sexta-feira, 16 de julho de 2010

O Horizonte Perdido: a hipocrisia do debate educacional


Escrito por Wellington Fontes Menezes no Correio da Cidadania   
"Há muita gente que tem se acostumado com lugares piores do que este – observava Bernard no
fim da primeira semana passada em Shangri-La; era, sem dúvida,
uma das muitas lições que estava aprendendo".
(James Hilton, "Horizonte Perdido", 1933)
 
Um discurso vazio
 
Em "Horizonte Perdido" (1933), James Hilton descreve o desvelo do mito da terra prometida e ficcional de Shangri-La, um lugar com cenas paradisíacas em algum ponto do Tibete onde se encontraria a fartura da saúde e da felicidade. Na esteira da Shangri-la da retórica brasileira, o atual debate sobre a Educação Básica pública oscila entre um rocambolesco discurso tecnicista meritocrático e os idílicos suvenires protocolares dos gabinetes de burocratas de ONGs, técnicos ou acadêmicos a anos-luz da realidade.
 
Indiferente ao processo de formação básica de seu povo, a ação governamental está movida por uma praxe neoliberal de privatizar o debate educacional em ONGs ou entidades similares. O resultado é o destilar de retóricas pueris com resultados meramente protocolares e burocráticos.
 
Empresas privadas disfarçadas de agentes sociais e ventiladas pela onda neoliberal, com raras exceções, as tais ONGs trabalham com dois objetivos fundamentais: a manutenção de seu espaço de lucratividade (atrelada com ações de marketing para sua própria sobrevivência financeira) e o debate da praxe do onanismo de projetos simplistas, idílicos, surrealistas ou de inviável execução na prática (geralmente é algum dourar da cereja de um bolo apodrecido). O Estado, em especial no governo tucano paulista, além de culpar simplesmente a classe docente pelo descalabro abissal, procura muito mais justificar as deficiências do sistema com a aplicação de remendos demasiadamente limitados e inadequados à severa crise que se instalou na Educação Básica. O resultado bem conhecido é a perpetuação da hecatombe educacional pública.
 
Coagidos pelo pragmatismo do desencanto do mundo ao estilo weberiano, perdidos em lutas internas fratricidas intestinais, os sindicatos ligados à educação se enrijeceram e se tornaram burocratizados, perdendo o rumo de sua ação para além da reivindicação dos soldos proletários. Exceto por alguns programas pífios e paliativos, a desarticulação entre universidades, sindicatos e secretarias de Educação dos estados é outro fator que impede uma construção realística de novos e urgentes projetos pedagógicos.
 
No momento em que a ideologia neoliberal adentra na sociedade como um valor de uma perversa moral, a meritocracia invade a fala ressonante de "policemakers", técnicos, professores e acadêmicos. A Educação deixa de ser um valor humanitário fundamental para se tornar uma competição capitalista entre seus agentes: a meritocracia é o mais perverso engodo neoliberal que se alojou na cultura do debate educacional. Para o riso amarelo de seus defensores, tudo se resolveria com a aplicação de provas de mérito e exames de verificação da tal "qualidade". Não fazendo coro ao hipócrita discurso do tecnicismo meritocrático, não se pode cobrar coisa alguma de uma mera miragem. A sintética e asséptica punição não contribui em absolutamente nada no desenvolvimento do ser humano.
 
Uma trágica miragem
 
O sistema de Educação Básica público é uma miragem, aliás, uma trágica miragem. Entre provas e mais provas de suposta "aferição pedagógica", anualmente é depositado um enorme volume do erário público em pesquisas débeis e inúteis, além de uma miríade de processos de verificação da tal "qualidade", dos quais se sabe o resultado previamente. Bom para o caixa de ONGs e empresas que aplicam provas dos sistemas meritocráticos de "qualidade total" em vultosos contratos com o governo.
 
Como se estivéssemos numa Suécia morena dos trópicos, a dispersão das provas meritocráticas no exaurido sistema educacional se tornou tão sintomática que pipocaram saltitantes as tais "olimpíadas dos saberes" (nas Ciências Exatas, Humanas e Biológicas). Na lógica da competição "educacional", em tudo quanto é campo do saber, tem-se uma "olimpíada" a ser competida pelos alunos.
 
Não se admira quando a BOVESPA cria um programa que ensina alunos a investirem na bolsa de valores! A "BOVESPA vai à escola" é um programa de uma aviltante excrescência! A proletária periferia paulistana agradece a nobre gentileza dos homens da impune fluidez do capital! A lição é simples, deslocar o parco dinheiro embutido no FGTS dos futuros proletários para a aplicação em ações das próprias empresas pelas quais eles mesmos são espoliados diariamente. Bela lição aos futuros "micro-investidores" do Jardim Ângela, Cidade Tiradentes ou Paraisópolis! Coisas da violência simbólica que faria até mesmo Adam Smith corar a face de vergonha!
 
