segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Entrevista de Eduardo Galeano...

Estamos tentando recuperar nossa própria voz

 
Por Fania Rodrigues
 
Um dos mais respeitados escritores e intelectuais da América Latina, Eduardo Hughes Galeano recebeu a Caros Amigos numa tarde de segunda-feira, no Café Brasilero, em Montevidéu. Aos 69 anos fala, em fluente português, sobre sua literatura, o amor pelos cafés e, claro, sobre política. Uruguaio de nascimento (1940), latino-americano
por devoção e cidadão do mundo por paixão, quando criança, sonhava em ser jogador de futebol. “Era uma maravilha jogando, mas só de noite, enquanto dormia”. Melhor assim. Os campos de futebol não perderam nada, porém a literatura ganhou um verdadeiro artesão das palavras. Suas obras combinam elementos da literatura, sensibilidade e observação jornalística, que estão sempre em função de suas paixões. Autor de mais de trinta livros, dezenas de crônicas e artigos, Galeano também é um exímio defensor do socialismo, dos direitos e da dignidade humana. Entre seus livros, pode se destacar As veias abertas da América Latina, a trilogia Memória doFogo, Livro dos Abraços e o último, Espelhos – uma história quase universal, lançado em 2008, em que o autor reescreve, a partir de um outro ponto de vista, episódios que a história oficial camuflou. Galeano “remexe no lixão da história mundial” para dar voz aos “náufragos e humilhados”.
 
Caros Amigos - Você nasceu em Montevidéu? Gostaria que falasse um pouco da sua infância?
Eduardo Galeano - Sim, nasci em Montevidéu. Minha infância? Eu nem lembro, já faz tanto tempo... Mas acho que foi bastante livre. Eu morava em um bairro quase no limite da Montevidéu, onde havia grandes edifícios. Então tinha espaço verde. Sinto pena das coitadas das criancinhas que vejo agora, prisioneiras na varanda de casa. Meninos ricos são tratados como se fossem dinheiro, meninos pobres são tratados como se fossem lixo. Muitos, pobres e ricos, viram prisioneiros, atados aos computadores, à televisão ou a alguma outra máquina. Mas eu tive uma infância muito livre. Fiz a escola primária, secundária, depois comecei a trabalhar por minha conta. Então, com 15 anos, já era completamente livre.
 
Em que trabalhou?
Fiz de tudo o que você possa imaginar. Fui desenhista (adoro desenhar até hoje), taquígrafo, mensageiro, funcionário de banco, trabalhei em agência de publicidade, cobrador... Fiz milhares de coisas, mas, sobretudo, comecei a aprender o ofício de contar história. Eu era um cuenta cuentos (conta contos). E aprendi a fazer isso nos cafés, como esse onde a gente está agora falando, que leva o honroso nome de Brasilero.
 
O mais tradicional dos cafés uruguaios se chama Brasilero!
E esse é último sobrevivente, o último dos moicanos dos cafés nos quais eu fui formado. Minha universidade foram os cafés de Montevidéu, foi aqui que aprendi a arte de narrar, a arte de contar histórias.
 
Conversando com as pessoas?
Escutando. Conversando sim, mas aprendi muito mais escutando. Desde muito menino aprendi que, por alguma razão, nascemos com dois ouvidos e uma única boca. Mas esses cafés típicos de Montevidéu pertenciam a uma época que não existem mais. Pertenciam a um tempo no qual havia tempo para perder o tempo.
 
Como foi sair do Uruguai, na época da ditadura (1973-1984)?
Quando a ditadura se instalou, eu corri para a Argentina, em 1973. Lá fundei uma revista cultural chamada Crisis. Depois fui obrigado a voar de novo. Não podia voltar para o Uruguai, porque não queria ficar preso, e fui obrigado a sair da Argentina porque não queria ser morto. A morte é uma coisa muito chata. Então fiquei na Argentina até o final de 1976, quando se instala a Ditadura argentina. Aí fui para a Espanha, onde fiquei até o final de 1985. Depois disso voltei para o Uruguai. No começo, minha situação em Barcelona foi muito complicada. Eu não tinha documentos, pois a Ditadura uruguaia se recusava a fornecer. O que possuía era um documento de salvo conduto das Nações Unidas, que não servia para muita coisa. Eu tinha que ir todo mês à polícia renovar o meu visto de permanência e passava o dia inteiro preenchendo formulários de perguntas. Então, um dia, onde dizia profissão, coloquei escritor, entre aspas, de formulários. Mas ninguém percebeu. A polícia achou normal ser escritor de formulários!
 
