Ben Dandelion*no Odiario.info
Howard
Zinn entregou o original do seu último livro ao editor um mês antes da
sua morte em 27 de Janeiro passado. Figura proeminente dos movimentos
pacifista e antibelicista, Zinn foi o mais destacado dos inúmeros
dissidentes norte-americanos.
É sobre a importância deste seu último livro, A Bomba [The Bomb],
publicado postumamente que Ben Dandelion nos fala.
Falecido
este ano, Howard Zinn [1] era conhecido principalmente pela sua obra A
Outra História dos Estados Unidos, um livro citado até nos Simpson e
nos Sopranos, e que inspira a personagem interpretado por Matt Damon no
filme Good Will Hunting. Este livro, que dá uma visão da história
norte-americana dos últimos 500 anos de imperialismo, colonização e
racismo, não foi academicamente bem recebido, e os seus críticos
classificaram-no de polémico e com uma visão subjectiva da História. Em
última análise, Zinn era um activista, oq eu deixava transparecer no seu
trabalho académico tal como nos seus ensaios e textos mais políticos.
The Bomb [A Bomba], entregue ao seu editor um mês antes da sua
morte, entra nesta última categoria. Nele, Zinn reúne dois ensaios, um
intitulado «Hiroshima, breaking the silence» [Hiroshima, romper o
sil~encio] e o outro The bombing of Royan [O Bombardeamento de Ruão].
Jovem desejoso de ser desmobilizado, Zinn recorda que celebrou o
lançamento da bomba atómica, que significou para ele o final de uma
guerra a que não queria voltar. Tinha participado no bombardeamento da
cidade francesa de Ruão precisamente três meses antes. O ensaio rememora
essa irreflectida comemoração, e o desejo de cumprir as ordens
recebidas naqueles meses de 1945. Com provas históricas defende daquelas
missões era necessária e interroga-se sobre o que precipitou uma acção
militar que ia para lá da lógica militar e da sensibilidades morais.
Tal como Zinn, também eu mudei de mentalidade sobre a necessidade e
glória da Guerra. Quando terminei o colégio quaker [3] aos 17 anos
queria ser piloto de combate. Mas numa viagem pelo mundo em bicicleta
cheguei à mesma conclusão de Zinn: não há nenhum «eles», não há mais do
que um «nós» global. Digo com muita alegria que mudar de mentalidade não
foi nenhuma e não deve assim ser considerada como um sinal de
debilidade, como tanta vez sucede com os políticos, mas uma reflexão
criativa. Naturalmente, agora que sou um pacifista comprometido, espero
que as mudanças nas pessoas sigam o mesmo rumo que seguimos Zinn e eu
próprio, em vez do contrário: passar de pacifistas a belicistas.
Contudo, Zinn também se entra por argumentos mais complexos que o do
simples pacifismo. Crítico das descrições de qualquer parcela da
humanidade como algo de «menor» consideração, Com razão, Zinn aponta que
só desumanizando o inimigo estratégias como os bombardeamentos por
saturação ou o lançamento de bombas atómicas podem ser consideradas
possíveis por parte de pessoas que até as consideravam morais.
Recordo uma análise dos media do sociólogo Christie Davies que
explicava como a humanidade podia em qualquer momento ser descrita como
membros inominados de um grupo ou como dados estatísticos, e que o seu
status moral na cobertura dada pela imprensa muda em função do grau de
humanidade que se lhes atribui. «Dezoito mortos num acidente de
autocarro» trata os mortos como estatística. É o que acontece no caso da
guerra, em que desumaniza ou diaboliza o «inimigo» até ao ponto em que
matá-lo já não se compreende como um assassínio. E onde já não são
vítimas «inocentes» mas apenas «inimigos mortos».
Trata-se de um processo totalmente consciente dos Estados e dos
meios de comunicação que pode ser comprovado na censura das imagens que
documentam os efeitos das bombas atómicas nos anos seguintes à guerra.
