domingo, 3 de julho de 2011

Sigilo eterno


Como teria sido importante o povo brasileiro ter direito à transparência histórica!


Frei Betto no BrasilDefato

Encerrado o apocalipse, julgados vivos e mortos na grande assembleia universal do Vale de Jericó, Matusalém e Noé, encarregados do rescaldo final, encontraram nos escombros de Brasília, espalhados entre ruínas dos ministérios, os arquivos ultrassecretos da República.
― Veja só, Noé, esses aqui trazem o carimbo de “sigilo eterno”.
― Eterno!? Essa gente não deu ouvidos ao que disse Jesus, que tudo aquilo que se passasse às ocultas seria proclamado nos telhados? Do que as autoridades brasileiras se envergonhavam? – indagou o ancião da arca.
― Vejamos esses papéis aqui. Tratam da Guerra do Paraguai. Eis o relatório da atuação do comandante Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias... Nossa, Noé, que coisa!... Como os soldados brasileiros foram cruéis com os paraguaios!
― Soldados, Matusalém!? Leia isto aqui: escravos arregimentados sob a promessa de uma liberdade que nunca veio. A maioria teve a morte como prêmio de combate.
― Nossa, Noé, e o Barão do Rio Branco! Como ele ousou ampliar assim, na cara de pau, as fronteiras do Brasil!?
― É, Matu, por isso há quem, no Itamaraty, prefira que os documentos fiquem à sombra das barbas do barão. A história se faz entre heroísmos e baixarias. Só que sempre foi escrita pelos vencedores, jamais pelas vítimas. Isso de “sigilo eterno” foi para jogar as infâmias pra debaixo do tapete.
― Veja isso aqui, Noé, os arquivos da ditadura militar. Repare neste mapa: assinala quando, quem, como e onde foram presas, torturadas e assassinadas as vítimas cujos corpos jamais foram localizados e pranteados por suas famílias. E ainda constam os nomes dos militares que participaram de torturas, assassinatos e seqüestros.
― Matu, e este documento aqui, que vergonha!
― Vergonha por quê?
― São os “decretos secretos” da ditadura. Como um documento público, o decreto, pode ser secreto? Isso é o mesmo que alguém se apresentar como ladrão honesto...
― Ora, Matu, vergonhosos são esses papéis que tratam dos governos Sarney e Collor.
― O que há de interessante neles?
― São dados estarrecedores! Quanta sujeirada em tantos governos do Brasil! Haja tráfico de influência, corrupção, nepotismo e favorecimentos. Agora compreendo por que as autoridades brasileiras sonegaram aos historiadores tantos períodos e fatos da história do Brasil!
― Naquela pasta ali – disse Noé – estão as licitações secretas da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil. Haja maracutaia! Obras que ficariam em quinhentos foram multiplicadas por bilhões!
― Pena que o mundo acabou, a história findou e toda essa gente virou pó. Como teria sido importante o povo brasileiro ter direito à transparência histórica! Com certeza teria evitado que a nação repetisse tantos erros e reelegesse aqueles que distorceram os fatos e os encobriram para perpetuarem uma boa imagem que jamais mereceram.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira”, entre outros livros.

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