Samir Oliveira no SUL21
A CPI realizada pelo Congresso Nacional que tenta investigar a
influência do bicheiro Carlinhos Cachoeira sobre o poder público acabou
suscitando um debate tão inesperado quanto necessário no país: a relação
da mídia com as esferas de poder, sejam elas políticas ou econômicas.
A Polícia Federal identificou cerca de 200 conversas telefônicas
entre o diretor da sucursal da revista Veja em Brasília, Policarpo
Júnior, e o contraventor. A divulgação dessas escutas mostra que
Cachoeira pautava a publicação da editora Abril, que se deixava levar
pelos interesses políticos de um empresário fortemente ligado ao senador
Demóstenes Torres (ex-DEM).
Diante desse cenário, alguns parlamentares têm defendido a convocação
de Policarpo para depor na CPI, mesmo que o relator Odair Cunha (PT-MG)
já tenha rejeitado pedido de informações a respeito. Para o presidente
da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Celso Schröder, a revista
precisa explicar o que guiou sua prática jornalística nesse episódio.
“A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É preciso explicar como ela
exerce a atividade jornalística com essas veleidades, com descompromisso
e irresponsabilidade em relação a princípios éticos e técnicos
consagrados pelo jornalismo”, entende.
Nesta entrevista ao Sul21, Schröder avalia a conduta
da revista nesse e em outros episódios e defende a necessidade de um
marco regulatório para a comunicação no país.
“Não é só um repórter, mas é a organização, a chefia da empresa, que conduz e encaminha uma atividade tecnicamente reprovável e eticamente inaceitável”
Sul21 – O que a CPI do Cachoeira pode nos dizer sobre a mídia brasileira?
Celso Schröder – A CPI está nos mostrando que a mídia é uma
instituição como qualquer outra e precisa estar submetida a princípios
públicos, na medida em que a matéria-prima do seu trabalho é pública: a
informação. Quanto menos pública essa instituição for e mais submetida
aos interesses privados dos seus gestores ela estiver, mais comprometida
ficará a natureza do jornalismo. Como qualquer instituição, a mídia não
está acima do bem e do mal, dos preceitos republicanos do Estado de
Direito e do interesse público. Do ponto de vista político, a Veja
confundiu o público com o privado. Do ponto de vista jornalístico,
comete um pecado inaceitável: estabelecer uma relação promíscua entre o
jornalista e a fonte. Não é só um repórter, mas é a organização, a
chefia da empresa, que conduz e encaminha uma atividade tecnicamente
reprovável e eticamente inaceitável. Todo jornalista sabe, desde o
primeiro semestre da faculdade, que a fonte é um elemento constituidor
da notícia na medida em que ela for tratada como fonte. A fonte tem
interesses e, para que eles não contaminem a natureza da informação,
precisam ser filtrados pelo mediador, que é o jornalista. A fonte, ao
mesmo tempo em que dá credibilidade e constitui elemento de pluralidade
na matéria, por outro lado, se não for mediada e relativizada pelo
jornalista, pode contaminar o conteúdo.
Sul21 – Em que pontos a relação entre Policarpo Júnior e Cachoeira extrapolaram uma relação saudável entre repórter e fonte?
Schroder – Ele não tratou o Cachoeira como fonte. O problema é
um jornalista ou uma empresa jornalística atribuir a alguém uma dimensão
de fonte única, negociando com ela o conteúdo e a dimensão da matéria
e, principalmente, conduzindo a Veja para uma atuação de partido
político. Esse é um pecado que a Veja vem cometendo há algum tempo. A
oposição no Brasil é muito frágil. Por não existir uma oposição forte, a
imprensa assume esse papel, o que é uma distorção absoluta. A imprensa
não tem que assumir essa função, a sociedade não atribui a ela uma
dimensão político-partidária, como a Veja se propõe. A Veja acaba de nos
produzir um dos piores momentos do jornalismo. Quando houve o episódio
da tentativa de invasão do apartamento do ex-ministro José Dirceu (PT)
por um repórter da Veja, eu escrevi um artigo dizendo que, assim como
Watergate tinha sido o grande momento do jornalismo no mundo, a atuação
da Veja no quarto de Dirceu foi um anti-Watergate. Mal sabia eu que
teríamos um momento ainda pior. Não foi a ação individual de um repórter
sem capacidade de avaliação. Foi uma ação premeditada e sistêmica de
uma empresa de comunicação, de um chefe que conduzia seu repórter para
uma ação imoral, tangenciando perigosamente a ilegalidade.
