A
idéia foi dar um panorama de como o império vai consolidando sua forma
de ser na capilaridade da vida cotidiana através da escola, dos meios de
comunicação, da vestimenta, da comida, da indústria do entretenimento,
da moda etc... Como um conta-gotas, misturando-se aos diversos aspectos
da vida cultural, grande parte das vezes sem usar a força bruta, o modo
de vida do império toma conta das gentes, até parecer ser natural
esquecer os mitos locais, os pratos típicos, a maneira de viver, as
brincadeiras, e até a língua. A cultura, expressão material da realidade
humana, na América Latina, segue cativa do colonialismo e a tarefa de
descolonização mostra-se, às vezes, grande demais, para os países que
continuam sem uma alternativa política nacional/popular. Nestas
Jornadas, discutiu-se a situação dramática da América Central, as
tentativas de mudança na América do Sul e a proposta ainda solitária de
Cuba, que desde há 50 anos busca a criação de um pensamento próprio,
baseado na cultura nacional. O totalmente novo ficou por conta da
perspectiva indígena, que desde os anos 90, assoma na América Latina,
recuperando elementos chave de sua cultura ancestral.
Poucas
pessoas desconhecem a força da cultura estadunidense na vida da América
Latina. Desde que proclamaram sua independência da Inglaterra, em 1776,
os Estados Unidos da América do Norte decidiram trilhar o caminho da
rapina e da dominação. Como foi o primeiro país a realizar o feito de se
libertar da colônia em todo o território do "mundo novo", nada poderia
ser mais natural que os demais povos o vissem como um exemplo a ser
seguido. Mas, o que veio logo depois já deveria ter servido como um
sinal de que as famosas "13 colônias", agora livres e unificadas, também
iriam arvorar-se a disputar o cargo de donas do mundo. A doutrina do
"destino manifesto" - que tinha por princípio defender a idéia de que os
colonos norte-americanos de origem calvinista teriam sido eleitos por
Deus para comandar todos os povos da terra, com a missão civilizatória
de ocupar os territórios situados entre os oceanos Atlântico e Pacífico –
levou à trágica conquista do Oeste, com a destruição de nações
indígenas inteiras. O massacre dos povos locais expandiu o território e
aguçou a pretensão de fazer daquele país um império. Naqueles dias, os
governantes já faziam uso de armas químicas como bem mostra essa célebre
frase do presidente Benjamin Franklin "Se faz parte dos desígnios da
Providência extirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores
da terra, parece-me oportuno que o rum seja o instrumento apropriado.
Ele já aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa". E assim
foi.
Poucos anos depois da independência, já no século XIX, outra
doutrina expansionista iria ganhar corpo, a doutrina Monroe, que pregava
a idéia de a "América para os americanos". No discurso, os governantes
estadunidenses afirmavam a necessidade da independência das terras
latino-americanas, mas, na verdade, tudo o que queriam era anexá-las aos
seu círculo de poder, já configurado como imperialismo.
Assim, em
1820, quando a América Latina dava consequência ao sonho de libertação,
o governo estadunidense invadia o que hoje é o Texas, ocupando também a
Califórnia, o Novo México, Nevada, Arizona e Utah. Com esta segunda
incursão expansionista (a primeira foi a que anexou os territórios
indígenas do centro do país) roubava grande parte das terras mexicanas,
conformando pela força das armas e da destruição o seu atual território.
Nesse sentido, em 1850 os EUA já eram um império, no modo de operar e
na política de disseminação da cultura de dominação.
Terminada a
operação de ocupação das terras mexicanas, os dirigentes do país se
voltaram para a América Latina recém liberada. As guerras de
independência já tinham sido travadas e os estados-nação começavam a
formar-se. Era necessário, na visão dos estadunidenses, que alguém
ficasse no comando e esse alguém eram eles, coisa já definida por deus
no destino manifesto. É a Nicarágua, em 1855, o primeiro país a ser
ocupado pelas tropas do já formado império, pelas mãos do mercenário
William Walker que desembarca e se faz presidente, distribuindo terras
aos fazendeiros do sul dos EUA. Depois, em 1898, é a vez de Cuba,
tirada da Espanha e transformada em quintal estadunidense, um
protetorado que durou até 1933. No mesmo ano de 98, o Havaí também é
ocupado, sendo colônia até hoje.
