A Pública entrou em uma inacreditável
cidade-prisão na Bolívia onde brasileiros convivem com tortura, extorsão
– e o abandono do Itamaraty
Um muro alto e quatro horas de fila me separam do interior de um
dos maiores presídios da Bolívia, onde vivem mais de 4.400 pessoas. A
temperatura passa dos 35oC e o chão de areia aumenta o
desconforto das muitas mulheres que esperam ali e tentam dar conta de
seus sapatos de saltos altos, crianças pequenas e sacolas. Não é dia de
visitas no Centro de Rehabilitación Santa Cruz Palmasola na cidade de
Santa Cruz de La Sierra, na Bolivia. Ainda assim, elas esperam
pacientemente pelo encontro com seus companheiros. Sabem que o passe
será liberado com o pagamento de dez pesos bolivianos (cerca de 3 reais)
aos policiais.
As horas vão passando e o abatimento vai surgindo, algumas histórias
tristes começam a ser contadas e a cumplicidade aumenta. Logo todas
estarão dividindo chicletes, garrafas de água e maquiagem para o
retoque, já que a pintura caprichosa vai se desmanchando sob o sol
quente. Uma moça pergunta a quem vou visitar. “Uns amigos brasileiros”
respondo de forma vaga, ao que ela conclui rapidamente: “Mil ocho
certamente, como a maioria aqui” referindo-se à lei 1008, que endureceu
as regras para tráfico de drogas, instituída em 1988, sob forte pressão
do governo americano. A “milocho” determinou sentenças mais duras e
longas para quem comete delitos relacionados ao narcotráfico – do
cultivo, consumo e transporte da folha de coca, tradicional cultivo do
país, à sua transformação em cocaína. As penas chegam a 20 anos de
prisão, sem grandes distinções entre traficantes e usuários.
A moça diz que o companheiro “caiu” pelo mesmo motivo, mas após 4
meses em prisão preventiva, ainda não havia tido sequer uma audiência.
História parecida chamou recentemente a atenção da imprensa
internacional: Jacob Ostreicher, empresário americano de 53 anos, preso
há 17 meses por suspeita de lavagem de dinheiro e envolvimento com o
crime organizado – e ainda sem sentença.
O companheiro da visitante, assim como dezenas de brasileiros, não
tiveram a mesma sorte: suas histórias continuam desconhecidas. Segundo o
advogado criminalista Hernán Mariobo, 80% dos detidos em Palmasola
estão em prisão preventiva, aguardando julgamento. Muitos há mais de
três anos, que é o máximo permitido por lei. “Estamos falando de mais de
mil pessoas que estão com seus processos parados e, por consequência,
tendo seus direitos humanos violados. Outros tantos que já poderiam ter
saído ou poderiam responder em liberdade. Mas a Defensoria Pública em
Santa Cruz tem no máximo 20 pessoas para dar conta de todos estes
processos, e é claro que a coisa se complica ainda mais para os
estrangeiros, que são colocados no fim da lista”. Para um advogado que
pediu para não ser identificado, temendo que seus clientes sejam
prejudicados, o problema é que todo o sistema está imerso em corrupção:
“Lamentavelmente em nosso sistema de justiça, especialmente em Santa
Cruz – e dói reconhecer isso como advogado boliviano – a corrupção tem
se proliferado muito. Para se tirar um xerox de documento para marcar
uma audiência tem de se falar com o secretário, com o juiz, eles
argumentam que a agenda está cheia, te pedem dinheiro”, diz. “Para fazer
as notificações é ainda pior. É um eterno sofrimento. Tenho um cliente
espanhol de 70 anos que teve a audiência cancelada 5 vezes porque chegou
5 minutos atrasado ou porque o juiz teve um problema na escola do
filho, ou ainda porque era o dia do juiz e todas as audiências do dia
foram canceladas sem aviso prévio”.
