Frustração de Hillary: o ocaso do pan-americanismo imperialista
A secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton,
visitou o Brasil nesta quarta-feira (3). Chegou cheia de intenções sobre
o estabelecimento de “relações especiais” com o Brasil e não pouca
arrogância e atitudes imperiais no que se refere aos temas globais e aos
assuntos em que os dois países mantêm posições diametralmente opostas.
Sai de mãos vazias, levando consigo um imenso desgaste político.
Por José Reinaldo Carvalho*
Os resultados que colheu em termos de “relações especiais” foram muito poucos. E os contenciosos, se não se agravaram pelo equilíbrio com que foram tratados pela parte brasileira, mantiveram-se sem solução.
Momentos antes da sua chegada a Embaixada dos Estados Unidos em Brasília disparava “press-realeases” para as redações dos principais veículos de comunicação do país, dando conta de que existem 16 mecanismos de consultas bilaterais sobre temas da maior relevância, variando da economia à defesa. O Itamaraty, por sua vez, generoso com a anfitriã, divulgava um número maior. Como informou a “Folha de São Paulo” em sua edição desta quarta-feira, 3, são 18 os mecanismos de consultas no âmbito da Chancelaria brasileira. Há quem ache pouco, como o ex-embaixador do Brasil nos Estrados Unidos, Rubens Barbosa, para quem o Brasil é passivo na implementação da cooperação bilateral. Ressente-se o ilustre diplomata da atual orientação do Itamaraty que não mais privilegia as relações com os Estados Unidos em detrimento do contato com outros parceiros e há muito tempo deixou de ser submissa, característica que marcou a diplomacia brasileira nos tempos de FHC à frente do Ministério das Relações Exteriores e da Presidência da República.
Mantras da política externa imperialista
O fato é que o saldo da visita da senhora Clinton ao Brasil é apenas a assinatura de três atos de cooperação. Um deles se refere à implementação de atividades conjuntas de cooperação técnica com outros países. Outro diz respeito às mudanças climáticas. E um terceiro propõe entendimentos entre os dois países para o avanço na condição da mulher.
A rigor, o fomento das “relações especiais” era apenas a envoltura na qual se escondiam os verdadeiros objetivos da visita. A esposa do ex-presidente dos Estados Unidos veio ao Brasil para pressionar o governo brasileiro a recitar os mesmos mantras da atual política externa norte-americana e o obrigar a transformá-los em ações práticas. Dois desses mantras fazem parte da cena política latino-americana – apoio a Pepe Lobo, presidente de Honduras eleito no rastro do golpe de estado que interrompeu uma breve experiência de democracia e independência no país centro-americano e condenação a Cuba por “violação” dos direitos humanos, com base em falsas acusações. Há poucos dias o presidente Lula esteve em Cuba, encontrou-se com os companheiros Fidel e Raúl, ocasião em que declarou alto e bom som que o Brasil é amigo de Cuba e condena o bloqueio ao país, assim como as tentativas de isolá-lo politicamente. A senhora Clinton não escutou algo diferente nas audiências com as autoridades brasileiras durante esta quarta-feira no Itamaraty e no gabinete presidencial.
“O Brasil não se curva a pressões”
Mas o motivo de maior frustração para a enviada do presidente Obama foi o rechaço às pressões para o Brasil aderir à orquestração do mantra anti-iraniano e se somar ao apelo para a adoção de sanções àquele país do Oriente Médio. “O Brasil não vai se curvar às pressões dos Estados Unidos”, disse o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. E no mesmo tom firme: “Nós pensamos com a própria cabeça. Nós queremos um mundo sem armas nucleares, certamente sem proliferação”, afirmou o chanceler brasileiro diante de uma frustrada secretária de Estado. Amorim pregou o entendimento, o diálogo e o caminho diplomático para lidar com o governo de Mahmud Ahmadinejad.
A visita da chefe da diplomacia estadunidense, prévia à que em breve o presidente Obama fará ao Brasil, ocorre num momento novo do cenário político latino-americano e numa etapa de amadurecimento da política externa independente do governo Lula. A América Latina não é mais o quintal dos fundos do imperialismo estadunidense, cujo pan-americanismo está sendo substituído pela verdadeira integração de povos e nações soberanas, com seus novos instrumentos de cooperação, como a Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac). Por isso mesmo, os Estados Unidos, apesar da nova retórica, continuam ameaçadores e intervencionistas, como demonstram a recriação da Quarta Frota da Marinha de Guerra dos EUA e a instalação das bases militares na Colômbia. A política externa independente do governo Lula tem evoluído e amadurecido, com suas prioridades para a cooperação, a defesa da paz, o respeito ao direito internacional, o multilateralismo e o estabelecimento de parcerias estratégicas incômodas para o imperialismo e as classes dominantes internas, retrógradas e entreguistas.
