sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Calamidade em Bhopal-India...


vítimas de Bhopal seguem nascendo

Carlos Gorito - Correio Internacional

BHOPAL, Índia: Bhopal é uma calamidade sem fim. Em 3 de dezembro de 1984, nuvens de veneno vazaram da fábrica de pesticidas Union Carbide matando milhares nessa cidade do centro da Índia. Hoje, um quarto de século depois, as vítimas, desse que é o pior desastre industrial do mundo, continuam nascendo.
Aqui, em bairros onde as pessoas dependem de água contaminada por produtos químicos que vazam da fábrica abandonada e onde muitas mães foram expostas a gases tóxicos quando eram jovens, danos cerebrais e bebês com má formação são 10 vezes mais comuns que a média nacional. Médicos da Clínica Sambhavna de Bhopal [clínica mantida por doações para dar assistência médica gratuita às vítimas do desastre] dizem que nada menos que 1 em 25 bebês ainda está nascendo com defeitos e problemas de desenvolvimento tais como cabeças menores, pés palmados e baixo peso ao nascer.
Aqueles que eram apenas crianças quando a fumaça dominou a cidade de um milhão de habitantes também estão sofrendo. Dolorosas lesões de pele, problemas e feridas estomacais, coceira nos olhos são queixas comuns entre as milhares de famílias, das quais algumas se mudaram para Bhopal apenas em anos recentes. E a clínica da cidade diz que Bhopal agora tem algumas das mais altas taxas de câncer de vesícula e esôfago, tuberculose, anemia e anomalias na tireóide. As meninas começam a menstruar muito mais tarde que o normal e passam por dolorosos problemas ginecológicos, que muitas vezes levam a retirada do útero.
Esses problemas, dizem ativistas tais como os da Bhopal Medical Appeal [BMA, campanha mundial para angariar fundos destinados a ajudar as vítimas do acidente industrial em Bhopal], estão ligados à contínua poluição de partes do suprimento local de água por produtos químicos tais como clorofórmio e tetracloreto de carbono. As famílias não têm escolha a não ser usar água de poços para lavar, cozinhar e beber quando fontes seguras secam, de acordo com uma nova pesquisa que será publicada pela BMA na terça-feira [1/12]. O estudo encontrou níveis mais altos de vários produtos químicos carcinogênicos [que podem causar câncer] nas fontes de água esse ano do que ano passado – sugerindo fortemente que as gerações futuras serão envenenadas a menos que a área seja descontaminada. Isso contraria as afirmações do estado e dos ministros nacionais de que o lugar está limpo.
Enquanto isso, a batalha legal para que o diretor executivo da Union Carbide seja julgado pela alegada negligência de sua companhia não está mais perto do sucesso do que estava há 25 anos. A Anistia Internacional intimará nesta semana o governo da Índia e a Dow Chemicals [corporação estadunidense fabricante de produtos químicos, plásticos e agropecuários], que comprou a Union Carbide em 2001, para que tomem “ações urgentes e decisivas” para garantir que os acusados compareçam no tribunal – mais de 20 anos depois que os mandados de prisão foram emitidos pela primeira vez. A Dow Chemicals continua a negar qualquer responsabilidade pelo caso criminal.
Foi nas primeiras horas do dia 3 de dezembro de 1984 que 27 toneladas de metilisocianteto gasoso – 500 vezes mais tóxico que o cianeto de potássio e usado para fabricar o pesticida Sevin [usado como inseticida em jardins, agricultura e reflorestamento] – começou a vazar da fábrica da Union Carbide para as áreas vizinhas. Centenas de milhares de pessoas foram envenenadas pelo gás enquanto dormiam. Homens, mulheres e crianças que viviam em casebres situados bem ao lado do muro da fábrica acordaram respirando com dificuldade e cegas pelo gás que se dispersou rapidamente.
Acredita-se que cerca de 8 mil pessoas tenham morrido nas primeiras 72 horas. Centenas morreram em suas camas; outras milhares saíram cambaleantes de suas casas para morrer na rua. Estima-se que outras 15 mil pessoas tenham morrido em resultado da exposição ao gás desde então, muitas vezes com danos dolorosos e horrendos aos pulmões, coração, cérebro e outros órgãos, de acordo com a Anistia Internacional. Cerca de três quartos das mulheres grávidas dessa área abortaram espontaneamente seus bebês horas ou dias depois daquela noite. Centenas de bebês têm nascido desde então com deformidades, tais como membros ausentes, órgãos anormais, cabeças malformadas e tumores. Nenhum dos seis sistemas de segurança da fábrica estava operacional naquela noite.
Mesmo hoje, a Anistia Internacional estima que 120 mil pessoas expostas ao gás tenham problemas médicos crônicos. Depois que a fábrica foi fechada em 1985, outras 30 mil pessoas já ficaram doentes por causa da água contaminada por resíduos químicos enterrados ou descartados em lagoas próximas, de acordo com sanitaristas de Bhopal. Crianças e animais domésticos ainda são vistos brincando e pastando na grama que esconde os resíduos porque o governo local tem falhado em proteger a área apropriadamente.
Hazira Bee, de 53 anos, vive em J P Nagar, uma das áreas mais afetadas ao norte da cidade. Na noite do desastre, depois de despertar por causa do cheiro de pimenta queimada, ela e seu marido correram com suas crianças, seus olhos e pulmões ardendo por causa do gás. No pânico, seu filho do meio, Mansoor Ali, de 4 anos, foi deixado para trás. Ele tem passado a maior parte de sua vida dentro e fora de hospitais, enfraquecido severamente pelo dano crônico aos pulmões. A filha de Mansoor, hoje com 3 anos e meio, foi incapaz de manter sua cabeça ereta ou virar para o lado até os 18 meses de idade; ela recém começou a caminhar. Toda a família de Hazira tem sofrido de problemas respiratórios, neurológicos e de pele desde o vazamento.