Havia duas listas das ditaduras do Cone Sul. Uma, com os nomes das pessoas que estavam marcadas para morrer e outra para a extradição. Em qual você estava?
Nas duas.
 
Na época da ditadura, muitas pessoas, assim como você, ficaram sem documentos, não podiam sair do país e foram mortas a tiro ou envenenadas...
Eu tive sorte. Não me lembro de ter sido envenenado, nem mesmo pelos críticos literários. Claro que sofri muitas ameaças, mas não vou fazer aqui uma apologia do mártir, do herói da revolução. Mas claro que a vida não era fácil, sobretudo por que a situação dessa revista que fundei na Argentina era difícil, pois chegava muito além das fronteiras tradicionais das revistas culturais. Nós vendíamos entre 30 e 35 mil exemplares. Isso, para uma revista cultural, era uma prova de resistência. Nós pensávamos em fazer era um resgate das mil e uma formas de expressão da sociedade. Não apenas dos profissionais da cultura, mas também das cartas dos presos, da cultura contada pelos operários das fábricas, que raramente viam a luz o sol. Esse tipo de coisa que para nós também era cultura.
 
O livro As Veias abertas da América Latina foi escrito na década de 1970. Hoje, é possível escrever um novo Veias Abertas?
Para mim esse livro foi um porto de partida, não de chegada. Foi o começo de algo, de muitos anos de vida literária e jornalística tentando redescobrir a realidade, tentando ver o não visto e contar o não contado. Depois de Veias escrevi muitos livros que foram continuações, de um certo modo, e uma tentativa de cavar, cada vez mais profundamente, a realidade. Isso com o objeto de ampliar um pouco as ideias, porque Veias é um livro limitado à economia política latino-americana. Os livros seguintes têm que ser lidos com a vida toda, nas suas múltiplas expressões, sem dar muita bola nem ao mapa, nem ao tempo. Se eu fico apaixonado por uma história, me
ponho a contar histórias de qualquer lugar do mundo e de qualquer tempo. Conto a história da história, que podem ter acontecido há 2 mil anos e tento escrever de tal modo que aconteçam de novo, na hora em que são contadas. Aí está o verdadeiro ofício de contar, que aprendi nos cafés de Montevidéu, que inclusive permite a você escutar o som das patas dos cavalos, sentir o cheiro da chuva...
 
Pode-se dizer que hoje existe uma demanda por governos de esquerda na América Latina? Em sua opinião, esses governos têm contribuído para diminuir a pobreza e a desigualdade social nesses países?
O que existe é um panorama muito complexo e diverso de realidades diferentes. Também vemos respostas sociais e políticas diversas. Isso é o que nossa região do mundo tem de melhor: sua diversidade. Esse encontro de cores, de dores tão diferentes, é a nossa riqueza maior. Os novos movimentos, como esses, que estão brotando por toda parte, que tentam oferecer uma resposta diferente às desigualdades sociais, contra os maus costumes da humilhação e o fatalismo tradicional, também são respostas diversas porque expressam realidades diferentes. Não se pode generalizar. O que existe sim é uma energia de mudança. Uma energia popular que gera diversas realidades, não só política, mas realidades de todo tipo, tentando encontrar respostas, depois de vários séculos de experiências não muito brilhantes em matéria de independência. Agora estamos comemorando, em quase todos os países, o bicentenário de uma independência que ainda é uma tarefa por fazer.
 
