vítimas de Bhopal seguem nascendo
Carlos Gorito - Correio Internacional
BHOPAL, Índia: Bhopal é uma calamidade sem fim. Em 3 de dezembro de
1984, nuvens de veneno vazaram da fábrica de pesticidas Union Carbide
matando milhares nessa cidade do centro da Índia. Hoje, um quarto de
século depois, as vítimas, desse que é o pior desastre industrial do
mundo, continuam nascendo.
Aqui, em bairros onde as pessoas dependem de água contaminada por
produtos químicos que vazam da fábrica abandonada e onde muitas mães
foram expostas a gases tóxicos quando eram jovens, danos cerebrais e
bebês com má formação são 10 vezes mais comuns que a média nacional.
Médicos da Clínica Sambhavna de Bhopal [clínica mantida por doações
para dar assistência médica gratuita às vítimas do desastre] dizem que
nada menos que 1 em 25 bebês ainda está nascendo com defeitos e
problemas de desenvolvimento tais como cabeças menores, pés palmados e
baixo peso ao nascer.
Aqueles que eram apenas crianças quando a fumaça dominou a cidade de
um milhão de habitantes também estão sofrendo. Dolorosas lesões de
pele, problemas e feridas estomacais, coceira nos olhos são queixas
comuns entre as milhares de famílias, das quais algumas se mudaram para
Bhopal apenas em anos recentes. E a clínica da cidade diz que Bhopal
agora tem algumas das mais altas taxas de câncer de vesícula e esôfago,
tuberculose, anemia e anomalias na tireóide. As meninas começam a
menstruar muito mais tarde que o normal e passam por dolorosos
problemas ginecológicos, que muitas vezes levam a retirada do útero.
Esses problemas, dizem ativistas tais como os da Bhopal Medical
Appeal [BMA, campanha mundial para angariar fundos destinados a ajudar
as vítimas do acidente industrial em Bhopal], estão ligados à contínua
poluição de partes do suprimento local de água por produtos químicos
tais como clorofórmio e tetracloreto de carbono. As famílias não têm
escolha a não ser usar água de poços para lavar, cozinhar e beber
quando fontes seguras secam, de acordo com uma nova pesquisa que será
publicada pela BMA na terça-feira [1/12]. O estudo encontrou níveis
mais altos de vários produtos químicos carcinogênicos [que podem causar
câncer] nas fontes de água esse ano do que ano passado – sugerindo
fortemente que as gerações futuras serão envenenadas a menos que a área
seja descontaminada. Isso contraria as afirmações do estado e dos
ministros nacionais de que o lugar está limpo.
Enquanto isso, a batalha legal para que o diretor executivo da Union
Carbide seja julgado pela alegada negligência de sua companhia não está
mais perto do sucesso do que estava há 25 anos. A Anistia Internacional
intimará nesta semana o governo da Índia e a Dow Chemicals [corporação
estadunidense fabricante de produtos químicos, plásticos e
agropecuários], que comprou a Union Carbide em 2001, para que tomem
“ações urgentes e decisivas” para garantir que os acusados compareçam
no tribunal – mais de 20 anos depois que os mandados de prisão foram
emitidos pela primeira vez. A Dow Chemicals continua a negar qualquer
responsabilidade pelo caso criminal.
Foi nas primeiras horas do dia 3 de dezembro de 1984 que 27
toneladas de metilisocianteto gasoso – 500 vezes mais tóxico que o
cianeto de potássio e usado para fabricar o pesticida Sevin [usado como
inseticida em jardins, agricultura e reflorestamento] – começou a vazar
da fábrica da Union Carbide para as áreas vizinhas. Centenas de
milhares de pessoas foram envenenadas pelo gás enquanto dormiam.
Homens, mulheres e crianças que viviam em casebres situados bem ao lado
do muro da fábrica acordaram respirando com dificuldade e cegas pelo
gás que se dispersou rapidamente.
