Roberto Leher no CORREIO DA CIDADANIA |
A longa seqüência de gestos protelatórios que levaram os docentes das
IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) a uma de suas maiores
greves, alcançando 48 universidades em todo país (28/05), acaba de
ganhar mais um episódio: o governo da presidenta Dilma cancelou a
reunião do Grupo de Trabalho (espaço supostamente de negociação da
carreira) do dia 28 de maio que, afinal, poderia abrir caminho para a
solução da greve nacional que já completa longos dez dias. Existem
algumas hipóteses para explicar tal medida irresponsavelmente
postergatória:
1) A presidenta – assumindo o papel de xerife do ajuste fiscal –
cancelou a audiência, pois em virtude da crise não pode negociar
melhorias salariais para os docentes das universidades, visto que a
situação das contas públicas não permite a reestruturação da carreira
pretendida pelos professores;
2) apostando na divisão da categoria, a presidenta faz jogral de
negociação com uma organização que, a rigor, é o seu espelho, concluindo
que logo os professores, presumivelmente desprovidos de capacidade de
análise e de crítica, vão se acomodar com o jogo de faz de conta, o que
permitiria ao governo Dilma alcançar o seu propósito de deslocar um
possível pequeno ajuste nas tabelas para 2014, ano que os seus sábios
assessores vindos do movimento sindical oficialista sabem que
provavelmente será de difícil mobilização reivindicatória em virtude da
Copa Mundial de Futebol, “momento de união apaixonada de todos os
brasileiros”;
3) sustentando um projeto de conversão das universidades públicas de
instituições autônomas frente ao Estado, aos governos e aos interesses
particularistas privados em organizações de serviços, a presidenta
protela as negociações e tenta enfraquecer o sindicato que organiza a
greve nacional, para viabilizar o seu projeto de universidade e de
carreira que ‘ressignificam’ os professores como
docentes-empreendedores, refuncionalizando a função social da
universidade como organização de suporte a empresas, em detrimento de
sua função pública de produção e socialização de conhecimento voltado
para os problemas lógicos e epistemológicos do conhecimento e para os
problemas atuais e futuros dos povos.
Em relação à primeira hipótese, a análise do orçamento 2012 (1)
evidencia que o gasto com pessoal segue estabilizado em torno de 4,3% do
PIB, frente a uma receita de tributos federais de 24% do PIB.
Entretanto, os juros e o serviço da dívida seguem consumindo o grosso
dos tributos que continuam crescendo acima da inflação.
Com efeito, entre 2001 e 2010 os tributos cresceram 265%, frente a
uma inflação de 90% (IPCA). Conforme a LDO para o ano de 2012, a
previsão de crescimento da receita é de 13%, porém os gastos com
pessoal, conforme a mesma fonte, crescerão apenas 1,8% em valores
nominais. O corte de R$ 55 bilhões em 2012 (inclusive mais de 22% das
verbas do Ministério da Ciência e Tecnologia - MCT) não é, obviamente,
para melhorar o Estado social, mas, antes, para seguir beneficiando os
portadores de títulos da dívida pública que receberam, somente em 2012,
R$ 369,8 bilhões (até 11/05), correspondentes a 56% do gasto federal
(2).
Ademais, em virtude da pressão de diversos setores que compõem o
bloco de poder, o governo federal está ampliando as isenções fiscais,
como recentemente para as corporações da indústria automobilística,
renúncias fiscais que comprovadamente são a pior e mais opaca forma de
gasto público e que ultrapassam R$ 145 bilhões/ano. A despeito dessas
opções em prol dos setores dominantes, algumas carreiras tiveram
modestas correções, como as do MCT e do IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada). Em suma, a hipótese não é verdadeira: não há crise
fiscal. Os governos, particularmente desde a renegociação da dívida do
Plano Brady (1994), seguem priorizando os bancos e as frações que estão
no núcleo do bloco de poder (vide financiamento a juros subsidiados do
BNDES, isenções para as instituições de ensino superior
privadas-mercantis etc.). Contudo, os grandes números permitem sustentar
que a intransigência do governo em relação à carreira dos
professores das IFES não se deve à falta de recursos públicos para a
reestruturação da carreira. São as opções políticas do governo que
impossibilitam a nova carreira.
Segunda hipótese. De fato, seria muita ingenuidade ignorar que as
medidas protelatórias objetivam empurrar as negociações para o final do
semestre, impossibilitando os projetos de lei de reestruturação da
carreira, incluindo a nova malha salarial e a inclusão destes gastos
públicos na LDO de 2013. O simulacro de negociações tem como atores
principais o MEC (Ministério da Educação), que se exime de qualquer
responsabilidade sobre as universidades e a carreira docente, o MPOG
(Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão), que defende a
conversão da carreira acadêmica em uma carreira para empreendedores, e,
como coadjuvante, a própria organização pelega que faz o papel dos
truões, alimentando a farsa do jogral das negociações.