Enquanto esperamos na fila, alguns homens chegam algemados de táxi e
de moto: não há um veículo oficial para entrar e sair dali. O preso deve
pagar o táxi até Palmasola e, quando tem audiência marcada, precisa
pagar escolta policial e o transporte de ida e volta. Subitamente, um
policial aparece à porta da prisão e diz que “ninguém deve pagar um peso
sequer” para entrar. As mulheres comemoram e apontam para um jornalista
que espera a saída de um preso famoso com uma câmera em punho como
motivo para a “gentileza”.
A administração de Palmasola não se parece em nada com o modelo
penitenciário que conhecemos no Brasil. Passada a pequena porta se vê um
grande descampado lotado de lixo e urubus, cortado por uma rua que
separa os pavilhões: um de segurança máxima, conhecido como
Chonchocorito – referência a um presídio de segurança máxima da capital
La Paz – outro reservado às mulheres, um terceiro para presos “comuns”;
um para portadores de doenças contagiosas e o finalmente uma “área vip”
para policiais e autoridades.
Todos são trancados. Mas a polícia fica do lado de fora. Lá dentro,
quem garante a segurança são os próprios presos, que uma vez por ano
elegem a “Regência”, espécie de administração penitenciária própria que,
por sua vez, escolhe seu exército, conhecido como “Disciplina”, homens
com penas perpétuas ou longas que andam uniformizados, armados com
porretes, e garantem o cumprimento de leis estipuladas por eles. Leis
que não estão em nenhum papel, segundo detentos, advogados e
pesquisadores, mas que se não forem cumpridas, podem ser pagas até com a
vida – como no caso de estupro ou abuso de crianças – ou com castigos
exemplares.
Mas é dificil se aprofundar no assunto, já que maior lei é a do
silêncio: o que acontece dentro de Palmasola, fica em Palmasola. Quem
fala demais também é castigado. Ao que parece, a polícia não interfere
da porta para dentro a não ser em casos extremos que podem repercutir de
forma negativa. Foi assim no começo de 2012, quando uma equipe de
reportagem da TV americana ABC filmou a realidade vivida por Jacob. A
reportagem exibiu o rosto de crianças e homens usando cocaína. Quando
foi ao ar, causou alvoroço nos EUA. Alguns dos detentos afirmam ter sido
torturados e levados ao pavilhão de segurança máxima como castigo.
Uma cidade entre muros
Ainda na zona que separa os pavilhões, encontro Darly Franco,
advogada paulista que vive em Santa Cruz e há 6 anos milita pela causa
dos brasileiros presos ali. Na sua tese de mestrado, ela sugere a
modificação do código penal para estrangeiros que cometeram delito de
narcotráfico. “Na verdade, para qualquer delito penal o procedimento é o
mesmo. Os artigos principais são o 233, 234 e 235 que dizem que a
pessoa não vai em detenção preventiva se tiver trabalho, família,
domicilio. Mas como a gente faz isso com estrangeiro? Existe um decreto
que diz que nenhum turista pode exercer atividade econômica, então como
vamos demonstrar que ele tem trabalho? Se eu estou de passagem e me
pegam no aeroporto, como vou ter domicilio? Assim, é pouco provável que
essa pessoa consiga responder em liberdade. Foi pego, vai preso. E se
você não tem dinheiro, vai ficar lá, por causa de todo o esquema de
corrupção, golpes de advogados fajutos e a lentidão da justiça”.
Muito respeitada pelos detentos, principalmente os brasileiros aos
quais defende como pode, mesmo que paguem pouco ou nada, Darly conduz a
reportagem pelos pavilhões. Assim que chega, os presos imediatamente se
oferecem para carregar suas pastas de documentos, andam ao seu redor,
fazem mil perguntas. “Praticamente vivi em Palmasola quando escrevi
minha tese e desde então venho ao menos uma vez por semana para tentar
fazer estes processos andarem”, explica.
Para entrar no “PC4”, maior pavilhão masculino, precisamos pagar
cinco pesos a um policial que nos carimba o pulso. Assim entramos no
maior pavilhão, onde estão, naquele dia, 70 homens brasileiros, a
terceira maior população de estrangeiros, segundo Darly, atrás dos
peruanos e colombianos. De cara é possível notar que não há celas e os
homens caminham livremente ali dentro. Os brasileiros nos recebem na
porta.
