sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A linguagem da verdade na luta de massas


Miguel Urbano Rodrigues


 
Em situações históricas como a actual os responsáveis pelas crises optam pelo auto elogio, enquanto se preparam para responder com a repressão ao protesto popular. Os Passos, Relvas e Companhia Lda esquecem que no movimento de fluxo e refluxo da História as grandes crises desembocam quase sempre numa contestação torrencial quando os povos, atingido um limite, não podem mais suportar a opressão da classe dominante e se mobilizam para lhe por termo.

As medidas anunciadas pelo primeiro-ministro no dia 7 de Setembro - ostensivamente inconstitucionais - assinalaram uma vertiginosa galopada para a direita do governo mais reaccionário do País desde a Revolução de 1974.
Passos Coelho pelo que disse, pela hipocrisia e até pelo tom, fez-me recordar falas de ministros de Salazar. Deles se diferencia não pelo conteúdo ideológico da «mensagem», mas porque alguns eram inteligentes e porque o que resta da herança de Abril não lhe permite ir tão longe quanto desejaria na destruição de conquistas históricas dos trabalhadores e na ofensiva contra direitos e liberdades.
Os novos impostos e a descida da taxa social única (800 milhões oferecidos na prática às grandes empresas) inserem-se numa estratégia dita de «austeridade», mas que transcende as próprias exigências da troika. Foi concebida para favorecer o grande capital e atingir brutalmente os trabalhadores.
O complemento da agressão fiscal tornado público pelo ministro Vítor Gaspar, tutor ideológico de Passos, amplia os contornos do pesadelo.
O fracasso do projecto em desenvolvimento é, porém, tão transparente – o défice não desceu, o desemprego disparou, o PIB caiu – que pela sua irracionalidade e consequências desastrosas ao levar o pais à ruína abriu fissuras nas forças da direita que inicialmente o apoiaram maciçamente.
Destacadas personalidades políticas do sistema, tradicionalmente vinculadas ao imperialismo, como Adriano Moreira, Freitas do Amaral, Alberto João Jardim, Bagão Félix, Mário Soares, Pacheco Pereira criticaram com maior ou menor clareza o pacote fiscal do governo. Até Catroga se distanciou.
O Presidente da República, esse, permaneceu mudo até ao momento em que escrevo.
Na hierarquia da Igreja levantam-se vozes condenando aquilo em que identificam o arrogante desprezo do governo pelo povo.
A Saúde e a Educação serão brutalmente golpeadas. Entre os reformados a maré da revolta cresce. Não há mentira oficial que possa ocultar a evidência: o governo pretende destruir a Previdência, arrasar a Segurança Social.
O indigitado secretário-geral da UGT apelou à denúncia dos compromissos assumidos pela sua organização com o governo e o patronato e agora exige a rejeição das medidas anunciadas.
A própria CIP desaprova a estratégia do Executivo, e Belmiro de Azevedo, o patrão da SONAE (que vai poupar muitos milhões de euros com a descida da taxa social única), demarcou-se do governo. Foi categórico ao afirmar que o brutal aumento da carga fiscal sobre o trabalho, longe de atingir os objectivos fixados, vai contribuir para o agravamento da crise.
Influentes «analistas» da burguesia, como Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Sousa Tavares, habitualmente prudentes nas críticas ao governo, desancaram agora Passos Coelho e a cruel farsa da «austeridade».
Não esperava o Primeiro-ministro que o seu medonho pacote fiscal fosse mal recebido por parlamentares e dirigentes do PSD e do CDS. Mas teve uma surpresa.
«Sinto uma grande revolta no PSD - declarou ao jornal «Publico» um deputado desse partido - porque o Primeiro-ministro foi longe demais».
No CDS o mal-estar aumenta a cada dia e alguns «barões» falam abertamente da necessidade de por termo à coligação, cimento da maioria parlamentar.

