Guga Dorea - Correio da Cidadania
"Contaram os mais velhos dos mais velhos que povoaram essas terras
que os deuses maiores, os que nasceram o mundo, não pensavam todos da
mesma maneira. Ou seja, não tinham o mesmo pensamento, cada um tinha o
seu próprio pensamento e entre eles se respeitavam e escutavam (...).
Dizem os mais velhos dos velhos que por isso o mundo saiu com muitas
cores e formas" ¹
Esse comunicado, que faz parte de um diálogo do subcomandante Marcos
com o lendário Velho Antônio², lança um dos pilares básicos do que
venho tratando em artigos publicados pelo Correio da Cidadania nesse
ano de 2009. Afinal de contas, o que é ser igual e diferente na
sociedade contemporânea? Vejamos então o que esse diálogo tem a nos
dizer:
"O Velho Antônio me disse que perguntou aos velhos mais velhos como
fizeram os deuses primeiros para entrar em um acordo e conversar, se
eram tão diferentes os pensamentos que sentiam (....). E então os
deuses ficaram calados porque perceberam que, quando cada um dizia ‘os
outros’, estava falando de ‘outros’ diferentes. (...). Assim, o
primeiro acordo realizado pelos deuses mais primeiros foi reconhecer a
diferença e aceitar a existência do outro".
O que é então, nesse contexto, aceitar a diferença no outro? Segundo o
que nos tem trazido o subcomandante, não se trata de homogeneizar as
relações humanas e muito menos de se fechar em guetos instransponíveis
no qual o outro passa a não existir mais. Não é, portanto, que todos
tenham a mesma cor e forma.
Para reconhecer e respeitar a existência do outro, nesse sentido, é
preciso realmente escutar e tornar esse outro visível a nossos olhos,
não mais o reconhecendo apenas quando suas palavras soam iguais às que
"eu" quero ouvir. Não é produzir identidades fechadas, ávidas por criar
estigmas a todo instante, escutando o outro somente para reafirmar
superioridades frente aos negativamente rotulados como "diferentes".
Daí o subcomandante Marcos falar que resistir à homogeneidade não é
sinônimo de fazer oposição a ela, passando a lutar para criar uma nova
hegemonia dominante. A contribuição dos zapatistas, a meu ver, é
justamente a de positivar as diferenças, mas não negativizando os
supostos "iguais", aqueles que as estigmatizaram.
Ao perceber, reconhecer e respeitar a diferença existente no outro,
descobrimos o que tem de diferente em nós mesmos, não mais
estabelecendo hierarquias valorativas entre pessoas. Todos são
diferentes e assim devem permanecer, mas sempre se diferenciando
internamente a partir do encontro com o outro. É como já nos disse
Paulo Freire: o eu é sempre o outro.
Pensando ainda no que o chamado filósofo da diferença, Gilles Deleuze,
nos trouxe, não é mais pensar a diferença no outro e sim no que emerge
de diferente em mim diante do que esse outro me revela. É o que Deleuze
e também Guattari chamaram de devir outro em mim. Para o Velho Antônio, é no princípio da escuta que realmente conhecemos o outro e consequentemente a nós mesmos:
"Depois desse primeiro acordo a discussão continuou, porque uma
coisa é reconhecer que existem outros diferentes e outra muito distinta
é respeitá-los. (...). Depois todos se calaram, cada um falou de sua
diferença e cada outro dos deuses, que escutava, percebeu que,
escutando e conhecendo as diferenças do outro, mais e melhor conhecia a
si mesmo no que tinha de diferente".
Segundo o subcomandante Marcos, nesse diálogo imaginário (ou não), o
Velho Antônio saiu do local em que conversavam sem que ele percebesse.
Quando notou a sua ausência, disse ele:
"O mar já está dormindo e do toquinho de vela resta apenas uma
mancha disforme de parafina. Em cima, o céu começa a diluir sua
negritude na luz da manhã ...."
Não querendo promover aqui nenhuma análise literária de mais esse
poético comunicado, talvez seja possível afirmar que o subcomandante
prefigurou o que seria um encontro entre dois fenômenos aparentemente
distintos: uma espécie de dialética entre a noite e o dia. Realizando
um paralelo, pode significar que em um possível encontro, entre formas
de ser não hierarquizadas, cada pessoa pode embarcar em sua própria
diferença interna, transformando o pressuposto homogeneizante no qual o
que prevalece, nos relacionamentos humanos, são interesses individuais
e egocêntricos.
Como pensar então em relações entre diferenças a partir de contextos em
que o outro é invisível? Os zapatistas nos mostram justamente o
contrário. Eles dão visibilidade ao outro quando lutam e desejam "um
mundo onde caibam todos os mundos". Essa é uma metáfora, invocada a
todo instante por eles, em que a diversidade é exaltada, ressaltada,
aceita e, sobretudo, reconhecida, podendo nos remeter ainda a um debate
filosófico dos mais prementes: o que vem a ser, enfim, a natureza
humana? Os seres humanos nascem iguais ou diferentes?
Não há uma resposta verdadeira e muito menos científica para este
dilema. No entanto, podemos resgatar o sociólogo Edgar Morin: somos
iguais como seres humanos e diferentes em nossas singularidades. Nesse
contexto, os zapatistas não caem na armadilha de um multiculturalismo
em que as diferenças se fecham em si mesmas, não mais reconhecendo o
outro em sua diferença não hierarquizada.
Os zapatistas não querem homogeneizar e muito menos serem
homogeneizados. Eles não buscam, enfim, uma identidade fechada, na qual
a presença do outro não faz a menor diferença. O outro, dos zapatistas,
não são apenas os indígenas e sim todos aqueles que, por motivos
culturais e históricos, não quiseram ou não se adaptaram ao modelo de
vida imposto pelo processo "civilizatório" moderno. Nesse sentido,
retomando o Velho Antônio,
"É bom que haja outros que sejam diferentes e que é preciso escutá-los para conhecer a si mesmo".
Notas:
¹ Ver "A História dos Outros", in Di Felice, Massimo & Munôz,
Cristobal, "A Revolução Invencível: subcomandante Marcos e o Exército
Zapatista de Libertação Nacional – Cartas e Comunicados", ed. Boitempo,
São Paulo, 1998.
² O Velho Antônio foi um indígena mexicano que, através desses diálogos
com o subcomandante Marcos, comunicou e divulgou a tradição de seus
antepassados. Muitos desses diálogos podem ser interpretações ou mesmo
criações do sub, mas o fato é que eles existiram.
Guga Dorea é jornalista e cientista político, atualmente integrante
do Instituto Futuro Educação e pesquisador colaborador do Projeto
Xojobil.
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