Relações complexas
As relações bilaterais do Brasil com os Estados Unidos são bastante complexas e merecem um estudo à parte. Convivem nesta relação elementos de cooperação e conflito. Moniz Bandeira, um dos mais fecundos historiadores das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, dá uma explicação geopolítica para as relações ambíguas entre os dois países no seu livro “As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (de Collor a Lula, 1990-2004)”. Diz o historiador: “Como candidato, Lula podia dizer, livremente, o que pensava. Como chefe de governo, tinha de preservar o relacionamento do Brasil com os Estados Unidos (...) Da mesma forma que Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, que buscaram estabelecer um bom relacionamento entre os dois países, Lula da Silva não conseguiu evitar divergências e atritos (...) A contradição de interesses e de objetivos entre os dois países constituía acima de tudo um dado cartográfico (...) De um lado, os Estados Unidos, a superpotência, que tratavam de preservar a todo custo sua predominância na América do Sul, como no resto do mundo (...) De outro lado, o Brasil, potência industrial emergente, em desenvolvimento, que reservara inteiramente para si a definição dc seus interesses nacionais e tratava de dilatar seu próprio espaço econômico e político, defender sua autonomia, convencido de que a rígida estrutura de poder e riqueza no mundo devia mudar. Esse mesmo dado cartográfico (...) determinava, porém, a necessidade de cooperação entre os dois países, que necessitavam manter laços estreitos. Daí a ambivalência que desde o século 19 caracterizou as suas relações”.
A vida vai mostrando que outras determinações, para além das cartográficas, condicionam a relação entre os dois países e que à medida em que o Brasil se afirma como nação independente e soberana e em que cresce a consciência antiimperialista do povo brasileiro, prevalecerão as disputas de interesses. Foi-se o tempo do beija-mão, da cerviz inclinada, dos pés descalços no aeroporto, da submissão, do alinhamento automático, do pan-americanismo imperialista.
*editor do portal Vermelho
Os resultados que colheu em termos de “relações especiais” foram muito poucos. E os contenciosos, se não se agravaram pelo equilíbrio com que foram tratados pela parte brasileira, mantiveram-se sem solução.
Momentos antes da sua chegada a Embaixada dos Estados Unidos em Brasília disparava “press-realeases” para as redações dos principais veículos de comunicação do país, dando conta de que existem 16 mecanismos de consultas bilaterais sobre temas da maior relevância, variando da economia à defesa. O Itamaraty, por sua vez, generoso com a anfitriã, divulgava um número maior. Como informou a “Folha de São Paulo” em sua edição desta quarta-feira, 3, são 18 os mecanismos de consultas no âmbito da Chancelaria brasileira. Há quem ache pouco, como o ex-embaixador do Brasil nos Estrados Unidos, Rubens Barbosa, para quem o Brasil é passivo na implementação da cooperação bilateral. Ressente-se o ilustre diplomata da atual orientação do Itamaraty que não mais privilegia as relações com os Estados Unidos em detrimento do contato com outros parceiros e há muito tempo deixou de ser submissa, característica que marcou a diplomacia brasileira nos tempos de FHC à frente do Ministério das Relações Exteriores e da Presidência da República.
Mantras da política externa imperialista
O fato é que o saldo da visita da senhora Clinton ao Brasil é apenas a assinatura de três atos de cooperação. Um deles se refere à implementação de atividades conjuntas de cooperação técnica com outros países. Outro diz respeito às mudanças climáticas. E um terceiro propõe entendimentos entre os dois países para o avanço na condição da mulher.