“A Veja é uma revista que coloca em jogo a matéria-prima básica da sua existência: a credibilidade. Parece-me um suicídio”
Sul21 – O mesmo pode ser dito para o episódio recente entre Policarpo Júnior e Cachoeira?
Schröder - Neste momento, isso se consolida. É uma
revista que coloca em jogo a matéria-prima básica da sua existência: a
credibilidade. Parece-me um suicídio, inclusive do ponto de vista de um
negócio jornalístico. A não ser que a Veja esteja contando com um outro
tipo de financiamento, ou já esteja sendo subsidiada por outro mecanismo
que não seja decorrente da credibilidade e da inserção no público. Não
temos dados concretos sobre isso, mas tudo leva a crer que, nesse
momento, o financiamento da Veja esteja se dando por outro caminho. O
comprometimento e o alinhamento inescrupuloso da revista a uma
determinada visão de mundo conduz à ideia de que a Veja possa ter aberto
mão de ser um veículo de comunicação para ser um instrumento político
com financiamento deste campo.
Sul21 – Mas a revista já passou por períodos em que era mais comprometida com o jornalismo. Como ocorreu essa mudança?
Schroder – Não é de agora que a Veja vem dando indícios de que
abre mão de um papel de referência jornalística. A Veja foi fundamental
para a redemocratização do país, foi referência para jornalistas de
várias gerações e teve em sua direção homens como Mino Carta. Depois de
um certo tempo, a revista começa a alinhar-se a um determinado grupo
social brasileiro. É claro que os editores da revista têm opiniões e
cumprem um papel conservador no país. Tudo bem que isso aconteça nas
dimensões editoriais. Agora, que se reserve ao jornalismo informativo um
espaço de discussão com contrapontos. Princípios elementares do
jornalismo foram sendo abandonados e essa revista, que foi importante
para a democracia e para o jornalismo, passa a ser um exemplo ruim que
precisa ser enfrentado.
Sul21 – Como o senhor vê a possibilidade de Policarpo Júnior ser convocado para depor na CPI?
Schroder – Tenho visto declarações de alguns políticos, como da
senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS), que diz que o envolvimento do
Policarpo nisso representa um ataque à imprensa. Os jornalistas não
estão acima da lei e não podem estar acima dos princípios republicanos.
Se ele for convocado pela CPI, tem o direito de não ir. Se ele for, tem o
direito de exercer a prerrogativa do sigilo de fonte. Mas a convocação
não representa uma ameaça. A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É
preciso explicar como ela exerce a atividade jornalística com essas
veleidades, com descompromisso e irresponsabilidade em relação a
princípios éticos e técnicos consagrados pelo jornalismo. Questionar
isso é fundamental. Os jornalistas e a academia têm obrigação de fazer
esse questionamento.
Sul21 – Nesse sentido, não seria válido também convocar o presidente do Grupo Abril, Roberto Civita?
Schroder – Parece que seria deslocar o problema. Na CPI, a Veja
é um dos pontos. O problema é a corrupção entre o Cachoeira e o
Parlamento brasileiro. Um depoimento do Civita geraria um debate que
desviaria os trabalhos da CPI. Não há dúvida de que a Veja praticou um
mau jornalismo e deve prestar contas. A CPI tem gravações de integrantes
da revista com o bicheiro. Que eles sejam convocados, então. Não é
pouca coisa trazer o chefe da sucursal da Veja em Brasília para depor.
“A Fenaj não vai proteger jornalistas criminosos”
Sul21 – As críticas à Veja costumam ser rebatidas com
argumentos que valorizam o trabalho supostamente investigativo feito
pela revista, com diversas denúncias de corrupção. Entretanto, as
gravações entre Policarpo e Cachoeira revelam como funcionava a
engenharia que movia algumas dessas denúncias.
Schroder – Há uma certa sensação de que estamos vivendo um
momento de corrupção absoluta no país. E isso está longe de ser verdade.
Basta olhar a história e ver que agora temos instituições democráticas
funcionando. A imprensa cumpre um papel democrático e fiscalizador
importante com a denúncia. O problema é que alguns setores, ao fazerem
denúncias, atribuem um papel absoluto à ideia da corrupção. No caso da
Veja, o pior de tudo é que a própria revista estava envolvida. Não é só
um mau jornalismo sendo praticado. Há indícios perigosos de uma
locupletação – que não precisa ser necessariamente financeira. Pode ser
uma troca de favores, onde o que a Veja ganhou foi a constituição de
argumentos para uma atuação política, não jornalística. Como se fosse o
partido político que a oposição não consegue ser. Se a imprensa se
propõe a esse tipo de coisa, volta a um patamar de atuação do século
XVIII. Se é para ser assim, que a revista mude de nome e assuma o
alinhamento a determinado partido. Agora, ao se apresentar como um
espaço informativo, a Veja precisa refletir a complexidade do espaço
político brasileiro. Se ela não faz isso, está comprometendo o
jornalismo e tangenciando uma possibilidade de ilegalidade que, se
houver, precisa ser esclarecida. A Fenaj não vai proteger jornalistas
criminosos.