Terceira hipótese. É a que possui maior lastro empírico. As duas
hipóteses anteriores podem ser compreendidas de modo mais refinado no
escopo desta última hipótese. De fato, o modelo de desenvolvimento em
curso aprofunda a condição capitalista dependente do país, promovendo a
especialização regressiva da economia. Se, em termos de PIB, os
resultados são alvissareiros, a exemplo dos indicadores de concentração
de renda que alavancam um seleto grupo de investidores para a exclusiva
lista dos 500 mais ricos do mundo da Forbes, o mesmo não pode ser dito em relação à educação pública.
Os salários dos professores da educação básica são os mais baixos
entre os graduados (3) e, entre as carreiras do Executivo, a dos
docentes é a de menor remuneração. A idéia-força é de que os docentes
crescentemente pauperizados devem ser induzidos a prestar serviços, seja
ao próprio governo, operando suas políticas de alívio à pobreza,
alternativa presente nas ciências sociais e humanas, ou, no caso das
ciências ditas duras, a se enquadrarem no rol das atividades de pesquisa
e desenvolvimento (ditas de inovação), funções que a literatura
internacional comprova que não ocorrem (e não podem ser realizadas) nas
universidades (4).
A rigor, em nome da inovação, as corporações querem que as
universidades sejam prestadoras de serviços diversos que elas próprias
não estão dispostas a desenvolver, pois envolveriam a criação de
departamentos de pesquisa e desenvolvimento e a contratação de pessoal
qualificado. O elenco de medidas do Executivo que operacionaliza esse
objetivo é impressionante: Lei de Inovação Tecnológica,
institucionalização das fundações privadas ditas de apoio, abertura de
editais pelas agências de fomento do MCT para atividades empreendedoras.
Somente nos primeiros meses deste ano o Executivo viabilizou a
Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, um ente privado, que
submete os Hospitais Universitários aos princípios das empresas privadas
e aos contratos de gestão preconizados no plano de reforma do Estado (Lei nº. 12.550,
15 de dezembro de 2012), a Funpresp (Fundação de Previdência
Complementar dos Servidores Públicos Federais), que limita ao teto de R$
3.916,20, medida que envolve enorme transferência de ativos públicos
para o setor rentista e que fragiliza, ainda mais, a carreira dos novos
docentes - pois, além de não terem aposentadoria integral, não possuirão
o FGTS, restando como última alternativa a opção pelo empreendedorismo
que, ilusoriamente (ao menos para a grande maioria dos docentes),
poderia assegurar algum patrimônio para a aposentadoria.
Ademais, frente à ruína da infra-estrutura, os docentes devem captar
recursos por editais para prover o básico das condições de trabalho. Por
isso, nada mais coerente do que a insistência do Executivo em
uma carreira que converte os professores em empreendedores que ganham
por projetos, freqüentemente ao custo da ética na produção do
conhecimento (5).
Os operadores desse processo de reconversão da função social da
universidade pública e da natureza do trabalho e da carreira docentes
parecem convencidos de que já conquistaram os corações e as mentes dos
professores e por isso apostam no impasse nas negociações. O
alastramento da greve nacional dos professores das IFES e o vigoroso e
emocionante apoio estudantil a essa luta sugerem que os analistas
políticos do governo federal podem estar equivocados. A adesão crescente
dos professores e estudantes ao movimento comprova que existe um forte
apreço da comunidade acadêmica ao caráter público, autônomo e crítico da
universidade. E não menos relevante, de que a consciência política não
está obliterada pela tese do fim da história (6).
A exemplo de outros países, os professores e os estudantes
brasileiros demonstram coragem, ousadia e determinação na luta em prol
de uma universidade pública, democrática e aberta aos desafios do tempo
histórico!
Notas:
(1) http://www.senado.gov.br/noticias/agencia/infos/info_orcamento_para_2012/ORCAMENTO_PARA_2012.html
(4) Mansfield, Edwin 1998 Academic research and industrial
innovation: An update of empirical findings em Research Policy 26, p.
773–776.
(5) Charles Ferguson, A corrupção acadêmica e a crise financeira, disponível em: http://noticias.bol.uol.com.br/economia/2012/05/27/a-corrupcao-academica-e-a-crise-financeira.jhtm
(6) Marcelo Badaró Mattos, Algo de novo no reino das Universidades Federais?
Roberto Leher é doutor em Educação pela Universidade de São
Paulo, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
coordenador do Observatório Social da América Latina – Brasil/ Clacso e
do Projeto Outro Brasil (Fundação Rosa Luxemburgo).
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sábado, 9 de junho de 2012
‘Universidade de serviços’ explica intransigência do governo com universidades públicas federais
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