quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Expointer e Agricultura Familiar: pasteurização da utopia

 
Ana Carolina Martins da Silva *


O sonho pelo qual eu brigo exige que eu invente em mim a coragem de lutar ao lado da coragem de amar. (Paulo Freire)

A EXPOINTER, quem diria, começou no Parque da Redenção. Segundo dados da SEAPA (Secretaria da Agricultura, Pecuária e Agronegócio do Gov. Do RS), essa movimentação iniciou em 1901, no Campo da Redenção, hoje Parque da Redenção. Conhecida como Exposição Estadual, em 1972, com a oficialização da participação de outros países, a feira passou a chamar-se Expointer – Exposição Internacional de Animais. Atualmente em Esteio/RS, na sua 34ª edição internacional, a Feira apresenta novidades em agropecuária e agroindústria, sendo divulgada como um cartão de visitas do agronegócio do Rio Grande do Sul [...]

A palavra Agronegócio não parece ter muito a ver com a palavra família. Uma parece ligada ao mundo fora de casa, a outra, ao mundo de dentro. Entretanto, tangenciada cada vez mais para fora de casa, a família tenta sobreviver como pode no mundo do capital e sua estada dentre grandes nomes dos negócios parece merecer um estudo antropológico. A prova disso é o Pavilhão da Agricultura Familiar. Considerando que todos os outros segmentos do Agronegócio são tocados, em sua linha geral, por famílias, como a questão das grandes fazendas, da criação de cavalos crioulos, as plantações de arroz, de soja, dentre outros, o que pode ter de tão diferente nesse tipo de trabalho que mereceu ter o nome “familiar” elevado a título de Pavilhão? Geraldo Hasse, em reportagem no periódico on line Sul21, grafou uma mensagem, no mínimo, assustadora: Expointer 2011 eleva a autoestima da agricultura familiar gaúcha. Pego o título, porque a reportagem em si, reflete o que Hasse viu, não vou debater com seu jornalismo altamente qualificado, tampouco sua opinião que em certos momentos perpassam nas entrelinhas e com a qual me sinto afamiliada.

Reflito sobre o que pensei ao ver o título. Ao desmembrarmos esse título, temos algumas discussões bem graves: o fato de que se existe uma agricultura familiar em destaque, possivelmente existam outras agriculturas que não são familiares; o fato de que a autoestima da agricultura famíliar poderia estar baixa; o fato de que – essa – de 2011, em especial, elevou a autoestima da agricultura familiar.

Pegando a primeira discussão, abordo o que vi, porque não faço parte. São mundos diferentes, dentro do mesmo espaço físico, numa forçação de barra de igualdade que nem de perto existe. As outras agriculturas não são ligadas à vida, considerando o equilíbrio ecológico parte fundamental, ou ao que a família idealizada por alguns de nós se vê, como um ninhozinho de amor envolvendo todos os elementos Planeta Terra. São ligadas ao monocultivo, seja de clássicos, como exemplo, cito o arroz, ou a soja, ou novidades, como o monocultivo de árvores para a celulose.

Essas agriculturas não trabalham para a família, trabalham para o capital. Mesmo as famílias que lidam com isso, longe dos sonhos de manutenção financeira de sua prole, hoje, estão a serviço do capital, são reféns de sua movimentação. É como se a outra agricultura, a dos “pequenos” fosse uma coisa distante, folclórica, quando se compara as duas. Entretanto, essa – de mercado – destrói o ambiente, apossando-se dos recursos naturais que são coletivos e devolvendo à sociedade a natureza violada, sugada, envenenada, desmatada, destruída, enquanto seus produtos, embalados em saquinhos de rótulos maravilhosos são vendidos à própria sociedade por valores que poucos podem pagar. Ao olharmos a pecuária, poderíamos talvez manter um projeto de autosustentabilidade de uma vila inteira por anos, com o valor de apenas um touro, “gordo e lustroso como gato de bolicheiro.” Talvez a das mais graves diferenças entre a família da Agricultura Familiar e a família que vive do grande agronegócio seja a aceitação de todos os passos destrutores do capitalismo. A prova disso é que há anos, o agronegócio vem garantindo, a cada eleição, em todos os níveis, fortunas para políticos profissionais defenderem leis que os protejam nesse abuso. A Agricultura familiar faz campanha para pessoas que representam projetos, o Agronegócio faz campanha para pessoas que obedeçam ao Projeto do Capital. Na minha opinião, é isso.

