Escrito por Wellington Fontes Menezes no Correio da Cidadania | |
"Há muita gente que tem se acostumado com lugares piores do que este
– observava Bernard no
fim da primeira semana passada em Shangri-La; era, sem dúvida, uma das muitas lições que estava aprendendo". (James Hilton, "Horizonte Perdido", 1933)
Um discurso vazio
Em "Horizonte Perdido" (1933), James Hilton descreve o desvelo do mito
da terra prometida e ficcional de Shangri-La, um lugar com cenas
paradisíacas em algum ponto do Tibete onde se encontraria a fartura da
saúde e da felicidade. Na esteira da Shangri-la da retórica brasileira, o
atual debate sobre a Educação Básica pública oscila entre um
rocambolesco discurso tecnicista meritocrático e os idílicos suvenires
protocolares dos gabinetes de burocratas de ONGs, técnicos ou acadêmicos
a anos-luz da realidade.
Indiferente ao processo de formação básica de seu povo, a ação
governamental está movida por uma praxe neoliberal de privatizar o
debate educacional em ONGs ou entidades similares. O resultado é o
destilar de retóricas pueris com resultados meramente protocolares e
burocráticos.
Empresas privadas disfarçadas de agentes sociais e ventiladas pela onda
neoliberal, com raras exceções, as tais ONGs trabalham com dois
objetivos fundamentais: a manutenção de seu espaço de lucratividade
(atrelada com ações de marketing para sua própria sobrevivência
financeira) e o debate da praxe do onanismo de projetos simplistas,
idílicos, surrealistas ou de inviável execução na prática (geralmente é
algum dourar da cereja de um bolo apodrecido). O Estado, em especial no
governo tucano paulista, além de culpar simplesmente a classe docente
pelo descalabro abissal, procura muito mais justificar as deficiências
do sistema com a aplicação de remendos demasiadamente limitados e
inadequados à severa crise que se instalou na Educação Básica. O
resultado bem conhecido é a perpetuação da hecatombe educacional
pública.
Coagidos pelo pragmatismo do desencanto do mundo ao estilo weberiano,
perdidos em lutas internas fratricidas intestinais, os sindicatos
ligados à educação se enrijeceram e se tornaram burocratizados, perdendo
o rumo de sua ação para além da reivindicação dos soldos proletários.
Exceto por alguns programas pífios e paliativos, a desarticulação entre
universidades, sindicatos e secretarias de Educação dos estados é outro
fator que impede uma construção realística de novos e urgentes projetos
pedagógicos.
No momento em que a ideologia neoliberal adentra na sociedade como um
valor de uma perversa moral, a meritocracia invade a fala ressonante de
"policemakers", técnicos, professores e acadêmicos. A Educação deixa de
ser um valor humanitário fundamental para se tornar uma competição
capitalista entre seus agentes: a meritocracia é o mais perverso engodo
neoliberal que se alojou na cultura do debate educacional. Para o riso
amarelo de seus defensores, tudo se resolveria com a aplicação de provas
de mérito e exames de verificação da tal "qualidade". Não fazendo coro
ao hipócrita discurso do tecnicismo meritocrático, não se pode cobrar
coisa alguma de uma mera miragem. A sintética e asséptica punição não
contribui em absolutamente nada no desenvolvimento do ser humano.
Uma trágica miragem
O sistema de Educação Básica público é uma miragem, aliás, uma trágica
miragem. Entre provas e mais provas de suposta "aferição pedagógica",
anualmente é depositado um enorme volume do erário público em pesquisas
débeis e inúteis, além de uma miríade de processos de verificação da tal
"qualidade", dos quais se sabe o resultado previamente. Bom para o
caixa de ONGs e empresas que aplicam provas dos sistemas meritocráticos
de "qualidade total" em vultosos contratos com o governo.
Como se estivéssemos numa Suécia morena dos trópicos, a dispersão das
provas meritocráticas no exaurido sistema educacional se tornou tão
sintomática que pipocaram saltitantes as tais "olimpíadas dos saberes"
(nas Ciências Exatas, Humanas e Biológicas). Na lógica da competição
"educacional", em tudo quanto é campo do saber, tem-se uma "olimpíada" a
ser competida pelos alunos.
Não se admira quando a BOVESPA cria um programa que ensina alunos a
investirem na bolsa de valores! A "BOVESPA vai à escola" é um programa
de uma aviltante excrescência! A proletária periferia paulistana
agradece a nobre gentileza dos homens da impune fluidez do capital! A
lição é simples, deslocar o parco dinheiro embutido no FGTS dos futuros
proletários para a aplicação em ações das próprias empresas pelas quais
eles mesmos são espoliados diariamente. Bela lição aos futuros
"micro-investidores" do Jardim Ângela, Cidade Tiradentes ou
Paraisópolis! Coisas da violência simbólica que faria até mesmo Adam
Smith corar a face de vergonha!
