Setor aposta na educação para manter sua influência, ou alienação, sobre a futura geração de trabalhadores
Eduardo Sales de Lima da Redação do Brasil de Fato
O
cantor e compositor Alceu Valença é um ilustre admirador da
cana-de-açúcar. A pequena Quirinópolis, no sul de Goiás, nunca mais foi a
mesma depois da chegada de duas usinas de açúcar e etanol. O etanol não
compete com os alimentos. A cana-de-açúcar já é segunda maior fonte de
energia limpa do país.
Essas e outras informações
positivas sobre setor sucroalcooleiro estão compiladas numa cartilha. O
problema é que essa propaganda está sendo trabalhada como disciplina em
escolas públicas no interior do Brasil. O Projeto Agora é de
responsabilidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (única) e
atinge educandos da 7ª. e 8ª. séries, com idade entre 12 a 15 anos, em
uma parceria público-privada entre instituições governamentais,
sindicatos e empresas como Itaú, Monsanto e Basf.
Cem
municípios da região centro-sul, espalhados por São Paulo, Minas
Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás, contam com o
projeto. Resumidamente, a apostila usada em sala de aula foca o
desenvolvimento do setor canavieiro no Brasil e o empreendedorismo dos
grandes latifundiários sob a ótica do progresso, sem apresentar aos
alunos qualquer exemplo que venha desvelar contradições trabalhistas ou
ambientais. A apostila não pondera, por exemplo, as contradições do
trabalho escravo e a superexploração dos cortadores de cana-de-açúcar em
tempos atuais. E que a monocultura e o latifúndio sempre foram “avessos
à diversidade produtiva”.
No mínimo, um problema
pedagógico para a economista e educadora Roberta Traspadini. “Não
aparecem as lutas ocorridas nos territórios, as disputas reais vividas
pelos diversos sujeitos sociais, e a produção de processos políticos
antagônicos sobre a apropriação do trabalho”, critica, em recente
artigo.
Ela reforça ainda que o ensino do
agronegócio dentro da escola pública passa por uma “validação da lógica
dominante voltada para os grandes projetos, para a incorporação de um
ser pertencente à vantagem competitiva do grande capital, ou um ser
excluído desta possibilidade”. Não só isso, denuncia-o como um processo
de construção da intencionalidade “educativa” do capital que objetiva
formar um “exército industrial de reserva consciente de sua necessidade
de inclusão dentro da ordem”.
Naturalização
Não
é apenas a Unica que tem seguido essa estratégia de propaganda dentro
do ensino público. Em Ribeirão Preto (SP), as concepções do agronegócio
estão sendo repassadas aos estudantes por meio do projeto “Agronegócio
na Escola” e têm gerado polêmica na cidade. O Conselho Municipal de
Educação entrou na briga e pediu detalhes sobre o projeto pedagógico.
Desenvolvido em parceria com a Associação Brasileira do Agronegócio da
região de Ribeirão Preto (Abag-RP), o programa é utilizado nas aulas a
alunos do 8º e do 9º ano desde 2009. Anteriormente, o projeto foi
aplicado por dez anos na rede estadual. Cerca de 112 mil estudantes da
região já passaram pelo curso.
A Abag-RP oferece
cartilhas aos estudantes e um vídeo, que é utilizado por professores nas
aulas. A cartilha aborda temas como o surgimento da agricultura e sua
modernização. Professores são levados para conhecer usinas e são
capacitados pela entidade.
A Secretaria da
Educação do município e a entidade patronal defendem que o conteúdo
aborda temas regionais importantes, tanto do ponto de vista econômico,
quanto do ponto de vista social, e que trabalham simplesmente com a
realidade em que os alunos estão imersos.
Mas não
é assim que enxerga a integrante do Conselho Municipal de Educação de
Ribeirão Preto, Ana Paula Soares da Silva. Na visão dela, é importante
que as crianças e adolescentes conheçam o agronegócio; o problema ocorre
quando o material auxilia na naturalização dos problemas gerados nesse
meio. “Esse material ajuda a naturalizar as desigualdades, as relações
de propriedade e de dominação”, argumenta. Mesmo dentro da linha da
educação contextualizada, segundo ela, outras práticas deveriam ser
abordadas, como a agroecologia, por exemplo.
“Dominação”
Outro
programa pedagógico polêmico, o Projeto Escola no Campo, a exemplo dos
já mencionados, nasceu em 1991, por meio de uma parceria da Syngenta,
transnacional do ramo de sementes, com a Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo. Ampliou-se para outros estados e até 2007 já havia
atingido cerca de 405 mil crianças de comunidades rurais do país.
Maria
Cristina Vargas, do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), relata o quão grave é a transmissão dessas
ideias à população jovem do campo. Segundo ela, por meio desse projeto
tenta-se convencer os estudantes, por exemplo, da positividade da
relação entre sustentabilidade e utilização dos agrotóxicos. “Eles
trabalham que o saudável é o bonito, é a plantação limpa, sem ter a
diferenciação de outras espécies, a diversidade de culturas”, denuncia a
educadora.
Segundo Ana Paula Soares da Silva,
não é necessário ir muito a fundo no debate para concluir que os
materiais pedagógicos distribuídos pelo agronegócio tentam esconder
diferenças e intenções de “classe”. “A intenção é de que as pessoas vão
aceitando isso, deixando de ser o sujeito histórico, com a possibilidade
de mudar a história. Não são projetos que incluem, não são projetos de
justiça social; mas de dominação”, arremata.
O Brasil de Fato
entrou em contato com assessoria de imprensa da Unica, que afirmou
ainda não haver um posicionamento sobre as críticas ao Projeto Agora.
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