Aos destroços de um sistema falido, soma-se a complacente ação da Big Mídia que, além de ser conivente com o neoliberalismo, emite na sociedade um discurso maquiavélico que privilegia a competição irracional em detrimento do caráter humanitário da educação. Logo, como subprodutos da falência do sistema público de Educação Básica, são emanados os parcos valores da sobrevivência no "mundo-cão" da competição desenfreada, no mais puro destilar do darwinismo social. O resultado é bem conhecido: a falência total de um sistema público de Ensino Básico, com alunos que saem das escolas muito próximos da mera e humilhante condição de analfabetos funcionais.
 
Para o retumbante fracasso no sistema público educacional, muitos defensores neoliberais, técnicos burocratas e resignados da esquerda pragmática se refugiam em simplistas e estapafúrdias desculpas do nosso anacrônico histórico de desigualdades sociais. A insistência para um novo modelo de educação é necessária ainda em pleno século XXI, num país que vive tempos midiáticos de neomilagre econômico (com taxas de crescimento próximas às do período dos governos militares).
 
Seres humanos não podem continuar a ser tratados como meras mercadorias. A lógica do descarte humano é um valor atroz que prevalece na sintonia fina entre mercado e ação governamental. Por mais bizarro que qualquer leitor desatento possa imaginar, o discurso neoliberal é construído com um vil destilar de cinismo nas falidas políticas educacionais. Grande parte das unidades escolares públicas é maquiada em perdulárias propagandas governamentais, já que parte significativa dessas escolas se constitui em antros de medo, insegurança e selvageria de coação moral e física. Exceto algumas ilhas que ainda estão na sobrevida do balão de oxigênio, o resultado real nas políticas educacionais é o desleixo do Poder Público pelo seu povo, sobretudo de menor poder econômico, dentro de uma sociedade movida pelas matrizes da ética do consumo.
 
Um turvo horizonte
 
O Paraíso sempre propalado em belos debates sobre o vazio se perdeu de vista. Ao contrário dos maquiladores de plantão, que sempre surgem do caos com seus sórdidos discursos franciscanos, que visam minimizar o caos atávico do sistema público. Defender um sistema sabidamente apodrecido é compactuar com uma política de exclusão de gerações de seres humanos, que são enganadas dentro de verdadeiras cadeias prisionais que muitos ainda insistem em chamar de unidades escolares.
 
Com o descaso governamental, a instituição das frágeis franquias familiares e a ética do consumo que majora os valores pessoais e sociais na pós-modernidade, é preciso compreender o caquético papel caricatural que possui a escola pública. Falida e débil, a Educação Básica pública apenas cumpre um burocrático papel de expedição de diplomas. Como prêmio de consolação, aos que sobreviveram a este processo de saturação do ser humano, pode-se ganhar eventualmente um mimo governamental, como uma vaga derivada de uma controversa política de cotas em universidades públicas ou uma bolsa de estudo em alguma faculdade privada de Ensino Superior de qualidade duvidosa, mas sedenta pelos louros do patrocínio governamental. A Educação brasileira é um grande arremedo arrastado de programas e ações governamentais díspares, desconexas e eleitoreiras.
 
De forma direta ou indireta, o mercado dita as regras e as políticas a serem supostamente implementadas pelo Poder Público. Torna-se ridículo o cínico discurso de muitas ONGs, como a marqueteira "Todos pela Educação", fomentada por grandes grupos econômicos e pousando com um querubim supostamente assistencialista, preocupado com a Educação no país. Naturalmente, se realmente tais grupos empresariais estivessem tão preocupados com a Educação (o tal mote da "responsabilidade social empresarial"), da mesma forma como o estão quando se trata de ganhar obscuros processos de licitação nas três esferas de poder, por exemplo, poderiam usar seus poderosos lobistas para pressionarem políticos a encararem a Educação Básica como projeto fundamental de governo de qualquer sigla partidária.
 
Longe de algum horizonte da propalada Shangri-La, entre tantas maravilhas contemplativas importadas de modelos educacionais estadunidenses, europeus ou asiáticos, a ocuparem o espaço inutilmente sem observarem a realidade local, o tempo passa e o faz-de-conta continua sendo a palavra de ordem. Enquanto o debate sobre a Educação é visto pela ótica da desfaçatez e da rapina do mercado, continuará a sangria de dinheiro público escoado pelo ralo, com gerações de alunos sendo conduzidas como fardo social e professores-fordistas tratados como animadores proletariados de salas de aula lotadas até a entrega das notas do final de cada ano letivo.
 
Aliás, cada ano letivo do Ensino Básico público é mais uma miragem para ser computada em belas estatísticas educacionais, posteriormente usadas a bel-prazer de interesses eleitoreiros dos governantes.
 
Wellington Fontes Menezes é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), bacharel e licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Rede Pública do estado de São Paulo.
Contato: wfmenezes@uol.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email

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