Milton Ribeiro no SUL21
Liev Tolstói foi o primeiro grande injustiçado pelo Prêmio Nobel.
Nascido em 9 de setembro de 1828, o escritor russo viveu até 1910 — o
prêmio começou a ser entregue em 1901 — e, em seus últimos anos de vida,
já era uma figura incontornável não apenas da literatura russa, mas da
mundial. Ele foi um dos primeiros a entrar numa importante lista de não
ganhadores que depois ganharia outros nomes notáveis como Marcel Proust,
James Joyce, Vladimir Nabokov, Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Machado
de Assis, Émile Zola, Henrik Ibsen e Paul Valéry, para citar alguns.
Obviamente, alguns destes nomes apenas tornaram-se importantes post mortem ou,
como Machado de Assis, escreviam em línguas menos traduzidas, mas o
caso de Tolstói foi bastante estranho, pois, como dissemos, o escritor
viveu grande parte de sua vida como uma indiscutível celebridade. Nada
mais merecido.
Caso semelhante ao de Dostoiévski, Tolstói foi por anos lido no
Brasil em traduções de segunda mão. Isto é, como não havia no país
tradutores de russo, ambos eram traduzidos do francês… Apenas nos
últimos 30 anos, começaram a aparecer as traduções diretas do russo, as
quais revelaram o descuido e o desrespeito com que eram tratados estes
autores, além de muitos outros. O elogio mais comum feito a Tolstói era o
de que se tratava de um estilista absolutamente impecável. O tradutor
Rubens Figueiredo, que recentemente traduziu para a Cosac & Naify
seus três principais romances — Anna Kariênina, Guerra e Paz e Ressurreição
— obrigou-se a escrever uma série de explicações a respeito de certas
estranhezas em seu texto. Ocorre que no original há repetições de
palavras bem próximas umas das outras, procedimento que Figueiredo
criteriosamente manteve, mas que os antigos tradutores não admitiam. Por
exemplo, nas páginas 241-242 de Anna Kariênina (Cosac &
Naify) há um parágrafo de quase uma página onde a palavra “camponeses”
aparece 15 vezes. Tais repetições não devem ser confundidas com descaso.
”Gosto daquilo que chamam de incorreção. Ou seja, daquilo que é
característico”, dizia Tolstói. Também o uso de parênteses eram
corrigidos pelos tradutores do passado, assim como as frases, muitas
vezes longuíssimas, acabavam particionadas.
Desta forma, um dos caminhos para estarmos mais próximos do autor
russo é o de procurar as traduções feitas diretamente do original e
ignorar as antigas traduções da Editora Globo para Guerra e Paz e Kariênina,
por exemplo, as quais traziam um autor distorcido, com maior elegância e
polimento do que o original. Pois para expressar o pensamento mais
simples de alguns mujiques — os camponeses russos — , Tolstói se
utilizava de pouco requinte e de um vernáculo mais limitado. O escritor
russo também pensava que, em alguns casos, as repetições davam mais
coesão e clareza a certos trechos.
Nestes dois grandes romances, Tolstói demonstra sua arte de forma
inequívoca. Ele foi um perfeito contador de histórias polifônicas.
Trabalhava com muitos personagens, as interações entre eles, suas ações e
pensamentos nunca são artificiais e, de forma profundamente humana, até
as paisagens descritas passam pelo filtro do estado de espírito de quem
as observa. Guerra e Paz e Anna Kariênina são
belíssimas sinfonias para muitas vozes. Chama atenção o caminhão de
realismo despejado pelo autor sobre seus personagens. Anna, por exemplo,
está a léguas de poder aspirar a uma condição de boa pessoa do século
XIX ou de qualquer tempo. Na época, ser virtuoso era o que mais contava e
ela, passando por cima de Kitty e largando seu marido por pura
concupiscência, renegando a filha ainda bebê e sendo suscetível a
atitudes muito impulsivas, está longe do ideal virtuoso. Para completar,
encontra justificativas para quase todos os seus atos, porém Tolstói
não esboça o menor gesto de justificá-la assim ou assado.
Já as novelas Sonata a Kreutzer e A Morte de Ivan Ilitch são
o extremo contrário. Focadas, com poucos personagens e devastadora
análise psicológica, a primeira fala sobre o casamento, a infidelidade e
a hipocrisia social e a segunda sobre a morte. Em agosto de 1883, duas
semanas antes de falecer, o escritor russo Ivan Turguêniev escreveu a
Tolstói: “Faz muito tempo que não lhe escrevo porque tenho estado e
estou, literalmente, em meu leito de morte. Na realidade, escrevo apenas
para lhe dizer que me sinto muito feliz por ter sido seu contemporâneo,
e também para expressar-lhe minha última e mais sincera súplica. Meu
amigo, volte à literatura”. Tolstói era efetivamente dado a passar
longos períodos sem escrever e, diante do pedido do amigo, respondeu com
a angustiada consciência do irrepreensível juiz Ivan Ilitch em breves
85 páginas. No texto, é mostrado um rigoroso acerto de contas interno,
revelando a inutilidade da vida de Ivan. Preso ao leito, frente à morte
certa, Ivan Ilitch vê como a rotina, nosso mais pesado algoz, e a vida
burguesa impediram-no de apenas… pensar.