Quando o século XX nasceu, trouxe
com ele a sede de expansão do império estadunidense, que nunca mais
parou. Intrigas muito bem urdidas lograram a separação do Panamá da
Colômbia e lá ficou o pequeno país, com a riqueza de um canal ligando os
dois oceanos, nas mãos do império. Como bem lembrou Rafael Cuevas
Molina, da Universidade Central da Costa Rica, presente nas Jornadas
Bolivarianas, a América Central passou a ser um espaço estratégico para
os Estados Unidos e desde então, nunca mais conseguiu caminhar com as
próprias pernas. A cada tentativa de garantir soberania, os países eram
invadidos e submetidos aos desejos dos governantes estadunidenses.
Pouco
depois da Primeira Guerra Mundial, num mundo devastado pelo conflito,
os Estados Unidos iniciaram outra estratégia de dominação na América
Latina. A proposta era conquistar corações e mentes pela via da cultura.
Enriquecido pela indústria da guerra, os EUA deram linha para a
indústria cultural. Inicia-se um período de ouro no cinema, no qual os
filmes eram produzidos para propagandear o "modo americano de ser". O
mito do mundo livre, das oportunidades para todos, da democracia, vai se
construindo e invadindo a América Latina. O círculo do far west
(corrida para o oeste) demoniza os índios, transformando-os em
assassinos sanguinários, enquanto os cowboys (vaqueiros) era pintados
como heróis. A completa inversão de valores. Em toda América Latina
esses produtos culturais se popularizaram e em pouco tempo as crianças
sabiam mais de John Wayne do que de seus vizinhos. Estava aberta a veia
da dominação "limpa". Igualmente, os açucarados filmes românticos
mostravam o jeito de ser da sociedade estadunidense, gravando nas
cabeças latino-americanas o desejo de ser como aqueles heróis que
infestavam os cinemas de todos os países. No campo da comunicação de
massa, o rádio também reproduzia a propaganda do "mundo livre" e com
ela, introduzia nos países as megaempresas que iriam dominar
economicamente cada pedaço desse chão. No Brasil, o repórter Esso,
noticiário diário, era um fenômeno de audiência. Só o que se noticiava
ali, sob a chancela da Esso, era considerado verdade.
E é essa
forma de dominação - que ocorre num terreno aparentemente invisível -
que as Jornadas Bolivarianas se propuseram discutir. Compreender qual o
alcance desta política ainda hoje nos países latino-americanos e
encontrar as brechas para sair do atoleiro da dominação cultural.
A América Central
Na
franja de terra que separa as Américas do Sul e do Norte, a vida nunca
foi fácil, desde a dominação espanhola. Depois, com a influência
estadunidense, as condições de vida das gentes só pioraram. Sem os
"patrões" europeus, os países da América Central e do Caribe passaram a
ser dominados pelas grandes empresas estadunidenses, principalmente as
chamadas bananeiras. No controle da economia, elas ainda tinham pleno
domínio da política e elegiam e derrubavam governos ao seu bel prazer.
Eram um estado dentro do estado. Assim, as regiões que antes eram
espaços das culturas Caribe, Chicha, Maya, Kuna e outras, passam a
receber mão de obra escrava vinda da Jamaica, já inoculada com a cultura
britânica, a qual tinha absorvido com a colonização. Com o enclave
bananeiro, o modo de vida que passou a ser hegemônico foi o
estadunidense. "O planejamento urbano, a religião, a cultura, a
arquitetura, a língua, tudo estava ligado com a vida nos Estados
Unidos", diz o professor da Universidade Nacional da Costa Rica, Rafael
Cuevas Molina.
Segundo ele foi Augusto César Sandino o primeiro a
se insurgir contra essa dominação que já extrapolava o campo do
território e se espraiava pela via da cultura. Quando no início do
século XX os EUA invadem outra vez a Nicarágua para tomar conta do canal
e desde ali frear a revolução mexicana, Sandino aparece com seu
"pequeno exército louco", dando vida a um nacionalismo
latino-americanista e antiimperialista, capaz de mostrar que seria
possível a vida sem as megaempresas e sem o domínio do mal nominado "Tio
Sam" (já que irmão de nossa pátria ele não, como dizia Alí Primera). E é
essa idéia que vai incendiar as lutas populares nos anos 60 por toda a
América Central com o surgimento dos movimentos armados de libertação
nacional.
