A presidenta Dilma Rousseff parte dia 31 para uma visita a Buenos
Aires e está previsto seu encontro com as “mães da Plaza de Mayo”, as
valentes cidadãs argentinas cujos filhos foram assassinados ou
desapareceram durante a ditadura. Hoje elas frequentam a Casa Rosada,
recebidas pela presidenta Cristina Kirchner, em um país que puniu os
algozes, a começar pelos generais ditadores.
Há quem diga e até escreva que Dilma se expõe ao risco de uma
“saia-justa” (não aprecio a enésima frase feita frequentada pelos nossos
perdigueiros da informação, mas a leio e reproduzo) ao encontrar as
mães da praça. Quem fala, ou escreve, talvez funcione como porta-voz de
ambientes fardados. Ocorre, porém, que a reunião foi solicitada pela
própria presidenta do Brasil, e ela sabe o que faz.
No discurso de posse, Dilma mostrou-se orgulhosa do seu passado de
guerrilheira e homenageou os companheiros mortos na luta. Conta com o
aplauso de CartaCapital. Foi o primeiro sinal de um propósito claro do
novo governo: aprofundar o debate em torno das gravíssimas ofensas aos
Direitos Humanos cometidas ao longo dos nossos anos de chumbo. O
encontro de Buenos Aires confirma e sublinha a linha definida pela
presidenta, a bem da memória do País.
Cada terra tem suas características, peculiaridades, tradições. O
Brasil não é a Argentina. Ambos foram colônias. Nós padecemos, contudo,
três séculos de escravidão. A independência não veio com a rebelião
contra a metrópole e sim graças aos humores contingentes de um jovem
príncipe brigado com a família. A república foi proclamada pelos
generais. A resistência e a luta armada na Argentina tiveram uma
participação bem maior do que se deu no Brasil, e nem por isso o terror
de Estado deixou de ser menos feroz aqui do que no Prata.
Já li mais de uma vez comparações entre o número de mortos e de
desaparecidos brasileiros e argentinos, de sorte a justificar que a
nossa foi ditabranda. Bastaria um único assassinado. A violência, de
todo modo, foi a mesma, sem contar que os nossos torturadores deram
aulas aos colegas de todo o Cone Sul, habilitados por sua extraordinária
competência. Se a repressão verde-oliva numericamente matou, seviciou e
perseguiu menos que a argentina foi porque entendeu poder parar por aí.
Fernando Henrique Cardoso disse na terça-feira 25 ao Estadão ser
favorável à abertura dos arquivos da ditadura. Surpresa. Foi ele, antes
de deixar a Presidência, quem referendou a proposta do general Alberto
Cardoso, que comandava seu gabinete da Segurança Institucional, de
manter indevassável a rica documentação por 50 anos. No elegante
português que o distingue, FHC agora declara: “Aquilo ocorreu no meu
último dia de governo e alguém colocou um papel para eu assinar lá”. Deu
para entender que alguém pretendia enganá-lo e que o presidente
assinava sem ler. Resta o fato de que, ao chegar ao poder, o príncipe
dos sociólogos recomendou: “Esqueçam o que eu disse”. Dilma teve um
comportamento de outra dignidade. E não há como duvidar que saberá dar
os passos certos na realização da Comissão da Verdade.
Certos significa também cautelosos, sempre que necessário. E sem o
receio da “saia-justa”. Adequados a tradições que, infelizmente, ainda
nos perseguem. Colonização predatória, escravidão etc. etc. As desgraças
do Brasil. E mais, daninha além da conta, o golpe de 64 a provar no
País a presença insuportável de um exército de ocupação, pronto a
executar os planos dos Estados Unidos com a inestimável colaboração da
CIA e a servir às conveniências dos titulares do privilégio e seus
aspirantes. Os marchadores com Deus e pela liberdade. Que Deus e que
liberdade é simples esclarecer.
O fantasma brasileiro é fardado e não há cidadão graúdo que não o
tema, e também muitos miúdos. Todas as desculpas valem, na hora em que
se presume seu iminente comparecimento, para, de antemão, cancelar o
debate ou descartar as soluções destinadas a provocá-lo. Nada disso é
digno de um país em ascensão e de democracia conquistada. Carta-Capital
acredita que a presidenta saberá exorcizar o fantasma sem precipitar
conflitos. Saias-justas, se quiserem.