A segunda discussão é o fato de que a autoestima da agricultura famíliar poderia estar baixa. Circulou em agosto desse ano, um texto de Amilton Fernando Munari, o Amilton das Sementes, de Maquiné, divulgando a participação na EXPOINTER, com o convite para visitá-lo lá. Nas palavras do Amilton não há nada de autoestima baixa, ao contrário. Percebe-se que a ocupação do espaço da EXPOINTER significa uma vitória de uma causa que se sabe grandiosa.

Dizia o texto: “Voltam as sementes a brilhar no Pavilhão da Agricultura Familiar (PAF) na Expointer em Esteio RS, do dia 27 de Agosto a 04 de Setembro,desta vez junto a tempos prometida, polpa de Juçara. Depois do Coletivo da Biodiversidade,com 7 empreendimentos, do qual fiz parte por 6 anos, ter sido cortado pela Secretaria de Desenvolvimento Rural, isto devido a exigência de substituição, me inscrevi novamente junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, do qual sou secretário, pela Fetag, foi necessário a Emater fornecer a Declaração de a Aptidão(DAP),mais com meu bloco de notas e alvará sanitário da Agroindústria, assim ocuparei um estande no PAF. Não tinha a pretenção, mas governo e movimentos escolheram a polpa de Juçara o produto destaque em inovação, que será apresentado este ano e a mídia vem aí.”

Essa série de exigências (como a que surgiu nesse ano, de que as agroindústrias terão de atualizar suas máquinas de suco, incluindo outras, que pasteurizam, esterelizam, e outros que tais, cujo custo é uma pequena fortuna) e de subsituições e inovações voltam a confirmar o que se sabe, que a inclusão do termo familiar, muitas vezes é uma forma de exclusão. Contempla a presença, mas não dá condições de atuar. A Associação Içara, da qual Amilton faz parte, ficou apertada num cantinho no Pavilhão, e suas sementes crioulas, que também não poderiam estar presentes, foram foco de maior atenção de todos os produtores familiares e, também de integrantes dos pavilhões dos “ricos”, que vinham sistematicamente à banca procurar a riqueza da biodiversidade. Devido à militância e sua história como Passador de Sementes, Amilton manteve as sementes, em um balcão minúsculo, onde as pessoas faziam fila, se apertavam, perguntavam sobre o plantio e – com muita pena – contavam a ele sobre a perda de diversas espécies, cujas sementes não achavam em lugar nenhum, como a mandioquinha salsa. A quem interessa isso? Eu estive lá, durante três dias fiquei na Banca da Içara, junto com o Amilton e o Ricardo Dalbem, biólogo da Associação, revesando na máquina de Suco, na explicação das sementes e da manutenção da nossa Juçara, a Palmeira que alguns matam para comer o Palmito, e, cujo o fruto tem elementos nutricionais, em muito, superiores ao Açaí da Amazônia. Esse processo todo de resistência da Juçara, por pouco também não está lá, como comenta Amilton em seu texto: “Mesmo não sendo possível a inscrição da Associação Içara da qual sou coordenador, onde seria necessária DAP jurídica, (80% dos sócios comprovarem 80% de renda da agricultura), continua o nome do estande Associação Içara como definimos em reunião e não mais Família Munari como antes, esperando o melhor, que se vejam as possibilidades de atuação dentro do movimento dos agricultores, e consequente visibilidade para projetos futuros.” Consequência de uma escala de produção de pequenos grandes homens e mulheres do litoral, o suco da Juçara levava às pessoas ao delírio.

Todos o achavam delicioso e ficam extremamente chocados ao saber que a Palmeira é morta para se tirar o Palmito, em detrimento de uso dos frutos tão maravilhosos. Segundo Amilton: “A produção está sendo na agroindústria do Isaias em Morro Azul, também nos aplicamos para concretizar o rótulo da Içara, e trabalhar em parceria na Amadecon em Boa União. Em um cenário de frutas, mudas e sementes,o contato com o povo, agricultores, consumidores, será um grande aprendizado.” Ao todo, experimentaram o suco da nossa Juçara gauchinha aproximadamente três mil pessoas. Três mil pessoas que foram tocadas pelo sabor, pela consciência de preservação da Mata Atlântica, pela ação da Associação Içara, de Maquiné. Essa, talvez seja outra diferença entre a Agricultura familiar e as outras. Na Familiar, a idéia é que todos sejam contemplados pela vida, a troca e a solidariedade são constantes. Vai pelo Brasil a mensagem da floresta! Numa passada pela Banca da Associação Içara, o Ministro Afonso Florence confirmou a participação da polpa da Juçara na feira anual em Brasília ¨”Brasil Rural Contemporâneo”.