O que falta para a América Latina ser completamente independente?
Romper com o velho hábito da obediência. Em vez de obedecer à história, inventá-la. Ser capaz de imaginar o futuro e não simplesmente aceitá-lo. Para isso é preciso revoltar-se contra a horrenda herança imperial, romper com essa cultura de impotência
que diz que você é incapaz de fazer, por isso tem que comprar feito, que diz que você é incapaz de mudar, que aquele que nasceu, como nasceu vai morrer. Porque dessa forma não temos nenhuma possibilidade de inventar a vida. A cultura da impotência te ensina
a não vencer com sua própria cabeça, a não caminhar com suas próprias pernas e a não sentir com seu próprio coração. Eu penso que é imprescindível vencer isso para poder gerar uma nova realidade.
 
A América Latina copiou um modelo de desenvolvimento que não foi feito para ela. É possível inventar um modelo próprio de desenvolvimento?
Não vou entrar em detalhes porque se fosse falar da quantidade de cópias erradas seria uma lista infinita. O desafio é pensar no que queremos ser: originais ou cópias? Uma voz ou eco? Agora estamos tentando recuperar nossa própria voz, em diferentes países, de diversas maneiras.
 
A implantação das bases dos Estados Unidos na Colômbia fere a dignidade do povo latinoamericano e compromete a independência e a liberdade da América do Sul?
Sim. É a continuação de uma tradição humilhante. Também há o perigo da intervenção direta dos Estados Unidos nos países latino-americanos. Meu mestre, Ambroce Bierce, um escritor norte-americano maravilhoso, quando se iniciou a expansão imperial dos Estados Unidos, no século 19, dizia que a guerra é um presente divino enviada por Deus para ensinar geografia. Porque assim eles (estadunidenses) Aprendiam geografia. E é verdade. Os EUA têm uma tradição de invadir países sem saber onde estão localizados e como são esses países. Tenho até a suspeita de que (George W.) Bush achasse que as
Escrituras tinham sido inventadas no Texas e não no Iraque, país que ele exterminou. Então, esse perigo militar latente é muito concreto. Atualmente os EUA possuem 850 bases militares em quarenta países. A metade do gasto militar mundial corresponde aos gastos de guerras dos EUA. Esse é um país em que o orçamento militar se chama orçamento de defesa por motivos, para mim, misteriosos e inexplicáveis. Porque a última invasão sofrida pelos EUA foi em 1812 e já faz quase dois séculos. O ministério se chama de defesa, mas é de guerra, mas como que se chama de defesa? O que tem a ver com a defesa? A mesma coisa se aplica às bases na Colômbia, que também são “defensivas”. Todas as guerras dizem ser “defensivas”. Nenhuma guerra tem a honestidade de dizer “eu mato para roubar”. Nenhuma, na história da humanidade. Hitler invadiu a Polônia porque, segundo ele, a Polônia iria invadir a Alemanha. Os pretextos invocados para a instalação dessa base dos EUA na Colômbia não são só ofensivas contra a dignidade nacional dos nossos países, como também ofensivas contra a inteligência humana. Por que dizer que serão colocadas lá para combater o tráfico de drogas e o terrorismo? Tráfico de drogas, muito bem... 80% da heroína que se consome no mundo inteiro vem do Afeganistão. 80%! Afeganistão é um país ocupado pelos EUA. Segundo a legislação internacional, os países ocupantes têm a responsabilidade sobre o que acontece nos países ocupados. Se os EUA têm interesse de verdade de lutar contra o narcotráfico, têm que começar pela própria casa, não pela Colômbia e sim pelo Afeganistão, que faz parte da sua estrutura de poder, e que é o grande abastecedor de heroína, a pior das drogas. O outro pretexto invocado é o terrorismo. Mas não é sério. Não é sério, por favor. A grande fábrica do terrorismo é essa potência mundial que invade países, gera desespero, ódio, angústia. Sabe quem esteve sessenta anos na lista oficial dos terroristas dos EUA? Nelson Mandela, Prêmio Nobel, presidente da África do Sul. Cada vez que viajava aos EUA, ele precisa de um visto especial do presidente dos Estados Unidos, porque era considerado um terrorista perigoso durante sessenta anos. Até 2008. É desse terrorismo que estão falando? Imagina se eu fosse incorporado agora na lista dos terroristas dos EUA e tivesse que esperar sessenta anos para ser tirado. Acho que daqui há sessenta anos vou estar um poquitito mortito.
 
Fania Rodrigues é jornalista
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