Freud encontra a ética
Referindo-se
à ética, os filósofos apontam para hábitos, comportamentos e valorações
que se espera de um grupo social que, a partir desses elementos, é
descrito e caracterizado. Ao passar para o plano da metaética, os
filósofos voltam os olhos para as justificações ou fundamentos de
determinadas propostas ético-morais. Essa duplicidade de esforços
reflexivos é típica da filosofia contemporânea.
Até o final do século XIX a divisão
entre ética e metaética não se estabelecia. Pode-se dizer que, em
parte, a divisão surgiu para permitir que a filosofia pudesse continuar
a sua reflexão no âmbito ético-moral, criando uma fronteira entre o seu
campo e o das várias disciplinas científicas ou novas áreas do saber
emergentes, atentas ao comportamento humano.
Durkheim foi quem começou a sociologia
científica, exatamente investigando o campo ético-moral não mais
segundo uma visão vinculada à finalidade filosófica, mas como um objeto
empírico que ele chamou de “fato social”. No início do século XX, os
vários trabalhos no campo psico-social definiram um tipo de estudo que
marcou época, o das relações entre indivíduo e sociedade. As ciências
sociais caminharam, então, a partir de preceitos do positivismo francês
e/ou do historicismo alemão. Diferentemente, o marxismo e a psicanálise
emergiram nessa época não como saberes internos de determinadas
disciplinas, mas como áreas autônomas. Tratava-se de uma espécie de
discussão que se parecia, ainda, com a filosofia, mas que
importava muito do estilo da ciência. Foi nesse clima, na terceira
década do século XX, que Freud enveredou pela investigação em ética.
A conversa de Freud sobre ética apareceu, principalmente, no célebre ensaio O mal estar na civilização.[1] A história contada nesse belo ensaio é a de um conflito entre a força denominada de Eros e a força denominada de instinto de morte.
Essas forças se mostram na narrativa do ensaio de modo bem determinado,
cada uma com sua função. Todavia, Freud as apresenta como irmãos
siameses. Quando uma surge, imediatamente deve surgir a outra – elas se
apresentam enlaçadas, talvez de modo indissolúvel.
Eros é o amor. A palavra amor designa a
fusão, a união. Assim, a ação de Eros é a de agregação. Graças a Eros
os indivíduos isolados são postos no interior de grupos e estes, por
sua vez, são empurrados para a formação de outros grupos maiores. O elo
dessas agregações, isto é, aquilo que faz com que um indivíduo se
integre em um grupo e ali permaneça e o que faz com que os grupos
permaneçam unidos, com tendências a se agregar a outros, é batizado por
Freud de libido. Nem a necessidade nem a vantagem do trabalho comum,
por si sós, conseguiriam manter a união dos indivíduos se não fosse o
elo libidinal. A libido é o princípio de vida, o que vem com Eros. Mas,
esta é apenas uma das cabeças dos irmãos siameses. Contrariamente à
força que agrega, há a força que tende a desfazer a união. Trata-se da
agressão – o instinto agressivo ou a manifestação mais visível do
instinto de morte.
O instinto de morte é assumido por
Freud como existente à medida que ele nota que, contra as unidades que
surgem pela agregação, pelo amor, sempre ocorre o aparecimento de
forças contrárias que visam dissolver tais unidades, em busca de uma
volta ao estado primitivo e inorgânico. Trata-se de uma devolução da
vida à morte – pela agressão. Por isso mesmo o nome não poderia ser
outro senão instinto de morte. A libido que une nunca se mostra sem sua
contrapartida, que é a agressividade, que tenta retroceder e fazer
desaparecer a união. Junto das manifestações sexuais, que são
expressões da libido de modo mais visível, há sempre algum componente
de sadismo e/ou masoquismo, mostrando assim a presença, em graus
variados, da agressividade no momento mesmo do amor. O princípio de
morte não deixa o princípio de vida atuar solitariamente. Irmãos
siameses são irmãos siameses!
Esses dois princípios atuam no interior
tanto do desenvolvimento do indivíduo, que deve se integrar em grupos,
quanto no processo da civilização humana, que é a integração entre
grupos que vão, então, gerando grupos maiores. No caso do primeiro, o
telos é a felicidade. No segundo, não é que a felicidade seja posta de
lado de uma vez, mas o telos é realmente a criação de uma coletividade
maior. É exatamente na observação desses dois processos que Freud
recoloca sua teoria das funções da consciência tripartida em ego, id e
superego.
Como no caso ele não trata do indivíduo
somente, e sim de sua relação com a sociedade, as noções de ego, id e
superego são mostradas de um modo especial. A noção de superego, por
analogia, extrapola a consciência individual. Freud se preocupa em
mostrar – e é isso que ele diz que considera o novo na sua narrativa do
comportamento humano – a idéia de um superego não psicológico, um
superego cultural. O superego corresponde, como ele diz, à força dos
primeiros grandes líderes da comunidade, que registraram as primeiras
leis e que, enfim, se mostraram como que divinos ao agirem desse modo.
