Sem a ideologia, tendemos a atrofiar e empobrecer nossa relação conosco mesmos.
Leandro Konder
A
ideologia, como sabemos, é uma distorção no conhecimento do outro.
Minha mente, conforme sustentam pensadores dogmáticos, não distorce
nenhuma apreensão da realidade.
O que eu vejo é o
que todo mundo devia estar vendo. O que eu ouço é o que os outros
deviam estar ouvindo. Não preciso mudar nada no meu conhecimento da
realidade.
Os antigos romanos criaram a palavra
alter, que em português passou a significar outro. Se formos fiéis à
história dessa palavra, veremos que o termo original já nos diz com
clareza que só podemos conhecer de fato o outro, alterando-o. Quer
dizer: para entender o que é diferente, é necessário ir ao outro. Viver a
aventura de se modificar.
Nós, neste valente
semanário, que é o Brasil de Fato, reunimos e transformamos realidades
empíricas que precisamos usar contra as mentiras contadas pelos nossos
inimigos. Evitamos, porém, alimentar a ilusão de que vamos convencê-los.
Não
sei da existência de nenhum banqueiro, de nenhum latifundiário, de
nenhum milionário, que se ponha realmente à disposição dos grandes
movimentos sociais. Eles alegarão que estão sempre sob a pressão
plebeia, cercados por adversários implacáveis; dirão que, se não se
defenderem, com energia acabarão tendo seus bens confiscados e,
eventualmente, suas vidas tolhidas.
A força de
Marx está no fato de ele ter mostrado como a história humana tem se
realizado através das duas coisas: de um lado, o desenvolvimento
econômico, o avanço tecnológico, o “progresso”. De outro, a divisão que
os privilegiados mantêm a qualquer custo, reprimindo os movimentos dos
de “baixo”.
Nesse segundo sentido, a educação que
a burguesia organizou e proporciona ao povo ensina os trabalhadores a
repetir velhos preconceitos e acaba desmoralizando a própria ideologia.
Nas
discussões a respeito das inevitáveis distorções ideológicas, aparecem
sempre alguns “mussolinis” que proclamam desavergonhadamente o
assassinato da verdade pela ideologia. Para proteger o caroço de verdade
que a ideologia possui (ao lado da mentira), a esquerda teve o mérito
de inspirar um poeta/cantor brasileiro – Cazuza – que reivindicou para
ele e seus camaradas a liberdade de possuir sua própria ideologia
(Ideologia, eu quero uma pra viver...).
Em Marx, a
atitude em face da ideologia é afrontosamente negativa. O poeta Cazuza,
entretanto, dispõem-se a enfrentar a confusão ideológica dos seus
inimigos (e, se for o caso, também de alguns amigos).
Marx
e Cazuza se dão conta, por diferentes caminhos, do uso da distorção
ideológica e tratam de combatê-la. Para o filósofo alemão, ideologia é
uma categoria que diminui muito a credibilidade do conceito. Marx
sustenta que a chave da ideologia está no fato de que a burguesia
explora o trabalhador, deixando oculta a chamada mais valia.
Cazuza
é menos “radical”. Seu canto o mostra plenamente inserido na realidade,
mas sem se comprometer com as categorias do pensamento
teórico-político. Seus heróis “morreram de overdose” e seus inimigos
estão no poder. Por isso, ele canta: “ideologia, eu quero uma pra
viver”.
Atualmente, o que se vê é a presença do
pensamento conservador pragmático que desfaz as críticas que lhe são
feitas em nome de critérios exclusivamente utilitários e deixa de lado a
análise critica dos fenômenos ideológicos. Para a superação da
ideologia, é imprescindível abrir espaço no pensamento para a
autocrítica. Não uma lenga-lenga que finge ser autocrítica, contudo é
apenas o auto-elogio de intelectuais a serviço da burguesia.
Sem
autocrítica, é impossível aprofundar nossas ideias a respeito da
ideologia. Sem a ideologia, tendemos a atrofiar e empobrecer nossa
relação conosco mesmos.
Temos manifestado falhas e
deficiências no nosso trabalho teórico. O que nos consola é o fato de a
burguesia não ter resolvido nenhum dos problemas que ela vem
enfrentando nas últimas décadas.
Leandro Konder é colunista semanal do Brasil de Fato.
Publicado originalmente na edição 414 do Brasil de Fato
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