Ana Cristina Carvalhaes no CORREIO DA CIDADANIA |
Claro que os processos de mobilização ampla sempre impressionam, em
particular aos que simpatizam de antemão... De qualquer modo, não é
exagero afirmar que há algo de novo no reino do Primeiro Mundo. No
Quebec, a província mais populosa e mais rica do industrializado Canadá,
uma greve começou estudantil e se tornou a maior mobilização popular do
pós-guerra.
Os mais de 7 milhões de habitantes do Quebec são descendentes de
colonizadores franceses, em contraste com as outras nove províncias
anglófonas do país. 82% dos quebequianos são franco-canadenses e 10%
anglo-canadenses. A província é de tradição ultracatólica e
conservadora: até os anos 60, a Igreja Romana monopolizava a educação,
por força da constituição provincial. À Universidade superelitista
chegavam 3% dos jovens francófonos do lugar e não mais que 11% dos
anglos.
Nos revolucionários anos 60, com o Partido Liberal do Québec (tido
como progressista) no poder, a educação passou à responsabilidade do
Estado provincial, que mantém os liceus secundários e universidades. Os
liberais são os mesmos que, liderados pelo premiê Jean Charest, hoje
enfrentam as passeatas e panelaços da rebelião. Nas Universidades,
estuda-se em troca de uma taxa anual chamada de “direitos de
escolaridade” ou simplesmente frais (custos), que começou nos
500 dólares canadenses (R$ 1.000 de hoje) ao ano e veio aumentando e se
congelando de acordo com a correlação de forças.
É o equivalente à "tuitions" das universidades privadas
norte-americanas. (Não é exatamente a soma das mensalidades das privadas
brasileiras, porque inclui impostos.) Pois o governo de Monsieur
Charest decidiu, em 2010, que a partir de 2012 até 2017 haveria um
aumento progressivo da taxa, dos atuais 2.168 dólares canadenses (cerca
de R$ 4.200) ao ano para o equivalente a R$ 7.300, o que significa 75%
de aumento em cinco anos.
Como essas cifras anuais podem até parecer pouco para os castigados
estudantes de escolas privadas no Brasil, é bom ressaltar os seguintes
dados: dois terços dos universitários quebequianos não moram com os
pais, 80% estudam e trabalham em regime parcial, 40% não recebem ajuda
alguma da família e os outros 60%, além de ajuda, se endividam para
bancar os estudos. Porque quase todos precisam de período integral, ou
quase isso, para concluir os cursos.
Segundo o IBGE deles, a Statistique Canada, o aumento de 200% nos
custos de estudos entre 1995 e 2005 fez saltar de 49% a 57% a proporção
de secundaristas que desistem da universidade. Outro detalhe
interessante: o mercado de empréstimos para pagar as "frais" criou, com a
financeirização, uma bolha especulativa com papéis lastreados em
empréstimos estudantis... Os analistas norte-americanos se arrepiam só
de pensar...
Pois bem, enquanto o governo liberal preparava o pacotaço, as
organizações estudantis preparavam a greve, que começou em 13 de
fevereiro deste ano. Em 22 de março, uma data "nacional" quebequiana
(com tradição de luta por autonomia frente ao governo central do
Canadá), aconteceu a maior passeata da história de Montreal, a maior
cidade da província. Incapaz e refratário a negociar, o governo liberal
começou a ver cair mais rapidamente sua maioria nas pesquisas (até abril
a opinião pública do Quebec ainda estava bem dividida em torno da
necessidade do aumento das taxas).
Àquela altura, os estudantes já passavam a contar com o apoio de
pais, mães, avós em passeatas diárias. Artistas, esportistas,
personalidades, sindicatos e OAB local aderiram. Os jovens grevistas
inventaram umas incríveis passeatas noturnas nas cidades quebequianas,
com muitos tambores, cornetas e os indefectíveis paninhos vermelhos
grudados nas lapelas. Em 13 de abril, o sindicato docente de uma das
maiores universidades, Université du Québec en Outaouais (UQO), votou em
assembléia partir para "ação direta" em defesa dos estudantes contra a
polícia, o que desencadeou uma onda de adesões de professores. (Quem vir
os vídeos das marchas no youtube vai identificar os docentes vestidos
com trajes de “segurança” das manifestações.)