Aos destroços de um sistema falido, soma-se a complacente ação da Big
Mídia que, além de ser conivente com o neoliberalismo, emite na
sociedade um discurso maquiavélico que privilegia a competição
irracional em detrimento do caráter humanitário da educação. Logo, como
subprodutos da falência do sistema público de Educação Básica, são
emanados os parcos valores da sobrevivência no "mundo-cão" da competição
desenfreada, no mais puro destilar do darwinismo social. O resultado é
bem conhecido: a falência total de um sistema público de Ensino Básico,
com alunos que saem das escolas muito próximos da mera e humilhante
condição de analfabetos funcionais.
Para o retumbante fracasso no sistema público educacional, muitos
defensores neoliberais, técnicos burocratas e resignados da esquerda
pragmática se refugiam em simplistas e estapafúrdias desculpas do nosso
anacrônico histórico de desigualdades sociais. A insistência para um
novo modelo de educação é necessária ainda em pleno século XXI, num país
que vive tempos midiáticos de neomilagre econômico (com taxas de
crescimento próximas às do período dos governos militares).
Seres humanos não podem continuar a ser tratados como meras mercadorias.
A lógica do descarte humano é um valor atroz que prevalece na sintonia
fina entre mercado e ação governamental. Por mais bizarro que qualquer
leitor desatento possa imaginar, o discurso neoliberal é construído com
um vil destilar de cinismo nas falidas políticas educacionais. Grande
parte das unidades escolares públicas é maquiada em perdulárias
propagandas governamentais, já que parte significativa dessas escolas se
constitui em antros de medo, insegurança e selvageria de coação moral e
física. Exceto algumas ilhas que ainda estão na sobrevida do balão de
oxigênio, o resultado real nas políticas educacionais é o desleixo do
Poder Público pelo seu povo, sobretudo de menor poder econômico, dentro
de uma sociedade movida pelas matrizes da ética do consumo.
Um turvo horizonte
O Paraíso sempre propalado em belos debates sobre o vazio se perdeu de
vista. Ao contrário dos maquiladores de plantão, que sempre surgem do
caos com seus sórdidos discursos franciscanos, que visam minimizar o
caos atávico do sistema público. Defender um sistema sabidamente
apodrecido é compactuar com uma política de exclusão de gerações de
seres humanos, que são enganadas dentro de verdadeiras cadeias
prisionais que muitos ainda insistem em chamar de unidades escolares.
Com o descaso governamental, a instituição das frágeis franquias
familiares e a ética do consumo que majora os valores pessoais e sociais
na pós-modernidade, é preciso compreender o caquético papel caricatural
que possui a escola pública. Falida e débil, a Educação Básica pública
apenas cumpre um burocrático papel de expedição de diplomas. Como prêmio
de consolação, aos que sobreviveram a este processo de saturação do ser
humano, pode-se ganhar eventualmente um mimo governamental, como uma
vaga derivada de uma controversa política de cotas em universidades
públicas ou uma bolsa de estudo em alguma faculdade privada de Ensino
Superior de qualidade duvidosa, mas sedenta pelos louros do patrocínio
governamental. A Educação brasileira é um grande arremedo arrastado de
programas e ações governamentais díspares, desconexas e eleitoreiras.
De forma direta ou indireta, o mercado dita as regras e as políticas a
serem supostamente implementadas pelo Poder Público. Torna-se ridículo o
cínico discurso de muitas ONGs, como a marqueteira "Todos pela
Educação", fomentada por grandes grupos econômicos e pousando com um
querubim supostamente assistencialista, preocupado com a Educação no
país. Naturalmente, se realmente tais grupos empresariais estivessem tão
preocupados com a Educação (o tal mote da "responsabilidade social
empresarial"), da mesma forma como o estão quando se trata de ganhar
obscuros processos de licitação nas três esferas de poder, por exemplo,
poderiam usar seus poderosos lobistas para pressionarem políticos a
encararem a Educação Básica como projeto fundamental de governo de
qualquer sigla partidária.
Longe de algum horizonte da propalada Shangri-La, entre tantas
maravilhas contemplativas importadas de modelos educacionais
estadunidenses, europeus ou asiáticos, a ocuparem o espaço inutilmente
sem observarem a realidade local, o tempo passa e o faz-de-conta
continua sendo a palavra de ordem. Enquanto o debate sobre a Educação é
visto pela ótica da desfaçatez e da rapina do mercado, continuará a
sangria de dinheiro público escoado pelo ralo, com gerações de alunos
sendo conduzidas como fardo social e professores-fordistas tratados como
animadores proletariados de salas de aula lotadas até a entrega das
notas do final de cada ano letivo.
Aliás, cada ano letivo do Ensino Básico público é mais uma miragem para
ser computada em belas estatísticas educacionais, posteriormente usadas a
bel-prazer de interesses eleitoreiros dos governantes.
Wellington Fontes Menezes é mestrando em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP), bacharel e licenciado em Física
pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Rede Pública do
estado de São Paulo.
Contato:
wfmenezes@uol.com.br
Blog do autor: http://www.wfmenezes.blogspot.com/
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
O Horizonte Perdido: a hipocrisia do debate educacional
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