A
crise e a falta de perspectivas individuais e coletivas parecem
reativar a feminilidade mais arcaica, percebida como uma saída em uma
sociedade dura, competitiva, implacável – seja no recolhimento do lar ou
na busca por um lugar ao sol
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por Mona Cholllet no LeMondeBrasil |
Nos últimos meses, parece que os cineastas franceses assumiram a missão
de mostrar às jovens das classes médias e populares como superar o
destino que as espera: estudos inúteis, ou nenhum estudo, seguidos de
uma longa vida de trabalho ingrato por um salário irrisório. Contudo,
trata-se menos de encorajá-las a fazer uma leitura política de sua
situação que de afirmar a existência de ricos e pobres hoje, ontem e
amanhã. A pobreza é tratada como um dado estável da história da
humanidade – ou mais ou menos estável, pois ninguém tem dúvida de que,
recentemente, os mais pobres estão se tornando mais pobres, e os mais
ricos, mais ricos. Isso faz suspeitar que haja certos mecanismos
políticos operando nesse cenário, mas repeti-los pode revelar um
populismo de mau gosto, sobretudo se você for uma linda jovem, que
horror! Ademais, por que mergulhar em reflexões extenuantes se a
natureza deu-lhe todo o necessário – um corpo jovem, sedutor e saudável –
para superar essa situação?
Em dezembro, estreou na França o filme 17 filles [17 meninas],
de Delphine e Muriel Coulin. Inspirado na história real de 18
estudantes norte-americanas que engravidaram ao mesmo tempo em 2008, foi
transposto para o universo francês da cidade de Lorient e interpreta o
acontecimento de maneira fortemente idealizada. As diretoras
apresentaram a gravidez adolescente como uma rebelião romântica contra o
universo opressivo de pais e professores, e colocaram em cena atrizes
magras e lindas, filmadas com beleza e fascinação.1
Afirmar o caráter “subversivo” da maternidade precoce implica ocultar
as campanhas de prevenção existentes há anos nos Estados Unidos e, em
menor medida, na Europa. Após o filme norte-americano Juno, de 2007, as transmissões de Teen mom(Mãe adolescente) e 16 and pregnant(16 anos e grávida), na MTV; 16 ans et bientôt maman(16 anos e logo mamãe), no M6; ou Clem, maman trop tôt!(Clem, mamãe muito cedo) e Ados et déjà mamans(Adolescentes
e já mães), no TF1, são testemunhas da estetização desse problema
social. Na França, em 2011, o videoclipe da canção Aurélie, de
Colonel Reyel, teve 23 milhões de visitas no YouTube e fez a alegria
daqueles que se opõem à interrupção voluntária da gravidez (IVG):
“Aurélie tem apenas 16 anos e espera um bebê/ Seus amigos e parentes
aconselham o aborto/ Ela não está de acordo, ela quer fazer as coisas
diferentes/ Ela diz que está pronta para ser chamada de ‘mamãe’”.
Apesar dessa atmosfera cultural, por enquanto os números seguem
estáveis: na França, são registrados alguns milhares de maternidades
precoces por ano – dez vezes menos que nos Estados Unidos. Por outro
lado, o lar representa uma ocupação atrativa para mulheres de todas as
idades perante os baixos salários e meias jornadas do mercado de
trabalho; para as mulheres de hoje, assim como para as da década de
1970, emprego não é sinônimo de independência financeira.
Depois da mãe precoce, aparece a prostituta. Em fevereiro, estreou Elles
[Elas], de Malgoska Szumowska, filme de ficção sobre a prostituição
estudantil – um fenômeno em expansão a ponto de algumas faculdades
lançarem campanhas internas de prevenção. Uma das heroínas paga aluguel,
está fazendo cursinho e não tem tempo de estudar porque chega esgotada
do trabalho em um restaurante de fast-food; a outra desembarca
de sua Polônia natal e depara com o preço do aluguel de um quarto em
Paris. Por acaso, as duas percebem que homens endinheirados podem
repartir um pouco de suas fortunas em troca de momentos de cumplicidade
carnal e intimidade. Em definitivo, o mundo não parece tão ruim.