São exatamente esses líderes que irão deixar para as suas comunidades,
que continuam os seus desenvolvimentos, as exigências “que tratam das
relações dos seres humanos uns com os outros” e que estão “abrangidas
sob o título de ética”. Em outras palavras, o superego cultural é nada
mais nada menos que a ética.
Qual é o papel da ética, do superego cultural?
O ensaio O mal estar na civilização
lida com questão da busca da felicidade e, enfim com o que se mostra
como o infortúnio humano, que é a agressão entre os homens. Quanto a
esse problema, Freud diz que sempre esperamos muito da ética. Ela é
importante, pois queremos que ela resolva um problema difícil o da
agressividade mútua. É como se a ética fosse uma terapia, diz ele, uma
vez que se espera alcançar com ela, por meio de “uma ordem do superego,
algo até agora não conseguido por meio de quaisquer outras atividades
culturais.” Ora, se é isso que se deve abordar a fim de compreender a
ação ética, o objeto tem de ser exatamente a norma mais atual do
superego. Em outras palavras, o objeto é o preceito ético mais
universal de nossos tempos, o mandamento cultural vigente que, enfim,
veio do superego. Freud aponta corretamente para o mandamento “amai ao
próximo como a ti mesmo”.
Freud acha esse imperativo ético
exigente demais, aliás, como toda ordem do superego que, enfim, pouco
se preocupa com o homem. “Amai ao próximo como a ti mesmo” é uma
afronta a qualquer tipo de egoísmo ou de narcisismo. Ao se tentar
seguir um imperativo desse tipo, o que se pode esperar do ego
individual? O ego individual teria de ser capaz de um controle total do
id, mas é óbvio que esse controle não existe. A exigência do superego
cultural, com o “Amai ao próximo como a ti mesmo” ultrapassa as
possibilidades do homem e, quando algo desse tipo ocorre, há
infelicidade – ou mesmo, no plano de análise de um superego individual
com um ego individual, há a neurose. Além do mais, quem quisesse seguir
o mandamento em questão, uma vez diante de outro que não desse muito
valor para a tal regra, cairia em desvantagem e, então, passaria por um
duplo sofrimento. A frustração levaria à culpa. Ser passado para trás
produziria a mágoa.
Diante disso, Freud vê que lidar com a
agressividade não é fácil. Ele diz: “que poderoso obstáculo a
agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta
infelicidade quanto a própria agressividade!”.
Como a ética nada é senão o superego
cultural, e este, por sua vez, é uma analogia com o superego psíquico
individual, a analogia pode continuar, diz Freud, e então podemos
imaginar mais correlações. Assim como o superego individual, com suas
exigências, pode produzir neuroses, a analogia permite dizer que éticas
difíceis de serem cumpridas poderiam criar civilizações neuróticas. Por
conseguinte, a idéia tão tentadora quanto perigosa seria a de começar
imaginar terapias para toda uma civilização.
Freud, aqui, se abstém de dar caminhos.
Todavia, ao final do ensaio em questão, traça uma observação
interessante sobre tendências. Durante todo o percurso em que fala de
ética, o que aborda não é outra senão a ética moderna, a chamada “ética
do dever”. Neste tipo de ética, a virtude moral vai para um lado e a
felicidade, não raro, vai para outro. Mas, ao final, Freud assume que
os juízos de valor dos homens acompanham “diretamente os seus desejos
de felicidade”. Neste caso, Freud parece assumir uma visão próxima da
ética antiga, a ética da eudaimonia. Na ética antiga, o objetivo é a realização da felicidade ou o alcance da felicidade. Ainda que eudaimonia
não possa ser traduzida, exclusivamente, por felicidade em um sentido
moderno, o que Freud diz o coloca em proximidade com a ética das
virtudes, a ética clássica. No entanto, mais uma vez, ele novamente
altera o curso. Fala da correlação entre juízos de valor e desejos de
felicidade não para endossar uma posição ética, mas para, em seguida,
dizer que essa busca de felicidade faz os homens encontrarem argumentos
de toda ordem para “sustentarem suas ilusões”.
Ao fim e ao cabo, Freud não assume uma posição ética filosófica. No que parece que vai endossar a eudaimonia,
em um final que seria espetacular, recua para a posição de um teórico
que busca certa neutralidade filosófica no campo doutrinário moral. Não
se trata de neutralidade científica, e sim de neutralidade no campo da
filosofia prática. Pesa forte, nesse caso, o espírito de época. Desse
modo, o que faz é um estudo que poderíamos dizer que se trata de um
tipo de metaética, uma especial narrativa teórica que poderia, talvez, fundamentar ou justificar uma doutrina – exatamente essa doutrina que ele, Freud, não ousa explicitar.
© Paulo Ghiraldellli Jr, filósofo
[1]
Freud, D. Mal estar na civilização. Freud. Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1978. Todas as citações são desse volume. Elas aparecem
aspadas, mas sem a referência ou numeração de página.
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