Escrito por Demetrio Cherobini no Correio da Cidadania | |
Resisto a tudo menos minha própria diversidade,
Sou vasto... contenho multidões.
Walt Whitman
A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o
capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto
de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e
oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não
concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma
da previdência, então em curso (1).
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o
todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política
indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração
exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo
dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a
neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla
e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da
presente sociedade (2). Demonstrou, acima de tudo, como o referido
partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se
estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e
contradições.
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse
modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se
configura de maneira hierárquica e autoritária, visando eliminar toda e
qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a
mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento
perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o
filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo
trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a
negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente
afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a
negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a
afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativa e
horizontal entre os "produtores livremente combinados" (3). Tal
alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina
de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar
as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes
mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é
possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para
o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto
revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos
autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento
de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August
Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de
Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia
burguesa ele (Liebknecht) trouxe e manteve uma verdadeira mania de
unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta
de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que
"é um engano acreditar que este sucesso momentâneo (isto é, a unidade em
redor de um movimento político) não será comprado a um preço muito
alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se
devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as
organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a
supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era,
evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam
pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde
homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas
potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão
que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos
dos movimentos socialistas da atualidade.
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a
classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na
verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes
antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais
em torno da qual se baseia o sistema vigente (4). Por isso, o que é
desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não
a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos
diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores.
Como explica Mészáros, "Assim como naqueles dias (isto é, nos tempos de
Marx e Engels), mais uma vez este assunto é de suprema importância. Pois
hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do
passado recente e do não tão recente – não é mais possível conceber as
formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de
um pluralismo socialista, que não só reconhece as diferenças existentes,
mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na
estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa
identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios
socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição
de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre
princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha
sobre princípios" (2002, 812).
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir
que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e
multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes
sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do
PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre
princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sócio-metabólica
vigente (5).
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é
aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades
concretas inerentes aos variados setores do proletariado (6) em função
do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação
conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver
os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre
acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que
configura o sistema do capital.
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da
transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto
unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao
contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que,
reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de
realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua
totalidade.
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da
emancipação "só estará apto para criar as condições do sucesso se
abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinarem
em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação
estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de
todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele
colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do
capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e
historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que
estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse
comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital.
Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na
garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente" (2004,
51).
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de
setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições
particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do
trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um
interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração
fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em
direção a uma sociedade emancipada.
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel
fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para
uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar
com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O
pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores.
Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva
superação do sistema do capital.
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a
maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz:
hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com
vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente
força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas
se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e
de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em
torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois,
estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva, (7)
em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do
movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo,
"prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as
tarefas que possam se apresentar" (8) - 2004, 52. E para que tudo isso
possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de
uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo
mesmo de confrontação prática com a ordem do capital (9).
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de
fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais.
Depois do tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as
novas forças socialistas a se constituírem precisarão se reformular sem
repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos
políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se
articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão
condenados ao fracasso e à impotência.
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte
sobre o todo e na barganha sobre princípios –, é imperioso coadunar
grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em
redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos
homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre
dos produtores", como a chamou Marx.
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que
construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se
continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos
esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao
contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos
entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma
chance.
Notas:
1) Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os
deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a
reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos
conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário
mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior
entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver
Oliveira (2006).
2) Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas
assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da
conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras
gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não
hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para
implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade,
que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que
tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
3) Este conceito de crítica – articulação material de negação e
afirmação no sentido de promover a "transcendência positiva da
auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em
praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito:
Mészáros (2008).
4) Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma
multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a
categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas
as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a
'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade
homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente,
inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas
entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as
outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas
particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa
atual situação de apuro. (...) Essas divisões e contradições restam
conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e
funcionamento do próprio sistema do capital" (2007, 66).
5) A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos
Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida,
evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam
a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural
do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema
sócio-metabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo,
não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior
compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver
Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo
dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
6) Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente
como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado,
enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que,
sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção,
se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o
sócio-metabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse
controle.
7) A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com
base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade
deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do
consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas (grifo nosso).
Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez
libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força
que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede
abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu
camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do
comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas
consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid.,
42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição
a serem implementados na fase superior da sociedade socialista: não a
igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho
realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não
alienadas dos indivíduos sociais.
8) Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente
pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores
saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de
superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o
autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as
demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às
necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais –
empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim
como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra
a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas
sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente
diferente quando não são consideradas como questões singulares,
isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que
constantemente as reproduz como demandas não realizadas e
sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a
sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como
demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado
separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa
'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma
função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de
afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente
auto-motivadoras no front mais amplo possível" (2002, 818). Ou seja, as
"demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde etc. –
são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o
essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e
sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório
mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje
majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle
sócio-metabólico do capital.
9) Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação
revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não
formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência
e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma
histórica.
Referências:
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de,
BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia,
política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo,
2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência
entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b.
Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/. Acesso em 03/01/11.
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
domingo, 10 de abril de 2011
István Mészáros e a imperiosa necessidade do pluralismo socialista
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