Acredita-se que cerca de 8 mil pessoas tenham morrido nas primeiras
72 horas. Centenas morreram em suas camas; outras milhares saíram
cambaleantes de suas casas para morrer na rua. Estima-se que outras 15
mil pessoas tenham morrido em resultado da exposição ao gás desde
então, muitas vezes com danos dolorosos e horrendos aos pulmões,
coração, cérebro e outros órgãos, de acordo com a Anistia
Internacional. Cerca de três quartos das mulheres grávidas dessa área
abortaram espontaneamente seus bebês horas ou dias depois daquela
noite. Centenas de bebês têm nascido desde então com deformidades, tais
como membros ausentes, órgãos anormais, cabeças malformadas e tumores.
Nenhum dos seis sistemas de segurança da fábrica estava operacional
naquela noite.
Mesmo hoje, a Anistia Internacional estima que 120 mil pessoas
expostas ao gás tenham problemas médicos crônicos. Depois que a fábrica
foi fechada em 1985, outras 30 mil pessoas já ficaram doentes por causa
da água contaminada por resíduos químicos enterrados ou descartados em
lagoas próximas, de acordo com sanitaristas de Bhopal. Crianças e
animais domésticos ainda são vistos brincando e pastando na grama que
esconde os resíduos porque o governo local tem falhado em proteger a
área apropriadamente.
Hazira Bee, de 53 anos, vive em J P Nagar, uma das áreas mais
afetadas ao norte da cidade. Na noite do desastre, depois de despertar
por causa do cheiro de pimenta queimada, ela e seu marido correram com
suas crianças, seus olhos e pulmões ardendo por causa do gás. No
pânico, seu filho do meio, Mansoor Ali, de 4 anos, foi deixado para
trás. Ele tem passado a maior parte de sua vida dentro e fora de
hospitais, enfraquecido severamente pelo dano crônico aos pulmões. A
filha de Mansoor, hoje com 3 anos e meio, foi incapaz de manter sua
cabeça ereta ou virar para o lado até os 18 meses de idade; ela recém
começou a caminhar. Toda a família de Hazira tem sofrido de problemas
respiratórios, neurológicos e de pele desde o vazamento.
Hazira disse: “a cena dentro da fábrica era horrível. Eu vi corpos e
pessoas machucadas com espuma saindo de suas bocas. Desde o vazamento
de gás nós todos estamos doentes. Por causa disso, meus filhos não
puderam estudar e agora eles não conseguem bons empregos. Hoje eu sou a
única fonte de renda da família. Se esse desastre tivesse acontecido
nos Estados Unidos, o governo teria tomado conta de seus cidadãos. Nós
queremos que a Union Carbide levem seu resíduo de volta para os Estados
Unidos.”
Os relatórios de análise de água da BMA sustentam os estudos do Greenpeace
que demonstram que as áreas ao norte da fábrica fechada são as mais
afetadas porque a água subterrânea corre nessa direção. A Clínica
Sambhavna – fundada há 13 anos com doações privadas – atende 150
pessoas como Hazira e sua família todos os dias. Existem 23 mil
pessoas, ou que foram expostas ao gás ou que desde o desastre têm usado
suprimentos contaminados de água, registradas com problemas crônicos
tais como doenças do fígado, paralisia e anemia severa. Médicos relatam
novos pacientes – adultos e crianças – todos os dias na clínica.
De acordo com Satinath Sarangi, um fundador da Clinica Sambhavna, a
tuberculose é predominante entre pessoas cujo sistema imunológico tem
sido desgastado pela exposição crônica à água envenenada. Câncer
cluster [repetida ocorrência de um determinado tipo de câncer em uma
determinada comunidade ou bairro] e crianças nascidas com deformidades
são outras características distintivas da área, encontradas pelos
pesquisadores da clínica que conduziram uma pesquisa de porta em porta
nas dezenas de milhares de moradores do local.
