fazendo de novo o papel de advogado do diabo, isso também não pode ser pernicioso, um Twitter – que adiou um período de manutenção por causa da situação no Irã -, ou empresas como o Google ou uma Microsoft interferindo no processo político de um país?
Amadeu – Se há grandes corporações onde o fluxo de comunicações só passa por elas, há riscos, como disse, mas não foi isso que aconteceu. Os blogs, com plataforma em Wordpress, estão em vários servidores. O Twitter, se de repente quiser silenciar sob pressão, pode. No caso da comunicação, temos um problema, tudo que concentra os fluxos e tem poder sobre eles é um risco. Isso não é uma paranóia, é um alerta para que possamos exercer um controle sobre isso.
Nós precisamos ter também uma distribuição das infraestruturas de comunicação, não podem estar concentrada em poucos grupos. O ideal é que tenhamos infraestruturas coletivas, públicas, estatais, baseadas no commons, no comum. Porque quando ela está nas mãos de coletivos, tem condições de ser efetivamente democrática porque já que estes coletivos sofrem a pressão da sociedade, são porosos frente aos interesses dela.
Fórum – O que significaria concretamente isso?
Amadeu – Ninguém nos impede de criar um mecanismo de busca eficiente. Não criamos porque não sentimos, nós, a sociedade, necessidade disso. A hora em que as pessoas começarem a perceber que isso é um problema, não tenha dúvida que as alternativas, tecnicamente, serão articuladas. Veja bem, quem é que no princípio assegurou essa grande criatividade? É essa lógica que mais tarde se chamou de open source, a lógica do compartilhamento. Quem é o dono da internet? Ela foi construída como uma obra coletiva, vários protocolos elaborados, grupos de engenheiros trabalhando com a participação de hackers, amadores, não existe uma empresa que diz que criou. E a internet funciona, é uma obra coletiva. Boa parte da comunidade que construiu isso está na comunidade de software livre.
Fórum – As comunidades de software livre não tem um certo hermetismo, ou seja, só quem conhece mesmo pode lidar com isso?
Amadeu – Sim, mas existe uma coisa do software livre que eu tenho que defender. O preço da liberdade é o conhecimento, você deve dominar aquilo que você usa. Isso é uma lógica hacker extremamente importante que está no coração do compartilhamento e do software livre. E é essa lógica que incentiva que jovens cada vez mais participem dessas comunidades, dediquem parte de suas vidas para compartilhar, tenham motivação. Veja que coisa fantástica: a China tenta bloquear informações de lá de dentro para o mundo, a comunidade de software livre consegue colocar dentro de um pendrive um software, o Tor, que permite acessar uma rede anônima que faz com que uma pessoa permaneça invisível dentro dos filtros da muralha digital que a ditadura chinesa colocou. Você tem um trabalho de jovens que são técnicos, capazes, mas tem um espírito de liberdade muito importante, o que contribui para a diversidade cultural.
Fórum – Você acha que de alguma forma as redes estão modificando o capitalismo ou podem criar novas possibilidades de modelos econômicos?
Amadeu – Em um capitalismo em que os bens imateriais adquirem cada vez mais importância, o sistema entra em crise afetando, portanto, todos os processos de medição de valor. Como você valora o trabalho de um programador, como você sabe que uma proposta criativa vale mais que outra? É muito complicado isso e há uma série de dificuldades para o capital trabalhar com a lógica do trabalho imaterial, mas a mais difícil de todas talvez é que o ele não sofre com as restrições de outros bens, não tem escassez e nem desgaste no uso. A questão é eu multiplicar um software, uma música, o custo de eu multiplicar isso para mil ou milhões é similar. O custo marginal da cópia é zero, se resume ao custo do suporte ou do tempo de cópia. É uma outra realidade, isso muda completamente o cenário.
Portanto, como ressalta o economista americano Steven Weber, o bem imaterial é chamado de não-rival, ou seja, se eu passo uma cópia desse software pra milhares de pessoas, todas podem usar ao mesmo tempo. Mas o bem imaterial não é só não-rival, é anti-rival, pois é melhor compartilhar porque quanto mais compartilho, mais ele cresce. É o contrário do pneu de carro que quanto mais uso, mais desgaste tenho. Se eu codifico informações e repasso pra centenas de pessoas, a possibilidade de ele melhorar é muito maior do que se ele ficar só comigo. Compartilhar na rede é mais eficiente do que guardar ou competir.
Isso coloca em questão a idéia de eficiência na rede e a dificuldade do capitalismo industrial. A lógica da repetição já foi alterada para a lógica da invenção, vale mais ser capaz de inventar do que de reproduzir. Isso, em um ambiente de rede, com compartilhamento de bens imateriais, é mais eficiente do que o bloqueio. A pergunta é: isso vai alterar a lógica de reprodução do capital? Não sei a resposta, porque o capitalismo tanto pode incorporar isso quanto essa lógica pode arrebentar seu núcleo fundamental. É por isso que indústrias como as do copyright atuam de forma tão contundente mundo afora, porque acreditam que, com a força do Estado, vão conseguir inverter essa situação. Estamos vivendo um grande embate entre as forças que apostam no compartilhamento dos bens imateriais e aqueles que querem manter o processo de apropriação privada.