O resultado de décadas de lutas insurgentes,
praticamente todas derrotadas, é o que se vê na realidade atual. A
constituição de um Estado terrorista, que torna naturalizada a cultura
da violência e da discriminação. Os anos 80, que marcaram o derrocamento
das propostas revolucionárias, ainda trouxeram consigo as reformas
neoliberais, esgarçando um pouco mais o frágil tecido social. O
resultado disso é uma identidade cultural esfacelada, o que torna ainda
mais fácil a dominação. E, se a bananeiras já não tem mais poder na
América Central, o espaço foi tomado pelas empresas maquiladoras, que
seguem trabalhando no mesmo velho ritmo: trabalho precário, produção de
coisas que as gentes jamais usarão e esgotamento total das pessoas. O
que sobra é a violência, a pobreza, o crime organizado e as gangues
juvenis. Sem horizontes de futuro, os jovens ou se matam ou migram. E,
de um jeito ou de outro vão se transformando em uma cópia mal feita dos
jovens empobrecidos do centro do poder. "Na América Central, hoje, os
ricos sonham com Nova Iorque, os de classe média sonham com Miami e os
pobres com o que vêem na TV. Isso é uma mostra segura de que há um mal
estar cultural. Todos, de alguma forma, imitam a vida dos EUA".
A comunicação é a via de transmissão do imperialismo
Se
nos anos 30 os EUA iniciaram sua corrida às mentes do povo
latino-americano pode-se dizer que isso segue sendo feito num ritmo
frenético. Usando a velha tática da repetição, a indústria cultural
estadunidense continua hegemônica em praticamente todos os países. O
cinema exporta o modo estadunidense de ser, os programas de televisão,
as séries, os desenhos animados, as teorias culturais, os movimentos
artísticos, a estética, a filosofia. Tudo é colonizado. E, os meios de
comunicação bombardeiam o cérebro das pessoas diuturnamente. Romper essa
dominação colonial requer mudanças drásticas na vida dos países, ensina
o jornalista uriguaio/venezuelano Aram Aharonian, um dos formuladores
da proposta da Telesur – um canal de televisão latino-americano.
Para
Aram é impossível mudar qualquer coisa nos países que vivem dominados
culturalmente, se não houver primeiro uma mudança radical de paradigma.
"Há mais de 40 anos que não temos uma teoria nova na comunicação. Tudo
copiamos dos gringos". Essa formulação teórica tem de ser própria, fruto
da realidade local. Já basta de pensar com a cabeça mergulhada num
mundo que não é nosso.
Mas, fazer isso tampouco é fácil, uma vez
que o império, ao ser confrontado com novas teorias e paradigmas usa de
todas as armas para absorver o impacto, usando-as para contra-atacar.
"Nós pudemos ver isso quando na Telesur colocamos nossos apresentadores
de maneira bem informal, como são os latino-americanos. Não passaram
dois meses e lá estava a CNN em espanhol copiando nossa forma de fazer, e
usando isso contra nós". Assim, nossa tarefa parece ser cada dia mais
desafiadora.
Aharonian adverte que se no mundo da arte, da cultura
e da comunicação estamos cada dia mais enfeitiçados pelo sistema
hegemônico, a única saída parece ser liberar os 1.400 cm cúbicos de
cérebro que cada um tem. É a capacidade de pensar com a própria cabeça
que definirá o futuro. Aram mostrou que mesmo a comunicação dita
alternativa, que fez sucesso em determinado momento, acabou se
domesticando. "As rádios comunitárias se profissionalizaram e não são
mais o espaço popular, os sindicatos se conformem em ter apenas um
boletim, a palavra está sequestrada pelas empresas. Estamos cegos de nós
mesmos. Não sabemos quem somos e não cremos em nós mesmos. É isso que
precisa mudar".
Uma comunicação libertadora precisa ter o
compromisso de manejar ela mesma a agenda informativa. Os espaços
alternativos não podem ser marginais, precisam almejar ao universal. O
grande desafio é deixar de copiar conteúdos e formas. Criar o próprio
estilo e a partir daí criar redes de comunicação que possam chegar ao
maior número de pessoas. "Nós vivemos a síndrome da praça sitiada.
Ocorre que ela não está mais sitiada, nós podemos romper o sítio. Mas,
para isso, temos de criar nosso próprio paradigma. Já basta de
choramingar e de gritar palavras de ordem. Vamos produzir conteúdo de
qualidade e formar redes. Assim, superaremos a dominação cultural".No
campo do cinema a ordem parece ser a mesma. Sérgio Santeiro, cineasta
brasileiro que bebe na proposta estética e filosófica de Glauber Rocha -
como se pode ver no seu deslumbrante curta metragem "Paixão"
(http://youtu.be/AS3Oep2cCsw ) - desafia a se constituir uma estética
própria, fora dos padrões "roliudianos", que dêem conta da realidade
latino-americana e que provoquem o desconforto gerador da mudança.