No início desse ano, o Conselho Indiano de Pesquisa Médica [sigla em
inglês ICMR, organização do governo indiano voltada para a formulação,
coordenação e promoção de pesquisas biomédicas], finalmente cedeu à
pressão pública e internacional ao reiniciar um programa estatal de
pesquisa para entender as taxas alarmantes de natimortos, cânceres,
problemas neurológicos e ginecológicos atendidos pelos médicos de
Bhopal. Os estudos sobre os problemas de saúde de longo prazo de
vítimas da Union Carbide foram deixados a cargo de instituições
beneficentes e grupos de pressão depois que o ICRM abandonou seu
programa de pesquisa em 1994 de forma polêmica.
O acordo de 470 milhões de dólares [cerca de R$812 milhões] feito
pela Union Carbide em 1989 é lembrado como totalmente inadequado pelos
profissionais de saúde da cidade e organizações de sobreviventes. Ele
foi baseado na estimativa inicial de apenas 3.800 mortos e 102 mil
feridos, e a quantia máxima que qualquer vítima recebeu foi de apenas
mil dólares [cerca de R$1.700] – cerca de 11 centavos de dólar ao dia
por 25 anos [menos de R$0,20]. Se a compensação tivesse sido a mesma
daqueles expostos ao amianto sob os tribunais estadunidenses contra
réus que também incluíam a Union Carbide, a dívida teria excedido os 10
bilhões de dólares [mais de R$17 bilhões]
A Dow Chemical Company insiste que não tem responsabilidade por esse
legado tóxico. No entanto, a correspondência interna, vista pela IoS e
a Anistia, entre diferentes ministros indianos (incluindo o Gabinete do
Primeiro-ministro) mostra que a companhia continua tentando influenciar
ministros numa tentativa de encerrar os processos civis. Esses
processos poderiam determinar que a Dow descontaminasse milhares de
toneladas de solo poluído.
Colin Toogood, da BMA, disse: “nós queremos ver uma limpeza completa
da área do desastre e arredores, incluindo o aqüífero subterrâneo – uma
tarefa enorme, mas razoável considerando-se que esse foi o pior
desastre industrial no mundo. A compensação desembolsada de 470 milhões
de dólares apenas diz respeito às pessoas afetadas pela exposição ao
gás naquela noite. Isso não inclui, e nunca incluiu, as crianças
nascidas com defeitos terríveis em resultado da exposição de seus pais;
as pessoas afetadas pela contaminação do meio ambiente ou da água; e
não inclui a própria contaminação do ambiente.”
Tom Sprick, da Union Carbide, declarou: “Nem a Union Carbide nem
seus funcionários estão sujeitos à jurisdição da corte indiana já que
eles não tiveram nenhum envolvimento na operação da fábrica… O governo
da Índia precisa dedicar-se a quaisquer preocupações médicas e de saúde
do povo de Bhopal.”
Porém, de acordo com Tim Edwards, um curador da BMA e autor do
próximo relatório da Anistia, isso transmite uma idéia de desprezo
pelos processos da lei. Ele disse: “em toda forma de sociedade
civilizada é o sistema judicial que decide se um acusado tem algo a
responder. As cortes da Índia decidiram que a Union Carbide e seu novo
dono, a Dow Chemicals, têm de responder à justiça – mas a companhia não
gostou nada disso.”
Scot Wheeler, da Dow Chemicals, respondeu: “Tentativas de vincular
qualquer responsabilidade a Dow são inapropriadas… como todas as
companhias globais, é comum para a Dow ter encontros com líderes e
oficiais do governo se nós fazemos negócios e temos planos de
crescimento. Também é comum para companhias discutir desafios e
oportunidades relacionadas com investimentos.”
Nina Lakhani
Tradução: Aline Oliveira
Para acessar o texto original, clique aqui.
Fotografia de Luca Frediani, retirada daqui
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