Os zapatistas e as múltiplas formas de resistência |
Guga Dorea - Correio da Cidadania | |
|
|
"Para começar, te rogo não confundir a resistência com a oposição política. A oposição não se opõe ao poder, senão a um governo, e sua forma lograda e completa é a de um partido de oposição; enquanto a resistência, por definição (agora sim), não pode ser um partido: não é feita para governar, senão para ... resistir".
Com esse texto, de Tomás Segovia, que é chamado de Alegatorio e foi
escrito no México em 1996, o subcomandante Marcos praticamente encerra
uma espécie de manifesto político desenvolvido por ele cujo título é "A
Quarta Guerra Mundial já começou".
Nesse manifesto, Marcos divide a sua visão em relação ao neoliberalismo
em sete peças. O texto do Segovia faz parte da última peça, cujo
conteúdo se refere a possibilidades latentes de resistências ao regime
capitalista. Chamada por ele de "As bolsas de resistência", a peça
refere-se a um "choque" intermitente entre "a aparente infalibilidade
da globalização" e a "teimosa desobediência da realidade". São bolsas
"de todos os tamanhos, de diferentes cores, das formas mais variadas.
Sua única semelhança é sua resistência à ‘nova ordem mundial’ e ao
crime contra a humanidade produzido pela guerra neoliberal" .
Mas como pensar em resistências concretas quando o imaginário
capitalista atravessou por todos os cantos da subjetividade humana,
reprimiu as singularidades e impôs o UNO, arrastando pretensas
identidades e tradições culturais? O capitalismo contemporâneo, dentro
dessa perspectiva, tratou de contaminar o que Guattari chamou por
"territorialidades humanas tradicionais".
Em contrapartida, reiterou sempre Guatarri, estamos presenciando um
processo conhecido como heterogênese, ou seja, novas formas de conceber
a vida estão sempre prontas a romperem o cerco reterritorializante do
sistema. Retornando à peça 7 do quebra-cabeça zapatista, Marcos aponta
não para uma resistência supostamente unificada, mas para múltiplas
resistências que podem se interconectar entre si, sem que uma se
sobreponha ou seja subjugada pela outra.
"Ao tratar de impor seu modelo econômico, político, social e cultural,
o neoliberalismo pretende subjugar milhões de seres, e desfazer-se de
todos aqueles que não têm lugar em sua nova repartição do mundo. Porém,
resulta que esses ‘prescindíveis’ se revoltam e resistem ao poder que
quer eliminá-los. Mulheres, crianças, anciões, jovens, indígenas,
ecologistas, homossexuais, lésbicas, soropositivos, trabalhadores e
todos aqueles e aquelas que não só ‘sobram’, mas que também ‘molestam’
a ordem e o progresso mundial, se revoltam, se organizam e lutam.
Sabendo-se iguais e diferentes, os excluídos da ‘modernidade’ começam a
tecer as resistências contra o processo de destruição/despovoamento e
reconstrução/reordenamento levado adiante, como guerra mundial, pelo
neoliberalismo".
A frase "sabendo-se iguais e diferentes" é a mais pertinente. Como deve
ser conceituado o tema "diferença" na atual órbita contemporânea
mundial? É uma questão complexa que merece um pouco de atenção antes de
continuarmos no nosso instigante quebra-cabeça planetário. Mas por
enquanto fiquemos com uma carta remetida para os participantes do Fórum
Nacional Indígena. Nela, o Comitê Clandestino Revolucionário Indígena
proclamou o seguinte dilema em relação ao racismo:
"Não podemos combater o racismo praticado pelos poderosos com um
espelho que apresenta a mesma coisa, só que ao contrário: a mesma falta
de razão e a mesma intolerância, mas agora contra os mestiços. Não
podemos combater o racismo contra os indígenas praticando o racismo
contra os mestiços. (...) No mundo que os zapatistas querem cabem todas
as cores de pele, todas as línguas e todos os caminhos" .
É nesse contexto que o EZLN, sobretudo através dos comunicados do
subcomandante Marcos, tem resgatado esse tema bastante atual e
pertinente para o Brasil. Ao defender a polêmica hipótese de que a
defesa da diferença não significa negar a importância da igualdade
social, os zapatistas estão redimensionando os conceitos do que é ser
diferente e igual no mundo contemporâneo, o que pode nos remeter
inclusive à velha dicotomia antropológica entre etnocentrismo e
relativismo.
Como definir entre um etnocentrismo unilateral, no qual o mais forte
impõe seus interesses ao mais fraco, e um relativismo complacente que
reitera a intocabilidade das diferenças, isolando culturas em espécies
de guetos incomunicáveis e, não poucas vezes, geradores de sangrentas
guerras de verdades contra verdades?
Há dois lados de uma mesma moeda. A cultura ocidental globalizada, ao
impor o princípio da homogeneização ou do monoculturalismo, acabou
gerando, no seu contra-fluxo, diversas e múltiplas manifestações
heterogêneas, nem sempre inéditas no contexto da historiografia
mundial, que resistem a essa busca por uma eventual massificação
globalizante.
O capitalismo contemporâneo, é impossível negar, está em toda a parte.
Contaminou o tempo e os espaços geográficos reprimindo, na medida do
possível, qualquer possibilidade da emergência de desejos singulares,
sejam eles coletivos ou individuais. A partir do pressuposto de que a
chamada globalização do mercado tornou-se um fato irreversível, o
principal nó a ser desatado é como deve ocorrer a inserção de um país
como o México no contexto mundial.
Diante de todo esse panorama, como criar novos mecanismos políticos,
econômicos, sociais e culturais para que o planeta não fique
exclusivamente nas mãos do mercado, que é inevitavelmente excludente. O
surgimento de novos grupos, que atuam paralelamente ao Estado, de uma
maneira transversalizada, talvez venha a se tornar o primeiro passo
rumo a uma globalização não perversa, que não busque a destruição das
diferenças humanas em nome de uma fictícia igualdade, abrindo possíveis
espaços e brechas para novas singularidades, novos modos de ser, que
devem ser planetários, mas sempre se levando em consideração as
diferenças localizadas.
(2) idem, pg 121 (3) Id, pgs 221& 222. (4) Id, pg 150 & 151.
Guga Dorea é jornalista e sociólogo. Atualmente é integrante do Instituto Futuro Educação e colaborador do Projeto Xojobil.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário