O anjo e o
demônio
“Ali, onde o
amor desperta, morre o eu, déspota sombrio”
O ser humano
é multifacetado e esta é a beleza da humanidade Não somos nem anjos e nem
demônios, mas um amálgama de desejos, sonhos e ações. Ainda assim, tendemos a
cair na armadilha do maniqueísmo. A forma como analisamos a vida e a morte do
revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara é um exemplo disso.
Quarenta e
cinco anos após sua execução na Bolívia, sua imagem ainda divide opiniões,
apaixonadamente. Endeusado por setores da esquerda como exemplo da pureza
socialista, de homem de bem. Execrado por setores da direita como um assassino
sanguinário, personificação do mal. Ambas as leituras deixam de lado o ser
humano Ernesto. Menino, adolescente, homem repleto de virtudes e de defeitos,
desejos e esperanças.
A maioria das
obras sobre sua vida é formada por hagiografias oficiais cubanas ou
demonizações montadas por inimigos políticos. É fato que Che encarnou todo o
horror proveniente da cegueira ideológica que justifica os atos mais
monstruosos em nome de uma causa superior, de uma verdade absoluta. É fato,
também, que abriu mão de tudo o que estimava para lutar e morrer em um campo de
batalha estrangeiro tendo em mente a construção de um mundo melhor.
Fruto de um
trabalho hercúleo do escritor Jon Lee Anderson, o livro “Che Guevara: uma
biografia” – cuja edição revisada foi lançada recentemente e cuja leitura
finalizei esta semana – aborda com maestria esta dicotomia em uma viagem fascinante
pela vida e pensamento de Che.
O livro de
Anderson nos leva a uma jornada que aponta os caminhos que concretizaram a
formação de seu caráter e, posteriormente, a construção de sua base
político-ideológica que desagua em uma série de acontecimentos que
transformaram um jovem argentino de classe privilegiada em um revolucionário
internacional, revelando, ainda, como, no choque entre a bigorna e o martelo, surgiu um
homem apaixonado por uma ideia e disposto a matar e morrer por ela.
Confrontado
pelas marcantes diferenças sociais com que se deparou em suas andanças pelas
Américas do Sul e Central na década de 50, e pela constante e despótica
ingerência norte-americana na região durante o início da Guerra Fria, Che alimentou
pouco a pouco uma concepção de mundo na qual o enfrentamento entre as massas
exploradas do continente e o imperialismo norte-americano seria inevitável.
Posteriormente, esta concepção encontrou o respaldo teórico no marxismo e, em
última instância, na luta armada.
Para Che, a
política era um mecanismo para as mudanças sociais e eram elas, e não o poder
em si, que o impeliam. Mas é exatamente na manipulação prática do poder, em uma opção ideológica focada no
marxismo, que repousa o principal equivoco de Che (e dos demais movimentos revolucionários
de esquerda que irromperam no entre as décadas de 60 e 70): a supressão do
indivíduo e da individualidade pela força e pela coerção, a adoção da “fé
socialista” em detrimento das mais básicas noções de humanidade. Em suas
próprias palavras: “Não lhe posso dizer, nem aproximadamente, em que momento
deixei o caminho da razão e adotei algo parecido com a fé, porque o caminho foi
muito longo e com muitos passos para trás.”.
Este caminho,
cujo início é marcado por “Nota al Margen”, texto escrito por Che em Buenos
Aires retratando suas experiências na Guatemala, levou-o a uma encruzilhada
que, alguns anos depois, culminou em sua morte.
“O futuro
pertence ao povo e, pouco a pouco, ou de um só golpe, ele vai tomar o poder,
aqui e no mundo inteiro. O ruim é que eles têm de se civilizar e isso não pode
acontecer antes, mas só depois que tomarem o poder. Eles se tornarão
civilizados somente aprendendo às custas de seus próprios erros, que serão
graves, e que custarão muitas vidas inocentes. Ou talvez não, talvez não sejam
inocentes, porque terão cometido o imenso crime contra natura, que significa
sua falta de capacidade de se adaptar. Todos eles, todos os que não forem
adaptáveis, você e eu, por exemplo, morrerão amaldiçoando o poder que nós, com
enorme sacrifício, ajudamos a criar”.
O texto acima
é a primeira expressão de Che da abstração do “eu”
em prol do “nós”. Ocorre que não existe “nós” sem o “eu”.
“Quando a
sociedade chega a certo estágio de desenvolvimento e é capaz de iniciar a dura
luta de destruir o poder opressor, de destruir seu braço forte, o Exército, e
de tomar o poder, então o homem recupera uma vez mais a antiga sensação de
felicidade no trabalho, a felicidade de cumprir com um dever, de se sentir
importante dentro do mecanismo social. Torna-se feliz por se sentir um dente na
engrenagem, um dente que tem suas próprias características e é necessário,
embora não indispensável, para o processo produtivo, um dente consciente, um
dente que tem seu motor próprio, e que tenta conscientemente esforçar-se mais e
mais a fim de levar a um feliz desfecho uma das premissas da construção do
socialismo: a criação de uma quantidade suficiente de bens de consumo para toda
a população.”
O hábito de
Che de se referir ao povo, aos trabalhadores, como peças de maquinaria permite
vislumbrar seu distanciamento emocional da realidade individual. Ele tinha a mentalidade
friamente analítica do pesquisador médico e do jogador de xadrez. Os termos que
empregava para os indivíduos eram redutores, enquanto o valor do trabalho no
contexto social era idealizado, apresentado liricamente.
Em carta a
mãe, disse: “A noção do ‘eu’ desapareceu inteiramente, para dar lugar a noção
do ‘nós’. Era um ponto da moral comunista e, naturalmente, pode parecer um
exagero doutrinário, porém realmente foi (e é) maravilhoso ser capaz de sentir
a remoção do ‘eu’”.
“Che Guevara
agora estava em guerra, tentando criar uma revolução. Fizera um salto
consciente de fé e entrara em um domínio no qual se podiam tomar vidas por um
ideal e os fins de fato justificavam os meios. As pessoas não eram mais apenas
pessoas. Cada uma representava um lugar dentro de um esquema global das coisas
e poderia ser vista, na maioria das vezes, como amiga ou inimiga”, reflete
Anderson.
Che abraçara
a revolução como a encarnação definitiva das lições da história e como o
caminho correto para o futuro. Agora, convencido de que estava certo, olhava em
volta com os olhos de um inquisidor em busca daqueles que poderiam pôr em
perigo sua sobrevivência.
É exatamente este ponto da personalidade de Che, a capacidade abstrair-se do indivíduo, da micro-humanidade, em prol de uma visão macro do homem é que mais me fascina, de uma forma negativa, porém. Seu pai, geralmente tão míope em relação ao filho, escreveu: “Ernesto tinha brutalizado sua própria sensibilidade” para se tornar um revolucionário.
Alberto
Granado – que percorreu a América Latina com Che em 1952 - recordou uma
conversa em que assinalou o que, na sua opinião, era a diferença fundamental
entre os dois. Che era capaz de olhar pela luneta de um fuzil para um soldado e
puxar o gatilho, sabendo que, ao mata-lo, estava “salvando 30 mil futuras
crianças de viver na fome”, enquanto ele, Granado, veria um homem com esposa e
filhos.
Este afastamento
da realidade – mesmo que em prol de um ilusório bem maior – é o grande símbolo
dos totalitarismos de esquerda, a vala na qual todas as experiências do
socialismo real atolaram e sucumbiram.
O trecho a
seguir é um exemplo da frieza cortante do revolucionário.
-
Alguns dias
depois, os irmãos testemunharam um exemplo da justiça sumária de Che. Enrique
Acevedo relembrou essa ocasião de forma vívida: “De madrugada, trouxeram um
homem grande, com uma farda verde, cabeça raspada como os militares, bigodes
grandes: é [René] Cuervo, que anda causando encrencas na zona de San Pablo de
Yao e de Veja la Yua. Cometeu abusos sob a bandeira do 26 de Julho (...). Che o
recebe deitado na rede. O prisioneiro lhe estende a mão, mas não encontra
resposta. O que dizem não chega aos nossos ouvidos, embora se perceba que o tom
é duro. Parece ser um julgamento sumário. No final, [Che] o manda embora com um
gesto de desprezo com a mão. Levam-no para uma ravina e o executam com um rifle
de calibre 22, tendo que dar três tiros. [Finalmente] Che salta da rede e
berra: Basta!
-
A banalização
da vida também é marcada por este trecho do
diário de Che no qual ele se admoesta por uma “fraqueza” durante os combates. “Houve
um pequeno combate e recuamos com muita rapidez. A posição era ruim e eles nos
cercavam, mas oferecemos uma pequena resistência. Pessoalmente, notei algo que
nunca sentira antes: a necessidade de viver. Isso precisa ser corrigido na
próxima oportunidade.”.
Ora, nada mais
amedrontador. Um homem capaz de suprimir sua própria necessidade de viver,
fatalmente ampliará esta exigência aos demais. Não seria incorreto imaginar que
Fidel Castro usou esta faceta de Che para que o argentino fizesse o trabalho sujo enquanto Castro tratava de assegurar
sua liderança frente aos muitos grupos políticos envolvidos na vitória da
revolução sob a bandeira do Movimento 26 de Julho.
Para
Anderson, Fidel precisava de Che para a indispensável tarefa de expurgo do
antigo Exército, para consolidar a vitória aplicando a justiça revolucionária
contra os traidores, os chivatos (informantes do regime) e os criminosos de
guerra de Batista. Che se transformou no promotor supremo, aquele que tomava a
decisão final sobre o destino dos homens. E, pela revolução, não se furtou
desta incumbência.
Em Janeiro de
1960 o arquiteto Nicolás Quintana teve um encontro marcante com Che – já um
prócere da revolução. “Ele me disse: ‘Olhe, as revoluções são feias, porém
necessárias, e parte desse processo revolucionário é a injustiça a serviço da
justiça futura’”, recordou Quintana. “Jamais conseguirei esquecer essa frase.
Repliquei que isso era a Utopia de Thomas Moore. Disse que nós tínhamos ficado
na merda por causa dessa história durante muito tempo, por acreditarmos que conseguiríamos
alguma coisa, não agora, mas no futuro.
Che ficou olhando para mim por um tempo
e falou: ‘Bem. Você não acredita no futuro da revolução.’ Eu lhe disse que não
acreditava em nada que fosse baseado na injustiça."
Che então lhe
perguntou: “Mesmo que a injustiça seja salutar?”
Ao que Quintana
retrucou: “Não creio que, para os que morrem, você possa falar em injustiça
salutar.”
A resposta de
Che foi imediata: “Você tem que deixar Cuba. Tem três opções: vai embora de
Cuba e não há problema nenhum comigo, ou trinta anos [na prisão] no futuro
próximo, ou o pelotão de fuzilamento.”
É fascinante
perceber que por detrás desta frieza havia também um homem amoroso, ainda que este
amor estivesse profundamente contaminado pela ideologia.
Em sua carta
de despedida aos cubanos ao embarcar secretamente a Bolívia, Che diz: “Deixem-me
dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é
guiado por fortes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário
autêntico sem essa característica. Este é, talvez, um dos maiores dramas de um
líder: ele precisa combinar um espírito apaixonado com uma mente fria, e tomar
decisões dolorosas sem mexer um músculo. Nossos revolucionários de vanguarda
precisam idealizar seu amor pelo povo, pelas causas mais sagradas, e torna-lo
uno e indivisível. Eles não podem se rebaixar, com pequenas doses de afeto
diário, aos lugares onde os homens comuns põem seu amor em prática”.
Em Che, a
nossa dicotomia humana está presente, à flor da pele, escancarada. Eles estão
ali, visíveis, o anjo ao lado do demônio.
“O que o levou
a resolver operar em nosso país?”, perguntou o Coronel Andrés Selich ao seu
prisioneiro, Che Guevara, em La Higuera, na Bolívia, sete anos depois do
encontro com Quintana.
“O senhor não
vê o estado em que vivem os camponeses?”, perguntou Che. “São quase como
selvagens, vivendo em um estado de pobreza que deprime o coração, tendo apenas
um aposento no qual dormem e comem, sem roupas para vestir, abandonados como
animais (...).”
É terrível
observar uma de suas últimas fotos,
na qual Che aparece como uma fera selvagem subjugada, o rosto magro voltado
sombriamente para baixo, os cabelos compridos emaranhados, os braços amarrados
na frente do corpo, ao lado do agente cubano-norte americano Félix Rodriguez,
da CIA, logo após a execução de Willy (Simeón
Cuba Sarabia).
Seus últimos momentos, narrados por Anderson, são de uma força emocional
estupenda e nos fazem conjecturar se no fim ele pensou em si mesmo como um
homem, um indivíduo real em meio à coletividade subjetiva.
-
Rodriguez
levou Che de volta para dentro da escola e retomaram a conversa, mas foram
interrompidos por mais disparos. Dessa vez o executado foi, ao que consta, Juan
Pablo Chang, que fora capturado, ferido, e trazido com vida naquela manhã. A
essa altura, os corpos de Aniceto e Pancho, que tinham sido abatidos na ravina,
também estavam ali. “Che parou de falar”, recordou Rodriguez. “Não disse nada
sobre os tiros, mas seu rosto espelhava tristeza e ele sacudiu a cabeça várias
vezes, lentamente, de um lado para o outro. Talvez tenha sido nessa instante
que se deu conta de que ele também estava condenado, embora eu não lhe tenha
dito nada até pouco antes de uma da tarde”.
Rodriguez viu
que não podia retardar mais e voltou para dentro da escola. Entrou na sala de
Che e disse que estava triste, que fizera tudo que podia, mas as ordens tinham
vindo do alto-comando boliviano. Ele não terminou a frase, mas Che entendeu.
Seguindo Rodríguez, o rosto de Che ficou momentaneamente pálido, e ele disse: “É
melhor assim (...). Eu nunca deveria ter sido capturado vivo”.
Rodriguez
perguntou se ele tinha alguma mensagem para sua família, e Che lhe pediu para “dizer
a Fidel que ele logo verá uma revolução triunfante na América (...) E diga à
minha mulher que se case de novo e tente ser feliz”.
Diante disso,
Rodríguez contou, ele deu um passo à frente para abraçar Che. “Foi um momento
tremendamente emocionante para mim. Não o odiava mais. Sua hora da verdade
tinha chegado e ele estava se portando como homem. Estava encarando sua morte
com coragem e elegância.”
Pouco depois
Che foi fuzilado pelo sargento Mario Terán, era uma e dez da tarde do dia 9 de
outubro de 1967. Ele tinha 39 anos.
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