Sul21 – A revelação desse modus-operandi da Veja está gerando
uma discussão quase inédita no país: a mídia está debatendo a mídia. A
revista Carta Capital tem dedicado diversas capas ao tema e a Record já
fez uma reportagem sobre o assunto. É um fenômeno comum em outros
países, mas até então não ocorria no Brasil.
Schroder – Nos anos 1980, quando a Fenaj propôs uma linha para a
democratização da comunicação, partimos da compreensão de que a
democratização do país não havia conseguido chegar à mídia. O sistema
midiático brasileiro, ao contrário de todas as outras instituições, não
havia sido democratizado. Temos cinco artigos da Constituição nessa área
que não estão regulamentados. Durante 30 anos tivemos diversas
iniciativas de tentar construir esse debate. A lógica da regulamentação
existe em todos os países do mundo. Mas, no Brasil, isso enfrenta
resistências de uma mídia poderosa, que fez os dois primeiros
presidentes da República após a democratização. Sarney e Collor são dois
políticos que saíram dos quadros da Rede Globo. Na presidência do
Congresso tivemos outros afilhados da Rede Globo, como Antonio Carlos
Magalhães, que também foi ministro das Comunicações. A mídia não só está
concentrada, no sentido de ter monopólios, como está desprovida de
qualquer controle público. Está absolutamente entregue à ideia de que a
liberdade de expressão é a liberdade de expressão dos donos da mídia.
Enquanto que o preceito constitucional diz que a liberdade de expressão é
do povo, e o papel da mídia é assegurar isso.
“O espírito conservador está no DNA da Rede Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio não deve existir nenhuma regra”
Sul21 – Quanto se conseguiu avançar nesse debate desde então?
Schroder – Estamos há 30 anos pautando esse debate até chegarmos a Confecom (Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009).
A Fenaj consegue constituir a ideia de que esse debate precisa ser
público, já que ele é omitido pela mídia, que atribui à essa discussão
uma tentativa de censura. A Confecom, no início, teve a anuência das
empresas. Eu fui junto com os representantes da RBS e da Globo aos
ministros Helio Costa (Comunicações), Tarso Genro (Justiça) e Luiz Dulci (Secretaria-Geral da Presidência)
propor a conferência. As empresas compreendiam que, naquele momento, a
telefonia estava chegando e ameaçava um modelo de negócios. Mas, durante
a Confecom, a Rede Globo e todos os seus aliados se retiraram, tentando
sabotar mais uma vez o debate. O espírito conservador está no DNA da
Rede Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio não deve
existir nenhuma regra. Acostumou-se a impor seus interesses ao país e,
portanto, é ontológicamente contra qualquer regra. Naquele momento em
que a Globo se retirou da Confecom ficou claro que não é possível contar
com esses empresários para qualquer tipo de tentativa de atribuir à
comunicação no Brasil uma dimensão pública, humana e nacional, regida
por princípios culturais, democráticos e educacionais, não simplesmente
pelo lucro fácil e rápido.
Sul21 – O editorial do jornal O Globo defendendo a revista
Veja é um indício de que há um corporativismo muito grande entre os
donos da mídia tradicional?
Schroder – O princípio que os une é aquele verbalizado pela
Sociedade Interamericana de Imprensa: Lei melhor é lei nenhuma. As
empresas alinhadas à ideia de que não podem estar submetidas à lei
protegem-se. Abrigadas no manto de uma liberdade de expressão apropriada
por elas, protegem seus interesses e seus negócios, atuando de uma
maneira corporativa e antipública. O jornalismo é fruto de uma
atividade profissional, não é fruto de um negócio. Jornalismo não é
venda de anúncios. Jornalismo é, essencialmente, o resultado do trabalho
dos jornalistas. Portanto, a obrigação dos jornalistas é denunciar
sempre que o jornalismo for maculado, como ocorreu com a Veja. Seria,
também, uma obrigação das empresas jornalísticas, na medida em que elas
não estejam envolvidas com esse tipo de prática. Ao tornarem-se cúmplice
e acobertarem esse tipo de prática, as empresas aliam-se a elas. Essas
empresas disputam o mercado, mas protegem-se no que consideram
essencial, no sentido de inviabilizar a ideia de que exercem uma
atividade submetida aos interesses públicos, como qualquer outra.
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