Para conversarmos mais à vontade, o paranaense Mário* – todos os
nomes nesta reportagem são fictícios, para evitar que sofram represália –
um senhor de fala mansa, extremamente educado, nos conduz à igreja onde
mora. Isso mesmo: dentro da prisão. Ele conta que já vivia há mais de
20 anos na Bolivia quando brigou com um funcionário da fazenda onde
trabalhava; matou-o com um tiro de espingarda. Há dez anos em Palmasola,
é o brasileiro mais antigo no PC4. Para sobreviver e pagar os cerca de
30 pesos bolivianos diários que diz gastar com comida e ítens de
higiene, faz redes e artesanato que vende dentro e fora de Palmasola,
através de familiares de outros presos.
No caminho, passamos por tendas de artesanato, lanchonetes, um campo
de futebol, uma universidade de direito e até uma pousada onde
familiares e amigos dos presos podem se hospedar por alguns dias. Todas
as construções são erguidas e administradas por eles e os produtos são
vendidos ali dentro para os companheiros de pavilhão e também para o
grande volume de pessoas que transita ali diariamente. Muitos criam um
verdadeiro patrimônio, com quartos arrendados e pequenos negócios. Aos
que têm condições financeiras é permitido inclusive morar com a família.
Segundo dados da Defensoría del Pueblo em Santa Cruz, há mais de mil
crianças vivendo dentro de Palmasola. Elas saem para estudar em escolas
próximas – há uma bem em frente ao portão de entrada – e voltam no fim
do dia para dormir na “casa” dos pais.
Não havia muitas crianças transitando durante nossa visita porque
estavam em horário de aula. Mas as que estavam por ali, pequenas,
andavam grudadas nos pais. Os presos em melhores condições financeiras –
que recebem dinheiro da família, de negócios internos ou com o tráfico
de drogas – podem, além de usufruir dos bens de consumo e serviços
produzidos lá dentro, contratar prostitutas que chegam de fora e do
pavilhão de mulheres, consumir drogas e incrementar suas celas com
pequenos luxos como televisão, aparelho de som.
A vida dos brasileiros
Como em uma verdadeira cidade, há “bairros” ricos e pobres. Quem não
tem dinheiro, como a maioria dos brasileiros, que não têm família ou
amigos por perto, tem de se virar com o “rancho”, como é chamada a
comida da detenção. Naquela quarta-feira, o rancho era uma papa de arroz
com lentilha coberta por um caldo laranja não identificado. Para
dormir bem, há de se contar com a ajuda das igrejas –algumas permitem
que os presos pernoitem se ajudarem na limpeza – ou ser um bom jogador
de futebol: “Os bolivianos gostam muito do futebol brasileiro, então
quem joga bem e participa dos campeonatos que a gente faz aqui, recebe
mais ajuda do pessoal” explica Mauro*, em prisão preventiva por
tentativa de estelionato há dois anos e três meses.
Quem não consegue ajuda vive literalmente como sem-teto, dormindo
sobre papelões a céu aberto. “É claro que existe um regime penitenciário
e alguns processos administrativos se encaixam na lei, mas o resto está
totalmente à margem. O que acontece em Palmasola é o que acontece aqui
fora: quem tem mais recursos vive melhor” explica o advogado Hernán
Mariobo. “O que está na lei é o sistema padrão, como o norte-americano,
com celas, horários. Mas os presos criaram seu próprio sistema”.
Antes de entrarmos na igreja, Marcelo*, um moço jovem preso por roubo
na cidade de San Matias, nos leva para conhecer “el bote”, uma cela
pequena e escura, usada como medida punitiva, sem janelas, trancada por
barras de ferro, como as do antigo Carandiru em São Paulo. Lá dentro há
vários homens – nem eles sabem dizer quantos são. Um brasileiro se
apresenta, diz que não se lembra há quantos dias está ali e que foi
trancado porque se atrasou para a chamada que a polícia faz diariamente.
Os outros presos repassam o rancho pela grade.