Glauber, de alguma forma, conseguiu isso no seu tempo, mas a nova
geração precisa encontrar outro caminho, original. Outra estética para
vencer a lógica da violência e do medo imposta pela arte cinematográfica
estadunidense. Igualmente a proposta do pensamento crítico e próprio,
na senda do ensinamento de Simón Rodriguez, que pregava como um louco a
máxima: "Basta de imitar. Há que criar".
A proposta cubana
Faz
mais de 50 anos que a pequena ilha caribenha, Cuba, busca um caminho
original. Até o triunfo da revolução, a mídia, comandada pelos EUA,
confundia o mundo e os cubanos sobre o que passava no país. Na ilha se
podia viver em inglês, como lembrou o vice-ministro da Cultura, Fernando
Rojas. Depois não. A revolução, pela proposta de liberdade que
carregava, foi definindo uma identidade que até então só aparecia nos
escritos de José Martí. Hoje, depois de acertos e erros, a cultura
cubana segue rechaçando o neocolonialismo que se expressa na invasão do
ar via televisão desde Miami, mas busca estabelecer uma relação
dialógica com a cultura dos EUA. "Nós acreditamos que é preciso conhecer
muito bem essa cultura para podermos conformar um anti-imperialismo.
Mas, a proposta é enfrentar a colonização cultural com o melhor do
pensamento socialista, fazendo assomar a rumba, o guagancon e o balé
nacional de Cuba".
Segundo Fernando, a ilha de Cuba já superou os
tempos em que se buscava importar a experiência socialista do leste.
Atualmente, incorporados os elementos da afro descendência, dos
indígenas, dos descendentes dos colonizadores, as forças políticas do
campo e a cultura popular urbana, tem-se a cultura cubana, tomada por
uma liderança coletiva anticolonialista e anti-imperialista. "Em Cuba há
uma questão que nos parece vital. Todas as pessoas têm acesso à
cultura. Nós não dizemos: crê. Dizemos: lê. E, com isso, os cubanos
recebem gratuitamente o melhor da cultura, inclusive a dos EUA. Fundamos
escolas de arte em todo o país, na montanha e na capital. E esse acaba
sendo nosso desafio. Afinal, temos de pensar em como sustentar isso
economicamente".Em Cuba as políticas culturais significam esforços
estatais e públicos. Vem daí a Casa das Américas, a escola de Cinema e
outras milhares de instituições de cultura de base. "Como tudo isso
custa, agora andamos pensando em cobrar do público para ver um teatro,
por exemplo. Mas é coisa simbólica, nada comparada ao mundo capitalista
no qual é praticamente impossível aos trabalhadores freqüentarem o
teatro".
A polêmica em Cuba agora passa pela discussão do direito
de autor. Segundo Fernando, existem manifestações da cultura popular que
precisam de proteção e que não podem ser apropriadas por este ou
aquele. São construções coletivas. "Mas esse ainda é um debate ainda
inicial". Para o vice-ministro, a originalidade cubana está no fato de o
governo ter uma política cultural que possibilita a liberdade criativa e
a garantia do acesso ilimitado à cultura. É uma aposta na qualidade da
vida das pessoas, pois, com isso, elas se tornam pessoas melhores. Ele
ressaltou que Cuba vive sob bloqueio econômico, mas não cultural. Todo o
lixo produzido no império chega às casas cubanas e, por isso, esse
campo de batalha é tão importante. Vencer aí é fazer meio caminho no
rumo da sustentação da nova sociedade.
O paradigma andino
Se
a questão do enfrentamento do império passa pelo desafio de sermos
originais, o mundo indígena tem muito a contribuir para esse debate. Foi
o que mostrou a socióloga aymara Silvia Rivera Cusicanqui na sua
exposição. Segundo ela os índios há muito que deixaram de ser estudo de
caso e sua cosmovisão assoma como uma proposta de vida absolutamente
diferente da que foi pregada pelo mundo ocidental, europeu. Muito antes
da invasão já havia muitas culturas aqui nestas terras, com histórias
milenares, que, mesmo sob a dominação, mantiveram-se vivas e hoje saem
da obscuridade, oferecendo novas formas de viver no mundo. Sua
originalidade consiste justamente na diferença radical. Enquanto a
filosofia ocidental busca o uno, o mundo andino, por exemplo, trabalha
com a idéia do terceiro incluído: ou seja, os contrários podem sim
conviver e se encontrar. Silvia defende a idéia de que a cultura é um
sistema de significados que não tem como passar pelo mercado. É o
imaginário, o desejo das comunidades, mas ao mesmo tempo é o que se
torna real pela força da arte humana. Segundo ela, na Bolívia, a
esquerda não tem falado em imperialismo ao discutir as mazelas do tempo
presente. "Falam em pós-colonialismo, mais encobrindo do que revelando o
que está por trás de tudo isso". Ela conta que os povos indígenas da
Bolívia sabem muito bem que a identidade naquele país é uma questão
política de primeira grandeza. E tanto que conforme são os dirigentes
mudam as cifras sobre a porcentagem de indígenas no país. Já houve
momentos em que a porcentagem foi de 19%, pulando no ano seguinte para
68%. O trágico é que o racismo contra o índio é algo internalizado
também na esquerda, até porque suas fileiras são formadas por gente que
tem o pensamento colonizado também.