Acuado, Charest não teve melhor idéia do que fazer aprovar agora em
maio, no parlamento provincial, que controla, uma Lei que restringe o
direito de manifestação, impedindo aglomerações públicas de mais de 10
pessoas sem aviso prévio de 8 horas e licença da polícia, vetando
reuniões a menos de 50 metros das universidades e proibindo o uso de
máscaras, sob pena de multas altíssimas. A aprovação da lei foi o
estopim de uma nova fase do movimento: os dirigentes chamaram a
população a apoiar as passeatas, cada vez mais radicalizadas, com
enfrentamentos, pedradas e pauladas com a repressão, com o barulho das
panelas. As mesmas panelas do Chile de Allende e da Argentina do
argentinazo.
O concerto das caçarolas
O Quebec vive há semanas um imenso e ininterrupto panelaço. A nova
fase tirou da paralisia as velhas gerações. O movimento hacker Anonymous
perpetrou uma invasão dos sites do ministério da Educação e do governo
do Quebec. E a moçada autodenominou sua rebelião Primavera do Quebec, em
analogia com a Primavera Árabe.
Este é um vídeo do movimento que se tornou um viral no mundo anglo-saxão, lindíssimo:
No dia 23 passado, depois de tentar excluir uma organização
estudantil da mesa de negociações, a ministra da Educação caiu.
Começaram sinais de concessões mínimas por parte do governo. Mas a
radicalização do movimento parece estar impedindo os negociadores
estudantis de qualquer recuo. E agora as ruas exigem a revogação da Loi
78, a que restringiu o direito de manifestação e expressão.
As principais organizações dos estudantes são a Federação dos
Universitários do Quebec (FEUQ), a Federação dos Secundaristas (FECQ), e
a interessante Classe, sigla em francês de Coalizão Ampla da Associação
por uma Solidariedade Sindical Estudantil. Essa, organizada pela base,
decide tudo em Congressos, não tem líderes, mas dois “co-porta-vozes”, e
é ligada pelo menos a uma federação importante, a dos funcionários
públicos do Quebec. A Classe tem como ponto programático a educação
pública e gratuita e não aceita menos do que o congelamento das taxas.
No sábado, 26, o principal jornal de Montreal tinha como chamada de
capa a decisão dos grevistas da fábrica da Rio Tinto Alcan, em Alma,
Quebec, de se "somar à greve estudantil". Dizia um piqueteiro: "Nós
nos manifestamos contra a obra de Charest. Chegou a hora de a voz do
povo se fazer ouvir. Nós queremos denunciar a venda da eletricidade
estatal à Hydro-Québec, mas também nossa solidariedade aos estudantes. O
conflito é um conflito da sociedade contra o governo".
Impossível prever os desdobramentos dos fatos dos últimos 104 dias de
luta. No entanto, há quem diga, como Jean Marc Léger, dono do Ibope
canadense, uma das personalidades pró-movimento, que há no ar e nas ruas
uma raiva maior do que a raiva contra o aumento dos "direitos de
escolaridade". Léger é autor de um texto que já se tornou um manifesto
do movimento. No estilo das pesquisas de opinião de que é especialista,
ele diz: "E você? O que você defende? Retornar a seus velhos hábitos
no conforto e na indiferença? Você acha essa greve super-simpática
desde que não mexa na sua quietude e que passe logo para que tudo fique
como antes? Muito bem, senhores babyboomers (cidadãos hoje entre 60 e 70
anos), vocês não entenderam nada desse movimento! Os meninos e meninas
não querem mais carregar o fardo dos seus erros. Não os quebrem e dêem a
eles a chance de vencer. Do contrário, vocês terão fracassado".
O movimento do Quebec, descaradamente boicotado pela grande mídia,
conta com o apoio do Ocuppy Wall Street, dos estudantes da Universidade
da Cidade Nova York, de universidades de todo o resto do Canadá e da
Islândia! Bem que está precisando e merecendo um apoio fraterno dos
sindicatos docentes, de professores e organizações estudantis
brasileiras.
Ana Cristina Carvalhaes é jornalista.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quarta-feira, 30 de maio de 2012
“Primavera do Quebec” sacode província canadense em defesa do acesso democrático à educação
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