A rigor, o fomento das “relações especiais” era apenas a envoltura na qual se escondiam os verdadeiros objetivos da visita. A esposa do ex-presidente dos Estados Unidos veio ao Brasil para pressionar o governo brasileiro a recitar os mesmos mantras da atual política externa norte-americana e o obrigar a transformá-los em ações práticas. Dois desses mantras fazem parte da cena política latino-americana – apoio a Pepe Lobo, presidente de Honduras eleito no rastro do golpe de estado que interrompeu uma breve experiência de democracia e independência no país centro-americano e condenação a Cuba por “violação” dos direitos humanos, com base em falsas acusações. Há poucos dias o presidente Lula esteve em Cuba, encontrou-se com os companheiros Fidel e Raúl, ocasião em que declarou alto e bom som que o Brasil é amigo de Cuba e condena o bloqueio ao país, assim como as tentativas de isolá-lo politicamente. A senhora Clinton não escutou algo diferente nas audiências com as autoridades brasileiras durante esta quarta-feira no Itamaraty e no gabinete presidencial.
“O Brasil não se curva a pressões”
Mas o motivo de maior frustração para a enviada do presidente Obama foi o rechaço às pressões para o Brasil aderir à orquestração do mantra anti-iraniano e se somar ao apelo para a adoção de sanções àquele país do Oriente Médio. “O Brasil não vai se curvar às pressões dos Estados Unidos”, disse o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. E no mesmo tom firme: “Nós pensamos com a própria cabeça. Nós queremos um mundo sem armas nucleares, certamente sem proliferação”, afirmou o chanceler brasileiro diante de uma frustrada secretária de Estado. Amorim pregou o entendimento, o diálogo e o caminho diplomático para lidar com o governo de Mahmud Ahmadinejad.
A visita da chefe da diplomacia estadunidense, prévia à que em breve o presidente Obama fará ao Brasil, ocorre num momento novo do cenário político latino-americano e numa etapa de amadurecimento da política externa independente do governo Lula. A América Latina não é mais o quintal dos fundos do imperialismo estadunidense, cujo pan-americanismo está sendo substituído pela verdadeira integração de povos e nações soberanas, com seus novos instrumentos de cooperação, como a Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac). Por isso mesmo, os Estados Unidos, apesar da nova retórica, continuam ameaçadores e intervencionistas, como demonstram a recriação da Quarta Frota da Marinha de Guerra dos EUA e a instalação das bases militares na Colômbia. A política externa independente do governo Lula tem evoluído e amadurecido, com suas prioridades para a cooperação, a defesa da paz, o respeito ao direito internacional, o multilateralismo e o estabelecimento de parcerias estratégicas incômodas para o imperialismo e as classes dominantes internas, retrógradas e entreguistas.
Relações complexas
As relações bilaterais do Brasil com os Estados Unidos são bastante complexas e merecem um estudo à parte. Convivem nesta relação elementos de cooperação e conflito. Moniz Bandeira, um dos mais fecundos historiadores das relações entre o Brasil e os Estados Unidos, dá uma explicação geopolítica para as relações ambíguas entre os dois países no seu livro “As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (de Collor a Lula, 1990-2004)”. Diz o historiador: “Como candidato, Lula podia dizer, livremente, o que pensava. Como chefe de governo, tinha de preservar o relacionamento do Brasil com os Estados Unidos (...) Da mesma forma que Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, que buscaram estabelecer um bom relacionamento entre os dois países, Lula da Silva não conseguiu evitar divergências e atritos (...) A contradição de interesses e de objetivos entre os dois países constituía acima de tudo um dado cartográfico (...) De um lado, os Estados Unidos, a superpotência, que tratavam de preservar a todo custo sua predominância na América do Sul, como no resto do mundo (...) De outro lado, o Brasil, potência industrial emergente, em desenvolvimento, que reservara inteiramente para si a definição dc seus interesses nacionais e tratava de dilatar seu próprio espaço econômico e político, defender sua autonomia, convencido de que a rígida estrutura de poder e riqueza no mundo devia mudar. Esse mesmo dado cartográfico (...) determinava, porém, a necessidade de cooperação entre os dois países, que necessitavam manter laços estreitos. Daí a ambivalência que desde o século 19 caracterizou as suas relações”.
A vida vai mostrando que outras determinações, para além das cartográficas, condicionam a relação entre os dois países e que à medida em que o Brasil se afirma como nação independente e soberana e em que cresce a consciência antiimperialista do povo brasileiro, prevalecerão as disputas de interesses. Foi-se o tempo do beija-mão, da cerviz inclinada, dos pés descalços no aeroporto, da submissão, do alinhamento automático, do pan-americanismo imperialista.
*editor do portal Vermelho
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