Um leitor escreve diretamente para Wálter Fanganiello Maierovitch.
Lamenta a posição dele e de CartaCapital a favor da extradição de Cesare
Battisti. Com urbanidade, felizmente. Enaltece a figura de Tarso Genro,
louva a decisão que precipitou o caso e cita, para demonstrar seu
teo-rema, um livro intitulado Terrorismo e Criminalidade Política, em
que o falecido Heleno Fragoso, professor universitário e célebre
criminalista carioca, se refere às inúmeras leis de exceção promulgadas
na Itália durante os anos de chumbo. Nada disso também é digno do
Brasil.
Fragoso não é o único entre os professores brasileiros que ignoram a
história recente com toda a solenidade condizente com suas becas. A
Itália dos anos 70, entregue ao comando da operação ao general Alberto
Dalla Chiesa, venceu o terrorismo sem recurso a leis de exceção. Houve
sim leis de emergência, que um Fragoso não poderia confundir com
aquelas. Na semana passada publicamos uma entrevista do filho de Dalla
Chiesa, que fez menção a outras leis aprovadas illo tempore, entre elas a
redução a 36 horas da jornada de trabalho por obra da poderosa atuação
do Partido Comunista e dos sindicatos, e a descriminalização do aborto,
que aqui é quimera.
Nas eleições políticas de 1976, o PDC teve 36% dos votos e o PCI 34%,
enquanto os pleitos administrativos davam aos comunistas a maioria das
prefeituras. A Itália dos anos 70, contudo, não era somente de Aldo
Moro e Enrico Berlinguer, mas também de primorosa cultura, representada
por figuras como Norberto Bobbio, Italo Calvino, Pasolini, Sciascia,
Fellini, De Sica, Montale, Visconti e assim por diante. Não bastaria
esta página para nomear a todos, e ninguém era de direita. Um importante
colaborador de Berlinguer, Giorgio Napolitano, atual presidente da
República italiana, enviou uma carta tocante à presidenta Dilma. Ele
renova os cumprimentos pela eleição, mas mira no caso Battisti.
“Não são aceitáveis distorções, negações ou leituras românticas de
crimes de sangue”, escreve Napolitano. A negativa à extradição, acentua
“significa motivo de desilusão e amargura para a Itália”. “Não foi
plenamente compreendida – prossegue – a necessidade de justiça
experimentada por meu país e pelos familiares das vítimas de brutais e
injustificados ataques armados, bem como dos feridos por aqueles
ataques, sobrevividos às duras penas.” E ao cabo lembra que o terrorismo
foi derrotado “dentro das regras do Estado de Direito”.
O Brasil no caso não deve satisfações ao governo italiano, o atual,
aliás, o pior desde o imediato pós- guerra, e sim ao Estado, que o
presidente da República representa. Talvez seja igual a pregar no
deserto recomendar uma boa pesquisa sobre os anos de chumbo italianos a
políticos, magistrados, jornalistas, irados cidadãos atolados em uma
patética patriotada, indigna do país que o Brasil merece ser. Isento o
trabalho, aconselhamos, da singular influência da hipocrisia francesa.
Falo deste nosso atual país onde ainda se verificam cenas do
faroeste. Na sexta-feira 21, o caminhão que carregava para o Rio o
reparte de CartaCapital foi assaltado ao longo da Dutra. Os assaltantes
não eram ávidos de boa leitura: a carga não tinha para eles a menor
serventia, queriam era o próprio caminhão. Renderam e aprisionaram o
motorista, ficaram com o veículo, imediatamente remetido para outro
canto do País.
A última edição da revista não circulou no Rio. Na noite da mesma
sexta tentamos reunir um número suficiente de exemplares para
reabastecer as bancas cariocas. Infelizmente não havia sobras, na manhã
de sábado todos os repartes tinham sido distribuídos. Pelo gravíssimo
percalço pedimos desculpas muito sentidas aos leitores do Rio. Com uma
derradeira observação. Ao recordar os assaltos às diligências dos filmes
western, murmurei para meus espantados botões: a presença de bandos
armados no trajeto da mais importante rodovia do País não é digna do
Brasil que queremos. Os botões me acharam comedido.
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