Obama anuncia, à sua maneira profética, o
mesmo que os governantes europeus anunciam com menos elegância oratória:
que, sangrado o doente, virá a saúde eterna. Mas, na verdade, o que ele
promete é apenas a continuidade da sangria.
Quatro anos chegaram para desvanecer a esperança com que tantos
americanos - e tantos outros não americanos - encararam a primeira
eleição de Obama. Na verdade, se algo marca a sua reeleição na semana
que agora finda é a nítida sensação de que ela ocorreu em clima de
profunda desilusão. Foi essa desilusão que, apesar das facilidades dadas
por uma candidatura republicana refém do fundamentalismo estúpido do
Tea Party - com pérolas como a das "violações legítimas" ou a da
inspiração comunista da teoria da evolução -, determinou que a reeleição
do grande vencedor de há quatro anos tenha sido conseguida em tremendo
esforço e por uma unha negra.
Em 2008, Obama soube capitalizar a necessidade vital de esperança da
sociedade americana. A agressão neoconservadora à grande maioria da
sociedade americana - através da drenagem da economia para as guerras
infinitas, do estímulo à especulação financeira crescentemente
irresponsável ou da protecção dos mais ricos dos ricos no pressuposto
fantasioso de que isso geraria estratégias de emulação pelo povo pobre -
tinha deixado os Estados Unidos estilhaçados e tinha destruído boa
parte dos laços de pertença de pessoas e de comunidades. Foi face a isso
que Obama se assumiu como o american dream ele mesmo, redentor suave de
todas as fraturas, de todas as culpas, de todos os traumas. Como em
tantos melodramas de Hollywood, o personagem Obama alimentou a crença em
que o capitalismo americano se poderia reconciliar consigo próprio e
renascer.
Os últimos quatro anos foram a perda da inocência dessa crença. Obama
não atacou as causas da crise financeira, antes transferiu os seus
efeitos fazendo-a ser paga pelos cidadãos americanos e pelos não
americanos apanhados pelas ondas de choque do sub-prime. Obama não
afrontou o poder de Wall Street, antes designou altos quadros da Goldman
Sachs e do Citibank para cargos estratégicos na condução da política
económica americana. Obama não resolveu a chaga da falta de um sistema
público de saúde, antes criou um mercado de serviços de saúde em que o
Estado paga as faturas mas se coíbe de prestar ele próprio cuidados
fundamentais. Obama não tratou os imigrantes de forma diferente, antes
duplicou o número de 'ilegais' deportados por Bush para os seus países
de origem. Obama ordenou a retirada do Iraque, mas manteve como
Secretário da Defesa o homem que Bush nomeou para coordenar a máquina de
guerra e redobrou a campanha no Afeganistão. A nova era não veio.
"O melhor ainda está para vir", proclamou na noite da reeleição. Obama
anuncia, à sua maneira profética, o mesmo que os governantes europeus
anunciam com menos elegância oratória: que, sangrado o doente, virá a
saúde eterna. Mas, na verdade, o que ele promete é apenas a continuidade
da sangria. Obama é um democrata clintoniano e não rooseveltiano. Nunca
o ouvirão dizer - como disse esse seu antecessor - que compreende as
razões dos que odeiam os ricos. Não, como Clinton, ele dará continuidade
à orientação antissindical, à política de rebaixamento dos salários, à
cumplicidade com Israel contra a Palestina, à manutenção do império dos
combustíveis fósseis e ao dogma de que os bancos são demasiadamente
grandes para falirem.
Um Obama assim é a prova da perversão de um sistema político em que os
democratas dão por garantido o voto da esquerda e, por isso, apostam
sempre na sedução à direita. De tal forma que ficam eles próprios
seduzidos pelo objecto da sedução. Talvez esta seja a mais útil
contribuição das eleições americanas para Portugal.
Artigo publicado no jornal "Diário de Notícias de 9 de novembro de 2012
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