Marcelo levanta a camiseta para mostrar as costas tomadas por um tipo
de doença de pele, com grandes manchas vermelhas espalhadas e algumas
feridas. “Peguei esse bagulho quando fiquei mais de 70 dias no bote. Uns
brasileiros fugiram e a disciplina nos pegou como exemplo, bateram,
quebraram minha costela na frente de todo mundo e nos trancaram aí”,
diz, apontando para a cela. “Só que para se consultar com o médico tem
que pagar 50 pesos bolivianos. Para ter remédio, precisa pagar. Isso é
horrível e está se espalhando, mas não tenho o que fazer”, lamenta.
As reclamações aparecem num caos de vozes em uma mistura de
português, espanhol e gírias locais. “Nós brasileiros somos tratados
como cachorros aqui”, diz um. “Queria eu ser tratado como perro, somos é
lixo”, retruca o outro. “A comida é ruim, não temos onde dormir, não
temos remédios”, grita um terceiro. Uma criança pequena escuta tudo
atentamente, do colo do pai brasileiro. A mãe, boliviana, está do lado
de fora trabalhando.
A doutora Darly tenta organizar a bagunça, pede que as queixas sejam
feitas por tema. Quase nenhum dos homens ali tem seus documentos,
retidos pela polícia quando foram capturados. Nenhum tem a cópia do
processo, e muitos estão há anos em prisão preventiva por crimes
considerados de bagatela, como tentativa de roubo. Um brasileiro que
está lá há mais de três anos foi pego tentando abrir um carro com um
arame.
A reclamação maior é contra o Consulado brasileiro: “O cônsul não vem
aqui e o advogado representante aparece de vez em quando, mas nunca
resolve nada. Ele só nos traz cestas básicas de três em três meses”, diz
um detento, referindo-se ao advogado boliviano contratado há 12 anos
pelo Consulado para agilizar os processos dos presos brasileiros. O
preso rapidamente pede para não ser identificado. Entredentes, Marcelo
justifica o medo dos companheiros: “tá vendo aquele ali com o colete? É
da disciplina. Nós vamos apanhar hoje porque estamos falando com a
senhora. Eu não me importo, porque a gente precisa de ajuda. Mas se
falarmos demais a coisa pode ficar feia”.
Segundo os presos ouvidos pela reportagem, o assessor jurídico do consulado só aparece a cada três meses.
No começo de outubro, mais de 20 homens escreveram cartas de próprio
punho destinadas ao Consulado brasileiro e ao Itamaraty, reclamando da
negligência e denunciando um suposto esquema de extorsão. Uma delas, à
qual a Pública teve acesso, relata: “Como cidadão brasileiro reclamo
meus direitos a assistência social, médica e um advogado. Não temos nada
disso. Precisamos de ajuda, estamos abandonados, esperamos que nos
atendam como pessoas. Estou sem documentos, com a condicional cumprida”.
Outra carta explica: “Estou preso há 6 anos e nunca tive visita porque
meus pais estão mortos e não tenho atenção médica, não tenho trabalho
firme, não tenho advogado. Por isso peço ajuda do meu país onde vivi. O
advogado do Brasil não está fazendo nada a que nos corresponde (…)
solicitamos a mudança de advogado”. Uma terceira diz: “Denuncio o doutor
Solis que sabendo que cumpri a minha pena não fez nada por mim. Ele é
um mentiroso (…) preciso dos meus documentos, do meu passaporte, estou
esquecido na Bolívia. Doutor Soliz, chega de mentira, preciso de sua
atenção”. As denúncias continuam: “Doutor Solis, deixe de ser mentiroso e
de enganar nós aqui, porque não dá nenhuma informação sobre nossa
situação aqui e quando vem aqui não faz nada. Solicito que troque o
advogado (…) Ademais ele rouba todas as nossas coisas que mandam para
nós aqui. Peço que o cônsul venha nos visitar para que falamos sobre a
nossa situação urgente”.
Você pode ler algumas destas cartas no final da reportagem.
