"O que eu descrevia continua sendo certo. O sistema
internacional de poder faz com que a riqueza siga sendo alimentada
pela pobreza alheia. Sim, as veias da América Latina ainda seguem
abertas", diz Eduardo Galeano em reportagem publicada no jornal
espanhol El País. O escritor uruguaio recebeu na semana
passada, em Madrid, a Medalha de Ouro do Círculo de Belas Artes.
Entrevista de Javier Rodríguez Marcos (El País), traduzida por IHU Online
Com cabeça de senador romano e consciência de tribuno da plebe,
Eduardo Galeano sempre tem presente uma frase de José Martí: "Todas
as glórias do mundo cabem em um grão de milho". Ele diz
isso porque, na semana passada, deram-lhe, em Madri, a Medalha de
Ouro do Círculo de Belas Artes. "É uma alegria, claro. Não
pratico falsa humildade, mas também não me esqueço de Martí e
digo a mim mesmo: ei, tranquilo, devagar pelas pedras". No dia
seguinte, além disso, recebeu um prémio da ONG Save the Children.
Aos 69 anos, o escritor uruguaio é uma pedra no sapato dos
vencedores da história, uma espécie de best-seller furtivo da
esquerda. No ano passado, durante a digressão espanhola de
apresentação de seu último livro, "Espelhos. Uma história
quase universal" (L&PM Editores, 2008), ele lotou cada salão
de actos em que pisou, chegando inclusive a transbordar o Auditório
de Galícia, em Santiago de Compostela, com capacidade para mil
pessoas. No próximo dia 14, ele encerrará esta nova visita à
Espanha com uma leitura de sua obra no Auditório Marcelino Camacho
de Comisiones Obreras, em Madrid.
Galeano conseguiu levantar paixões com livros sem género
preciso, mas escritos com um estilo fragmentário e seco que ele opõe
à "tradição retórico do peito estufado. Aprendi a desfrutar
dizendo mais com menos", diz, no seu hotel madrileno de sempre,
a um passo da Puerta del Sol. Ali, ele conta que o seu mestre, Juan
Carlos Onetti, "que não dava conselhos", disse-lhe algo
que não esqueceu: "Como ele era bastante mentiroso, para dar
prestígio às suas palavras, ele costumava dizer que eram provérbios
chineses. Um dia me soltou: 'As únicas palavras dignas de existir
são aquelas melhores do que o silêncio".
O autor de "Dias e noites de amor e de guerra" (L&PM
Editores, 2001), briga há anos contra o silêncio. Agora, luta
também contra o medo. Mais do que as eleições presidenciais que
ocorrem no Uruguai no dia 25 de Outubro, interessam-lhe os dois
plebiscitos que ocorrerão nesse dia. Um pretende derrogar a lei que
impede o castigo contra os militares da ditadura: "O Estado não
pode renunciar a fazer justiça porque a impunidade estimula o
delito". Há 20 anos, foi realizado um referendo com o mesmo
objectivo. E com um resultado ruim. "Lançaram toneladas de
bombas de medo", conta o escritor. "Dizia-se que, se a lei
fosse anulada, a violência voltaria, e as pessoas votaram
assustadas".
Aquele primeiro plebiscito dos anos 80 foi promovido por uma
comissão, na qual, juntamente com Galeano, estava Mario Benedetti.
Desde a morte deste, em Maio passado, o seu amigo faz parte da
fundação que herdou o legado do poeta para promover a literatura
jovem: "Era um insólito caso de escritor generoso. O nosso
grupo é uma agremiação egoísta que ocupa a jaula dos pavões
reais. A cada um dói o êxito do outro. Ao Mario não". Com
relação às reclamações do irmão de Benedetti, incomodado com o
testamento, Galeano é diplomático: "Isso está superado.
Ninguém se salva das confusões de herança".
O dinheiro misturado com as confusões leva inevitavelmente ao
futebol, um assunto ao qual o escritor dedicou centenas de páginas,
dentre elas as que formam um clássico da literatura desportiva:
"Futebol ao sol e à sombra" (L&PM Editores, 2004). É
obsceno pagar milhões de euros por um jogador? "O futebol
profissional é a indústria de entretenimento mais importante do
mundo. Além do mais, é um desporto que parece religião: a religião
de todos os ateus. O que é preciso ter claro é o que o Machado
dizia: agora, qualquer ignorante confunde valor e preço".
Por outro lado, no anedotário diplomático internacional ficou
gravado o facto de que Hugo Chávez presenteasse Obama com o livro
mais popular (30 edições em inglês) do autor montevideano, "As
veias abertas da América Latina" (Ed. Paz e Terra, 2007, na 46ª
edição em português), um ensaio de 1971 que o seu próprio autor
descreve como "uma contra-história económica e política com
fins de divulgação de dados desconhecidos". E acrescenta: "O
que eu descrevia continua sendo certo. O sistema internacional de
poder faz com que a riqueza siga sendo alimentada pela pobreza
alheia. Sim, as veias da América Latina ainda seguem abertas".
Galeano não acredita que o presidente dos Estados Unidos tenha
lido o livro. "Duvido. Foi só um gesto. Além disso, a edição
era em espanhol". A eleição de Obama pareceu-lhe uma vitória
contra o racismo, mas lhe decepcionou que ele aumentou o orçamento
da Defesa: "Os políticos mais bem intencionados acabam presos a
uma maquinaria que os devora". E o que lhe parece a sua política
para com a América Latina? "Ele tem boas intenções, mas há
problema de treino. Os norte-americanos estão há um século e meio
fabricando ditaduras, e, na hora de se entender com países
democráticos, eles têm dificuldades. O desconcerto diante do que
ocorreu em Honduras é uma amostra".
O segundo plebiscito que espera o escritor ao voltar para casa
quer outorgar o voto aos uruguaios que não vivem ali, "uma
quinta parte da população!". Ele mesmo teve que se exilar e
sabe o que é sobreviver sem direitos: "Não tinha documentos,
porque a ditadura os negava. Quando eu vivia em Barcelona, tinha que
ir à polícia todos os meses. Faziam-me repetir os formulários e
mudar cem vezes de guiché. No final, no campo da profissão, eu
colocava: 'escritor'. E entre parênteses: 'de formulários'".
Ninguém se deu conta.
Texto de Javier Rodríguez Marcos, publicada no jornal espanhol El
País, 06-10-2009.
Tradução de Moisés Sbardelotto, para o IHU
(Instituto Humanitas Unisinos).
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