Isso me joga para o último fato que consigo abarcar nesse texto, o de que – essa – de 2011, em especial, elevou a autoestima da agricultura familiar. Como o Hasse mesmo mencionou em seu texto, essa é “A primeira Expointer do governo Tarso Genro” e ainda “tendo como protagonista central a agricultura familiar”. Para Hasse, o que o levou a crer que a autoestima desse segmento nunca esteve tão elevada, foi que o pavilhão da agricultura familiar foi de longe o mais frequentado da 34ª Exposição-Feira Internacional de Animais e Máquinas. Isso, somado à pressão das organizações familitares presentes, fez com que se decidisse a ampliar a área do segmento familiar em 2012. Para mim, há mais coisas, essa, de ser o Governo do nosso Tarso, essa de vermos Ivar Pavan Como Secretário do Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo, vermos um Secretário prometendo que o espaço dos produtos orgânicos será maior na próxima feira, ou ainda, estar orgulhoso ao dizer que 86% da totalidade das propriedades rurais do Estado dos estabelecimentos atendidos pela sua secretaria são de base familiar. Políticos de todas as espécies fizeram pose em frente às bancas, políticos do bem e políticos do mal. Os do bem, deixaram saudades e militância, os do mal, deixaram propagandas impressas com seu nome.

Voltando ao antagonismo que vi entre a palavra Agronegócio e a palavra Família e começando a encerrar, cito um dos comentários mais frequentes que ouvi, o sobre o preço dos reprodutores de “puro sangue” de todas as espécies na feira, de galos, touros, cavalos, outros! Parecia que todo mundo estava pasmo. O “estar pasmo” me mostrou que a população está cada vez mais ciente de que isso não tem cabimento, é uma cadeia que libera verba para alguns e aprisiona outros, inclusive os que ainda mantém seus semens, suas sementes. Observei isso em relação aos poucos homens que vi, também muito concorridos na Feira – e lindos – de todas as cores, todas as pilchas, todas as etnias, todas as idades, cada qual com seu sonho no olhar e uma mulher, enquanto centenas de mulheres graçavam sozinhas pelos pavilhões. Sob meu olhar entristecido enquanto espécie, vi estampado o desequilíbrio de gênero, causado pelo estresse, pelos poluentes químicos e tudo mais que influencia na fertilidade e na sexualidade humana. Afinal, quem mais aguenta ser vítima do Capitalismo? O tal do capitalismo que faz “pioramento” de sementes, que faz envenenamento de tudo, que faz pequenos animais monstros, para vender em partes, mais peito, mais pelo, mais carne, mais ovos, mais grades, mais encarceramento para mais produtividade. Quando penso que tal modelo tem trazido fim de espécies, tem trazido endemias, tem trazido evasão rural, miséria, endividamento, suicídios, confilitos por terra e campo, me revolto! Afinal, quem leva vantagem real nesse negócio?

Fim de mais uma EXPOINTER. A vida continua, as lutas continuam. Uns vão para suas mansões em carrões, outros para suas propriedades rurais empilhados em ônibus, outros de trem, para seus ranchos urbanos “apinchados” uns em cima dos outros, outros de carros utilitários, para casas com seus pátios e hortas, enfim, acredito que, como toda Feira, a EXPOINTER deixa esse saldo positivo: o enfrentamento de todos os conceitos, todos os paradigmas que movem o mundo. “Temos de nos mover dentro de uma sociedade capitalista”, disse o Ivar Pavan, citado por Hasse. Eu concordo. Temos de nos mover dentro da sociedade capitalista, fazer a roda dela girar e girar e ir colocando pedrinhas em suas engrenagens, tanto, até quebrá-la.

Como disse, não faço parte do mundo da Agricultura Familiar, nem do Agronegócio. Meu mundo é de todas as lutas no âmbito do Magistério. Conto o que ouvi e vi ao lado do Amilton, do Ricardo, nas filas para tudo, no trem, porque estava lá e, aqui, lendo o SUL21, ainda porque gosto de fazer a informação circular. Portanto, encerro com as palavras de quem é protagonista dessa história, do Amilton das Sementes, de Maquiné, que lembram muito o jeito de sonhar e amar de Paulo Freire: “Viva a organização dos Agricultores Familiares! Basta querer e se comprometer e fará a diferença.” AFM (Mensagem enviada por amiltonsementes@yahoo.com.br em 05/08/2011).

* Ana Carolina Martins da Silva é professora da UERGS, ambientalista e mestre em Comunicação Social

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