Zinn defende, implicitamente, que se nos colocarmos na situação do
«inimigo» já não podemos justificar a acção militar proposta, então,
estamos moralmente em falta. Isto pode desembocar numa espécie
pacifismo, mas de uma classe tal que faz as críticas de forma diversa e
pode com mais agudeza examinar cada acção proposta à luz de uma moral
mais globalizante.
Nestes casos particulares, sobretudo na destruição de Ruão, na
realidade povoado por aliados e não por inimigos, Zinn defende que
motivos de orgulho militar, da experimentação de novas tecnologias (foi
em Ruão que se usou pela primeira vez o napalm) e o desejo de vingança
impuseram-se ao facto de nada disso ser estrategicamente necessário: O
porto de Ruão era um elemento de diversão secundário que não
representava qualquer ameaça ao rápido avanço para Berlim em Maio de
1945.
Dito isto, os mesmos «males» que se supunha que a guerra ia derrotar
estavam implícitos nas acções dos aliados. Todas as potências aliadas
tinham um historial de colonização e todas tinham anteriormente invadido
outros países, tal como acusavam que faziam a Alemanha e o Japão. Todas
defenderam os seus impérios contra os movimentos de independência nos
anos seguintes a 1945.
Em última instância, todas promoveram acções militares com o
resultado de milhares e milhares de civis mortos. Churchill descreveu o
bombardeamento de saturação de Dresden como uma «contundente incursão».
Então, o racismo tanto apontava o sistema social dos EUA como avivava a
retórica de fazer avançar na guerra contra o Japão e a Alemanha. Também
neste sentido, «eles» eram na realidade iguais a «nós». Apesar disso, a
retórica da guerra liga-se a um «eles» considerado como algo menor.
Algumas partes de The Bomb não são fáceis de ler, tendo em conta que
relatam o sofrimento infligido por bombardeamentos: é um livro que
enfurecerá alguns. Alguns resistirão á sua análise histórica, à sua
miscelânea de argumentos a favor, e haverá os que dirão que Zinn,
simplesmente, não compreendeu a verdadeira natureza das decisões que
havia (que ainda há) que tomar. O que mostra, no entanto, é a divisão
que existe entre os que circulam pelos passeios do poder, e os que, como
nós, não sabem realmente o que acontece e só sabem da defesa da
necessidade que eles fazem de que a guerra continue.
Infelizmente o livro de Zinn continua oportuno e crucial. Como
último testemunho de uma vida de trabalho académico e activismo, também
nos serve para levarmos muito a sério tudo o que escreveu.
N. do T.:
[1] Artigos de Howard Zinn em odiario.info:
«Sacco e Vanzeti» www.odiario.info/?p=311 e «A História tem de ser criativa», www.odiario.info/?p=143.
[2] People´s History of the United States: 1492 to present, não está traduzido em Portugal. Há traduções em castelhano com o título de La otra historia de Estado Unidos de Ed. Hiru, Hondarribia/Fuenterrabía, 1997 e Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2004.
[3] Os quakers, comunidade religiosa nascida na Inglaterra do século XVII, que se distinguiu pelo seu activo pacifismo e o seu compromisso humanitário.
[1] Artigos de Howard Zinn em odiario.info:
«Sacco e Vanzeti» www.odiario.info/?p=311 e «A História tem de ser criativa», www.odiario.info/?p=143.
[2] People´s History of the United States: 1492 to present, não está traduzido em Portugal. Há traduções em castelhano com o título de La otra historia de Estado Unidos de Ed. Hiru, Hondarribia/Fuenterrabía, 1997 e Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2004.
[3] Os quakers, comunidade religiosa nascida na Inglaterra do século XVII, que se distinguiu pelo seu activo pacifismo e o seu compromisso humanitário.
* Ben Dandelion é Professor honorário da Universidade de Birmingham.
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