Fórum – Nesse contexto, cabe perguntar como se posiciona aí o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo e como surgiu a idéia de apelidá-lo de AI-5 digital.
Amadeu – O senador Azeredo conseguiu aprovar em julho do ano passado um projeto substitutivo que reunia várias propostas sobre crimes na internet. Esse projeto tem uma redação extremamente ambígua e genérica e quer criminaliza práticas corriqueiras na rede. E não faz isso de maneira clara porque traz como agenda oculta os interesses da indústria de copyright, os interesses da indústria bancária. Ele não quis fazer uma lei para combater a pedofilia, até porque existe lei que criminaliza a pedofilia e a pornografia infantil na internet. Ele tenta atender a interesses que são da associação anti-pirataria, da associação fonográfica norte-americana... Podem até pensar que isso é ilação, mas há indícios disso.
Mas violar o copyright já não era crime caso você copie? Isso é discutível, se você baixa um filme na rede e não comercializa isso é muito difícil que você seja considerado um criminoso. Na França, existe legislação sobre copyright, mas por que o Sarkozy tentou fazer uma lei para proibir o P2P, declarada inconstitucional mais tarde? Ele atribuía ao provedor a responsabilidade de vigiar os usuários da internet e dizia que se o cara baixasse uma música protegida por copyright poderia ficar sem conexão de três meses a um ano. O que eles querem com isso? Inibir o P2P, já que não conseguem com aquelas propagandas horríveis, pois a reforma moral não emplaca e as pessoas sabem que copiar não é roubar. Apesar de o Ali Khamel [diretor-executivo de jornalismo da Rede Globo] ter feito um artigo afirmando que “o que chamam de liberdade é um roubo”, porque ele sabe que vai ter que somar forças com essa indústria de copyright. Hoje, as leis de copyright não são suficientes, então querem fazer dos provedores polícias privadas. Como eles vão saber que o artigo P2P que estou baixando é protegido? Só olhando, violando descaradamente a privacidade.
O que houve na França veio para o Brasil por meio do senador Azeredo, cujo projeto estamos combatendo desde julho do ano passado. Vários ativistas tentaram evitar a aprovação e trocando mensagens, achamos que podíamos fazer um abaixo-assinado de professores pedindo que os parlamentares não aprovassem o projeto. Um ativista do Rio de Janeiro chamado João Caribé propôs que puséssemos o abaixo-assinado no Petition online e um mês depois tinham mais de cem mil assinaturas. A partir daí muitos blogs, blogueiros, redes sociais, começaram a aderir ao movimento.
O projeto do Azeredo quer que os provedores cumpram efetivamente o papel de polícia privada, conforme um regulamento que não sabemos qual é. Estamos batendo no projeto, mas queremos que sejam tirados alguns artigos como o 285 a 285 b e o artigo 22. Ele é muito mal redigido e sem estes ele será inócuo.
Fórum – Estão tentando criminalizar o uso da internet sem que se estabeleçam os direitos do internauta. Como fazer com que essa questão seja trazida à tona de forma institucional?
Amadeu – Acho que o melhor momento é na Conferência de Comunicação. É uma pauta nova, mas devemos ter direito à comunicação sem vigilância, direito à acessibilidade, às redes abertas, isso tem que estar lá em um projeto. Se esse projeto sai de uma conferência é mais forte ainda porque a indústria de copyright vai combater os direitos do internauta, os vigilantistas também. Precisamos ter o apoio da sociedade organizada para colocar essa pauta. A partir do momento em que você tem uma lei de cidadania digital, põe o pé na porta de projetos absurdo que aparecem no Congresso Nacional que tratam a internet como uma velha mídia.
Fórum – E o nome AI-5 digital...
Amadeu – Sim, por que o projeto do senador Azeredo é corretamente é chamado de AI-5 digital? Dois jovens vieram me entrevistar para o IG e o que estava filmando falou “poxa, mas isso é um AI-5 digital”. Era a época do aniversário do AI-5 e eu comentava que, quando se transforma exceção em regra e todo mundo passa a ser considerado culpado até que se prove a inocência, tem-se um Estado de exceção. Quando você fala que tem que colher e guardar dados de todo mundo, afirma que todo mundo é suspeito. E serão criadas dificuldades para tele-centros, programas de inclusão digital... Você vai em um café, em uma cidade que tem rede aberta, e o gestor da rede vai ser responsabilizado. Ninguém vai querer abrir a rede.
Tem outro princípio que queremos garantir: a rede é inimputável. A rede é como o motorista de táxi: pode eventualmente levar o criminoso ao local do crime, mas não pode ser culpabilizada como cúmplice. Do contrário, o taxista vai ter que pedir RG, CPF, documentos para cada passageiro que transporta. Isso não existe. E é isso que esses vigilantistas querem que seja feito.
Antonio Martins, Glauco Faria e Renato Rovai
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