Ambas são convocadas para uma pesquisa da revista Elle e
entrevistadas por uma jornalista (Juliette Binoche) cheia de
preconceitos, que não conhece o prazer erótico. O filme perpetua as
representações misóginas inerentes à prostituição: o burguês frustrado é
um ser sensível e triste, com esposa e filhos; a burguesa frustrada,
por outro lado, é uma sombra brutalizada, uma criatura grotesca. Única
responsável por seu fracasso, falta com seus deveres mais sagrados.
Diante de suas interlocutoras, a jornalista percebe que ela “não
compreende bem o tema sobre o qual as jovens falam sem dificuldade: dar
prazer”. Note-se: dar, e não receber.
As cenas com os clientes são cheias de humanidade tocante, excessos
charmosos, transgressões quentes e canções de amor com violão. Ao mesmo
tempo, quando lançava sua própria linha de lingerie, a ex-prostituta de
luxo Zahia Dehar, que em 2009 foi o “presente de aniversário” do jogador
de futebol Franck Ribéry, era manchete do Next, suplemento de moda do Libération
(4 fev. 2012). O estilista Karl Lagerfeld acreditava que ela se
inscrevia “na linha de cortesãs francesas”, uma “tradição puramente
nacional que o mundo inteiro admirou e copiou”. A jornalista
ex-prostituta entendia sua história como um “imenso respiro” em uma
sociedade “condenada à era dos herdeiros”: não, o elevador social não
está bloqueado...
Se nem todas as mulheres se deixam seduzir por esse “conto moderno”
(título do perfil da ex-prostituta), todas são convidadas com uma
insistência particular a comportar-se como objeto mais que sujeito. Os
critérios estéticos e as roupas que definem a qualidade “sexy” são
sugeridos desde a mais tenra idade, e em geral com grande adesão: a moda
e a beleza representam, ao mesmo tempo, a passagem para a ascensão
social e a entrada em um universo de sonhos.2
Assim, a crise e a falta de perspectivas individuais e coletivas
parecem reativar a feminilidade mais arcaica, percebida como uma saída
em uma sociedade dura, competitiva, implacável – seja no recolhimento do
lar ou na busca por um lugar ao sol (a panóplia da mulher fatal). Lado
mãe ou lado prostituta, essa feminilidade se define em função das
necessidades e expectativas dos outros. Aquelas que se conformam com
essa condição reprimem seus próprios desejos, opiniões e ambições
íntimas. “Bem longe do ideal das lutadoras de outrora, das mulheres
livres, das intelectuais e mulheres de poder, a feminilidade hoje parece
responder a apenas um atributo – a sedução – e ter um único objetivo – a
maternidade. Os homens e as crianças primeiro!”, escreve Maryse
Vaillant,3 que enxerga uma persistente censura intelectual sobre a sexualidade de suas semelhantes. Em Next,
Zahia conta que quando criança, na Argélia, era a “primeira aluna da
classe”. Adorava matemática e sonhava em ser “piloto de avião”.
Exercer uma profissão por gosto, existir socialmente por outras
competências além da maternidade, da sexualidade e da sedução, e
conquistar a independência financeira dormindo apenas com quem se quer:
ser mulher, sobretudo se não se nasce em berço de ouro, significa lutar.
Mas, atualmente, nem isso parece ser um objetivo.
Mona Cholllet é autora de Rêves de droite (Sonhos de direita), Paris, editora Zones, 2008.
Ilustração: Natalia Forcat 1 Cf. “17 filles et pas mal d’objections” [17 meninas e muitas objeções], 1º jan. 2012, Peripheries.net. 2 Cf. Beauté fatale. Les nouveaux visages d’une aliénation féminine [Beleza fatal. As novas faces da alienação feminina], Zones/La Découverte, Paris, 2012. 3 Maryse Vaillant, Sexy soit-elle. Propos sur la féminité [Sexy seja ela. Proposta sobre a feminilidade], Les Liens qui Libèrent, Paris, 2012. A única ressalva é que a autora opõe as evoluções atuais a uma feminilidade “autêntica”, que, em última instância, também está relacionada a outra série de clichês. |
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 17 de maio de 2012
A mãe e a puta estão de volta
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