Hazira disse: “a cena dentro da fábrica era horrível. Eu vi corpos e pessoas machucadas com espuma saindo de suas bocas. Desde o vazamento de gás nós todos estamos doentes. Por causa disso, meus filhos não puderam estudar e agora eles não conseguem bons empregos. Hoje eu sou a única fonte de renda da família. Se esse desastre tivesse acontecido nos Estados Unidos, o governo teria tomado conta de seus cidadãos. Nós queremos que a Union Carbide levem seu resíduo de volta para os Estados Unidos.”
Os relatórios de análise de água da BMA sustentam os estudos do Greenpeace que demonstram que as áreas ao norte da fábrica fechada são as mais afetadas porque a água subterrânea corre nessa direção. A Clínica Sambhavna – fundada há 13 anos com doações privadas – atende 150 pessoas como Hazira e sua família todos os dias. Existem 23 mil pessoas, ou que foram expostas ao gás ou que desde o desastre têm usado suprimentos contaminados de água, registradas com problemas crônicos tais como doenças do fígado, paralisia e anemia severa. Médicos relatam novos pacientes – adultos e crianças – todos os dias na clínica.
De acordo com Satinath Sarangi, um fundador da Clinica Sambhavna, a tuberculose é predominante entre pessoas cujo sistema imunológico tem sido desgastado pela exposição crônica à água envenenada. Câncer cluster [repetida ocorrência de um determinado tipo de câncer em uma determinada comunidade ou bairro] e crianças nascidas com deformidades são outras características distintivas da área, encontradas pelos pesquisadores da clínica que conduziram uma pesquisa de porta em porta nas dezenas de milhares de moradores do local.
No início desse ano, o Conselho Indiano de Pesquisa Médica [sigla em inglês ICMR, organização do governo indiano voltada para a formulação, coordenação e promoção de pesquisas biomédicas], finalmente cedeu à pressão pública e internacional ao reiniciar um programa estatal de pesquisa para entender as taxas alarmantes de natimortos, cânceres, problemas neurológicos e ginecológicos atendidos pelos médicos de Bhopal. Os estudos sobre os problemas de saúde de longo prazo de vítimas da Union Carbide foram deixados a cargo de instituições beneficentes e grupos de pressão depois que o ICRM abandonou seu programa de pesquisa em 1994 de forma polêmica.
O acordo de 470 milhões de dólares [cerca de R$812 milhões] feito pela Union Carbide em 1989 é lembrado como totalmente inadequado pelos profissionais de saúde da cidade e organizações de sobreviventes. Ele foi baseado na estimativa inicial de apenas 3.800 mortos e 102 mil feridos, e a quantia máxima que qualquer vítima recebeu foi de apenas mil dólares [cerca de R$1.700] – cerca de 11 centavos de dólar ao dia por 25 anos [menos de R$0,20]. Se a compensação tivesse sido a mesma daqueles expostos ao amianto sob os tribunais estadunidenses contra réus que também incluíam a Union Carbide, a dívida teria excedido os 10 bilhões de dólares [mais de R$17 bilhões]
A Dow Chemical Company insiste que não tem responsabilidade por esse legado tóxico. No entanto, a correspondência interna, vista pela IoS e a Anistia, entre diferentes ministros indianos (incluindo o Gabinete do Primeiro-ministro) mostra que a companhia continua tentando influenciar ministros numa tentativa de encerrar os processos civis. Esses processos poderiam determinar que a Dow descontaminasse milhares de toneladas de solo poluído.
Colin Toogood, da BMA, disse: “nós queremos ver uma limpeza completa da área do desastre e arredores, incluindo o aqüífero subterrâneo – uma tarefa enorme, mas razoável considerando-se que esse foi o pior desastre industrial no mundo. A compensação desembolsada de 470 milhões de dólares apenas diz respeito às pessoas afetadas pela exposição ao gás naquela noite. Isso não inclui, e nunca incluiu, as crianças nascidas com defeitos terríveis em resultado da exposição de seus pais; as pessoas afetadas pela contaminação do meio ambiente ou da água; e não inclui a própria contaminação do ambiente.”
Tom Sprick, da Union Carbide, declarou: “Nem a Union Carbide nem seus funcionários estão sujeitos à jurisdição da corte indiana já que eles não tiveram nenhum envolvimento na operação da fábrica… O governo da Índia precisa dedicar-se a quaisquer preocupações médicas e de saúde do povo de Bhopal.”
Porém, de acordo com Tim Edwards, um curador da BMA e autor do próximo relatório da Anistia, isso transmite uma idéia de desprezo pelos processos da lei. Ele disse: “em toda forma de sociedade civilizada é o sistema judicial que decide se um acusado tem algo a responder. As cortes da Índia decidiram que a Union Carbide e seu novo dono, a Dow Chemicals, têm de responder à justiça – mas a companhia não gostou nada disso.”
Scot Wheeler, da Dow Chemicals, respondeu: “Tentativas de vincular qualquer responsabilidade a Dow são inapropriadas… como todas as companhias globais, é comum para a Dow ter encontros com líderes e oficiais do governo se nós fazemos negócios e temos planos de crescimento. Também é comum para companhias discutir desafios e oportunidades relacionadas com investimentos.”

Nina Lakhani


Tradução: Aline Oliveira


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Fotografia de  Luca Frediani, retirada daqui

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