GRANDES LUTAS NO HORIZONTE

A presente crise – é uma certeza – vai aprofundar-se muito. Inseparável da crise global do capitalismo, a actual, que lançou milhões de portugueses no desemprego, na pobreza e na miséria, difere de todas as anteriores não apenas pelas seus efeitos sociais e económicos, mas pela ideologia e projecto dos representantes do capital que controlam o governo e o Parlamento.
É significativo que o ministro Relvas, envolvido numa cadeia de escândalos sórdidos, tenha aproveitado a sua visita ao Brasil para fazer no Rio declarações provocatórias, de elogio irrestrito à devastadora e criminosa política fiscal de Passos Coelho. Insolente, maltratando inclusive o idioma, sugere aos que dela discordam a apresentar uma alternativa, para concluir que ela não existe e proclamar que a recusa da estratégia do governo seria o caos.
Não é inédito o seu arrogante desafio. Em situações históricas como a actual, os responsáveis pelas crises optam pelo auto elogio, enquanto se preparam para responder com a repressão ao protesto popular.
Os Passos, Relvas e Companhia Lda esquecem que no movimento de fluxo e refluxo da História as grandes crises desembocam quase sempre numa contestação torrencial quando os povos, atingido um limite, não podem mais suportar a opressão da classe dominante e se mobilizam para lhe por termo.
Não há dois processos iguais. As revoluções e as transições marcadas por reformas revolucionárias diferem de sociedade para sociedade, evoluindo em função de factores que não cabe analisar num artigo como este.
Isso ocorreu no 25 de Abril.
Transcorridos 38 anos, frustradas as grandes esperanças da Revolução Democrática e Nacional, uma grande burguesia dependente, mais sofisticada do que a anterior, e mais intimamente ligada ao imperialismo, encontra-se novamente instalada no Poder.
Sob alguns aspectos a luta contra o sistema é hoje mais difícil do que na época de Salazar e Caetano porque as condições subjectivas são menos favoráveis.
As instituições existentes (deformadas por sucessivas reformas da Constituição) levam milhões de portugueses, a maioria da cidadania, a crer que o regime português é democrático.
Ora, na prática vivemos sob uma ditadura da burguesia de fachada democrática. Mas somente uma pequena minoria de portugueses tem consciência dessa realidade.
Em Portugal, a resistência dos trabalhadores a políticas neoliberais de sucessivos governos do PSD e do PS tem sido uma constante. Sobretudo nos últimos anos. Expressou-se em gigantescas manifestações de protesto, em greves gerais e sectoriais realizadas com êxito, em lutas de numerosas categorias profissionais, com destaque para as dos professores.
Mas o controle dos media pelo capital e a influência hegemónica do imperialismo na Internet dificultam extraordinariamente a compreensão pela maioria dos portugueses da complexidade da crise mundial e dos desafios que se colocam ao povo português. Os mecanismos da alienação são uma fonte de ilusões, favorecendo a direita (na qual incluo os dirigentes do PS).
A ilusão de que é possível às forças progressistas chegar ao governo através de eleições está muito difundida. Tal convicção é utópica.
A engrenagem montada pelas forças do capital foi concebida e funciona de modo a que alternadamente obtenham maioria parlamentar e cheguem ao governo, exibindo uma falsa representatividade popular, ora o PSD (levando a reboque o CDS), ora o PS.
A ruptura com essa engrenagem, para produzir efeitos, para ser real, não pode consumar-se dentro do sistema, tendente à sua democratização. Terá de ser uma ruptura contra o sistema. Por outras palavras, é imprescindível deixar transparente que o inimigo é o capitalismo e que este é irreformável pela sua natureza desumana. É possível em Portugal um governo menos reaccionário, mas não um governo progressista.
A linguagem da verdade é uma exigência política e ética no diálogo com as massas.
A ideia de uma volta a Abril é também romântica. A História não se repete. Seria negativo confundir os valores de Abril e o respeito que inspiram com a aspiração ilusória de uma nova Revolução Democrática e Nacional, no actual contexto.
Qual então o carácter da resposta popular, qual o rumo que a contestação ao Poder da burguesia e ao protectorado imperial devem assumir?
A pergunta é formulada com frequência por aqueles a quem são dirigidos apelos para a dinamização da luta de massas. E é pertinente porque a relação de forças na sociedade portuguesa não abre a porta a uma conjuntura pré-revolucionária.
A menos que se produza a nível mundial uma situação revolucionária envolvendo os EUA e a União Europeia, o que não está para breve, uma Revolução social vitoriosa em Portugal é uma impossibilidade.
A luta intensa e permanente contra este governo, que assume já no discurso e na prática matizes neofascistas, não vai desembocar numa Revolução progressista. A serena consciência dessa realidade não justifica uma atitude de pessimismo, de passividade alienante. Em Portugal a participação nas lutas contra o sistema é transversal, abrange já segmentos da pequena e média burguesias, camadas sociais que ainda há poucos anos afirmavam não se ‘interessar pela politica’.
Ao longo da História, muitas gerações bateram-se por transformações revolucionárias que não se produziram durante as suas breves existências. Mas o seu compromisso era com as ideias e não com o calendário. Revoluções tão importantes para o progresso da Humanidade como a Francesa de 1789 e a Russa de 1917 não teriam sido vitoriosas sem a luta, a dedicação, o debate de ideias de uma extensa, maravilhosa cadeia de revolucionários que as imaginaram e para elas viveram.
Afirmar sem rodeios, frontalmente, que a ruptura em Portugal deve ser com o sistema capitalista, rumo ao socialismo distante, esfumado num horizonte de brumas, é seguir o exemplo desses revolucionários, caminhar pelas alamedas que eles abriram combatendo.
Acredito que a luta de massas vai adquirir um ímpeto novo, que a repressão será incapaz de travar, um ímpeto vocacionado para abalar os alicerces do Poder ultramontano.

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