Nos Andes, as comunidades
vivem sob outro paradigma, fora da dualidade maniqueísta ocidental.
"Para nós é fundamental o conflito das dualidades, porque isso é a
energia que nos move". Entre os indígenas das comunidades andinas a
cultura é parte da forma de organizar a vida. Nos tempos mais remotos,
mesmo as obras públicas sempre eram precedidas de grandes festas, de
encontros com dança, música, imagens e gestos, tudo recheado do
simbólico e do sagrado. Mesmo a religião é múltipla, com deuses de
muitas faces, que são anjos e demônios ao mesmo tempo, porque é esse
conflito que move a vida. Coisas bastante difíceis de serem assimiladas
pelos cérebros formatados na mentalidade ocidental. Palavras
desconcertantes para os 1.400 cm cúbicos de racionalidade instrumental.
"Para nós o futuro é algo que está atrás, porque não sabemos dele, o
passado é algo que está à frente, pois dele temos conhecimento. E o
presente é o que de fato importa". Para Silvia a tarefa de
descolonização dos estados na América Latina é árdua e difícil, mas esta
é uma batalha que precisa ser travada. Derrubar o colonialismo, o
racismo, o preconceito. No território que serpenteia junto à cordilheira
dos Andes, as comunidades estão descobrindo suas potencialidades, estão
recuperando suas formas de organizar a vida. "É bobagem pensar que não
podemos ser modernos. Podemos sim. Comunitários e modernos. Temos nossos
paradigmas e nossa cultura. Mas, o fato é que nós vimos o mundo ao
contrário. Nossa lógica é "al revés". Isso precisa ser entendido e
respeitado".
Desafios do presente
A
experiência indígena pode parecer desconcertante num primeiro momento,
já que coloca o mundo de pernas para o ar. Mas a idéia de convivência
dos contrários parece ser a única possível num mundo onde as diferenças
se afirmam cada vez mais. Transitar neste território conflituoso e desde
aí criar o novo é também desafiador. A nova sociedade sonhada pela
racionalidade marxista precisa levar em conta esse paradigma indígena,
precisa incorporar as demandas destas comunidades que assomam cada dia
com mais força. Desconhecer esse mundo é apostar no fracasso. Assim já
foi com Simón Bolívar, quando subestimou a força dos lañeros
venezuelanos e foi derrotado por eles. Só depois de voltar do Haiti, com
os ensinamentos dos revolucionários negros sobre a necessidade de
incorporar a cultura local é que Bolívar logrou a confiança dos
indígenas e, com eles, abriu caminhos para a libertação. Foi assim com
Artigas, na Banda Oriental, que, conhecendo e respeitando a cosmovisão
Charrua, trouxe os indígenas para fazer real o sonho da liberdade. Tanto
Bolívar quanto Artigas respeitaram de verdade a forma de viver dos
indígenas, não fizeram mero uso instrumental, como se vê por aí. Esse
pode ser o segredo.
Em toda a América Latina vive e pulsa uma Abya
Yala, um espaço de propostas que exigem mudanças radicais na forma de
raciocinar sobre a realidade. Outra episteme, outra forma de conhecer.
Não necessariamente precisa-se aceitar toda a cosmovisão que vem destes
povos milenares aqui nestas terras, mas fundamentalmente há que se
incorporar essas formas de ver a realidade. Os indígenas querem estar no
mundo, fazer parte da planetização da vida boa e bonita. Mas eles
precisam ser compreendidos na sua cultura. Assim, no conflito destes
contrários, mundo indígena X mundo colonizado, talvez se possa chegar ao
novo tão esperado. Uma América Latina descolonizada, livre do
imperialismo, aberta para o presente.
Elaine Tavares é jornalista e coordenadora do IELA/UFSC.
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