Publicado na Revista Continente
Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete
longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois
na Itália e na Suécia, na década de 1980, já no exílio. Seu legado,
entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição
russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do
século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio
O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista
–, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele
dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o
cinema: o livro Esculpir o tempo.
Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo
a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril do ano de 1932. A
família com esse nome surgiu há aproximadamente sete séculos, e, até
meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso
– sua linhagem espiritual, contudo, parece ser muito mais antiga do que
a genealógica.
Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza,
concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky
partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura
e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A
falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma
dificuldade, foi uma grande oportunidade
para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3 horas e 20
minutos, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que
surgem os ícones dourados pintados por Rublev.
Ao fazer um épico sobre o pintor de ícones medieval, que incorpora
uma tradição pictórica que vem desde Bizâncio, Tarkovsky não se liga a
uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã? O fato é que ele
viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não
proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então
seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era uma símbolo
internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento
ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.
Depois de pronto, entretanto, o filme foi apresentado ao presidente
soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de
passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o
diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Rublev não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.
O interesse
de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de
Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o
contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte –
tudo que foi retratado no filme e que desagradou as autoridades
soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos,
vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a
situação paradoxal de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece
haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do
que estética, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a
tradição iconográfica.
Ídolo e ícone
No livro O ícone – Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz
uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de
representação religiosa que prende o olhar em si mesmo, pelas formas,
cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone,
ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas
obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator
essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na
aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia
com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de
criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial, a
saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial, como o modelo que
coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de
arte.
Ele se mostrou profundamente decepcionado, por exemplo, com o que viu
nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como
Fellini, Polanski, etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça
seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é
como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é,
portanto, essencialmente espiritual. Ele se recusava a usar cores vivas
nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes o filme se
caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores
(o recém falecido Erland Josephson, ator preferido de Bergman, afirmou
certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como
Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse
livremente interpretar o que estivesse vendo). Além disso, ele
dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos
pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com
Eisenstein, negava os excessos da montagem.
Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do
olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo
poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde
muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas
e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma
arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do
fenômeno artístico como um fenômeno que transcende o tempo e o espaço.
1 Josias Teófilo, jornalista, é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovsky no filme Andrei Rublev.
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