Se considerarmos sua obra como ficcionista, chegaremos à conclusão de
que quase tudo aquilo que criou ainda é lido. Os três romances citados,
mais as novelas A felicidade conjugal, Sonata a Kreutzer e A morte de Ivan Ilitch, além
de relatos autobiográficos e de contos populares são a parte principal
de sua obra. Tolstói foi romancista, novelista, contista, ensaísta e
dramaturgo. Mas também foi o filósofo criador do tolstoísmo, uma forma
de vida pastoral e pacifista que hoje nos parece bastante aparentada da
forma de vida dos hippies dos anos 60 do século XX.
Atualmente, o lado filósofico e a vida pessoal de Tolstói fazem a
festa de outros autores, de filmes e séries de TV. Só para citar os
casos mais conhecidos: em Diário de uma Ilusão, de Philip Roth (cujo título original é The Ghost Writer, o que nos faz pensar nos critérios dos antigos tradutores de nosso retratado), há um capítulo intitulado Casado com Tolstói, que se refere ao contumaz sumiço de um dos cônjuges. Também houve o bom filme A última estação,
onde vemos as causas de uma das tais fugas. É que, para além de ser um
gênio, o escritor russo era um puro. Tão puro que gerava suspeitas. Em
1856, ele, que fazia parte da nobreza russa, libertou todos os seus
servos e doou-lhes as terras onde trabalhavam. Estes, porém,
desconfiados, devolveram as propriedades ao ex-dono. Ele tinha, aliás,
uma recorrente inclinação de desfazer-se de seus bens materiais,
inclinação que não estava de acordo com a opinião de sua esposa Sônia.
No final da década de 1850, preocupado com a péssima qualidade da
educação no meio rural, Tolstói criou uma escola para filhos de
camponeses na aldeia onde nasceu e viveu, a célebre Iasnaia Poliana. O
escritor mesmo escreveu grande parte do material didático e, ao
contrário da pedagogia da época, deixava os alunos estudarem quando
quisessem, sem regras excessivas e, estranhamente, sem punições físicas.
Educar para libertar. Esse era seu norte pedagógico. Recentemente,
parte do material criado para a escola por seu fundador foi traduzido do
russo. Contos da Nova Cartilha
é o resultado desta incursão. A obra é uma coletânea de textos
extraídos das duas cartilhas elaboradas por Tolstói. São fábulas,
histórias reais, contos folclóricos, descrições de paisagens naturais e
adivinhações. O estilo é conciso, aproximando-se do ritmo da linguagem
oral.
Em 1862, casou-se com Sônia Andreievna Bers, com quem teve 13 filhos.
A qualidade do casamento seria melhor aferida por um sismógrafo. Foi
neste ambiente que Tolstoi produziu seus principais romances. Guerra e Paz
consumiu sete anos de trabalho e é a prova de que um mau casamento pode
produzir bons frutos. O autor atormentava-se mais do que habitual em
seres humanos com questões sobre o sentido da vida e, após desistir de
encontrar respostas na filosofia, na religião e na ciência, deixou
seduzir-se pelo estilo de vida dos camponeses. Foi o que ele chamou de
sua “conversão”. Após a “conversão”, Tolstói deixou de beber e fumar,
tornou-se vegetariano e passou a vestir-se como camponês. Convencido de
que ninguém deveria depender do trabalho alheio para viver, passou a
limpar seu quarto, a plantar a comida da qual se alimentava e a produzir
as próprias roupas e botas. Suas ideias atraíram um séquito de
seguidores, que se denominavam “tolstoianos”. Como resultado, Tolstói
passou a ser vigiado pela polícia do czar.
Porém, Sônia não o deixava alcançar a simplicidade. Ela lhe cobrava
os luxos aos quais estava acostumada. Os filhos davam razão à mãe, que
ameaçava matar-se quando o escritor dizia que fugiria de casa. A partir
de 1883, houve uma disputa entre sua esposa e Tchértkov, um militar que
gozava da confiança do autor e que se tornou um paladino de suas ideias
na Rússia. Sônia foi nomeada controladora de seu patrimônio, combatendo o
marido, que acreditava nos feitos purificadores da caridade.
Obviamente, a bondade de Tolstói levou-o a afastar-se do governo, da
justiça e da Igreja Ortodoxa russa; acabou excomungado.
No período final de sua vida, acentuou-se a briga entre Sônia
e Tchértkov. Agora o motivo eram os direitos autoriais de seus livros.
Em 1908, Tchértkov escreveu um testamento em nome de Tolstói, onde
outorgava a si mesmo o direito sobre os livros após a morte do autor. O
militar foi para história como um mal intencionado que se aproveitava da
credulidade do autor de Guerra e Paz. Provavelmente mereceu
tal má fama póstuma. O fato é que os anos próximos à morte do escritor
foram um inferno familiar. O conflito com Sônia era tal que Tolstói fez o
que já fizera em oportunidades anteriores: fugiu de casa. Sônia não se
matou, na verdade foi mais uma vez atrás do marido fugitivo. Só que
desta vez ele morreu em meio à fuga. Faleceu na aldeia de Astápovo, em 7
de novembro de 1910. Anos depois, Sônia recuperou para a família os
direitos sobre a obra de seu marido.
Poema da gare de Astapovo, de Mario Quintana
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se …e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se …e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
Nenhum comentário:
Postar um comentário