Depois do PC4, fomos a Chonchocorito. Por algum tempo se proibiu a
visita de mulheres ao pavilhão de segurança máxima por risco de estupro.
De qualquer forma, éramos as únicas mulheres ali dentro. Darly estava
calma e ambientada, cumprimentava os homens pelos nomes, perguntava
sobre suas famílias. Um boliviano reincidente veio mostrar seu bebê em
um carrinho dizendo que agora terá de tomar juízo.
Passados dois portões, estavamos por nossa conta. Ali, nada de lojas
ou lanchonetes: Apenas um grande prédio cinza ao lado de um pequeno
campo de futebol improvisado e uma espécie de pátio com bancos à sombra
de um toldo de palha. Um brasileiro vem ao nosso encontro e sai para
chamar outros cinco que vivem lá. Enquanto conversamos, homens passam
armados com pedaços de canos e armas brancas de todo tipo para saber o
que está acontecendo. Todos nos tratam com respeito. A maioria dos
brasileiros caiu ali por tráfico de drogas ou roubo – ao contrário do
PC4, onde muitos estão por assassinato e devem cumprir penas de mais de
20 anos.
Eles contam que quase todos os homens, quando chegam a Palmasola, vão
direto para Chonchocorito. Os que podem pagar cerca de mil dólares são
transferidos para o pavilhão mais cômodo. Entre os que nos recebem em
Chonchocorito está o reincidente João*. Junto com um grupo de 22
brasileiros, em 2003 ele se crucificou e costurou os lábios para chamar a
atenção do Consulado brasileiro para a situação em Palmasola.
“O cônsul veio aqui, prometeu melhorias, saiu em um monte de jornais
no Brasil e depois ficou tudo igual. Igual não, pior na verdade, porque
sofremos represália. Apanhamos mais por ter chamado a atenção, e o custo
de vida aumentou”. Os detentos contam que, se um boliviano ganha 10
pesos por um dia de trabalho (limpando, arrumando, etc.), um estrangeiro
ganha cinco. E que o mesmo acontece com o custo da comida e bebida, que
aumenta para quem é de fora.
Um jovem que foi pego roubando há três meses conta que não teve nem a
primeira audiência com o juiz. “Estou sem documento, sem meus pertences
que foram tirados pela polícia e nunca vi ninguém do Consulado
brasileiro aqui. Sei que existe um advogado porque os outros me
disseram”. No dia seguinte à nossa visita, Chonchocorito entraria em
rebelião pacífica por melhores condições de vida, com uma greve de fome
que foi noticiada apenas na TV local.
Brasileiras, abandonadas
O último pavilhão a visitar – o relógio apontava para as 17h, apesar
do sol a pino que não dava trégua – era o das mulheres. Tensão e
tristeza pareciam deixar o ar mais denso. Ao contrário do PC4, quase não
há visitas. Muitas das 18 brasileiras presas em Palmasola são
dependentes químicas, principalmente de crack e outras variações da
pasta-base da cocaína, inclusive injetáveis.
Elas têm a pele solta no corpo, marcas de agulhas e facadas,
arranhões, hematomas das brigas diárias. Poucas se juntam a nós, a
maioria está dopada demais para conversar. Quando pergunto onde arranjam
dinheiro para sobreviver ali dentro, uma responde: “Roubando. A gente
rouba umas das outras, pede emprestado e não devolve, pega.
Principalmente para as drogas. Eu sou uma viciada, não tenho vergonha de
assumir isso. Só queria ter dinheiro para usar”.
Entre elas está uma senhora que aparenta de mais de 60 anos, presa no
aeroporto transportando cocaína, que age de forma maternal com as
outras, cuidando para que não falem demais, dizendo à doutora Darly que
“pelo amor de Deus arranje ajuda médica para estas meninas”. Ela está
presa por “mil ocho” como a maioria ali. E faz pães que são vendidos nos
pavilhões para juntar algum dinheiro para pagar um advogado já que,
como as outras, diz que não pode contar com o advogado do consulado.
Quando perguntamos sobre ele, elas bufam, dão risada e uma diz: “Eu acho
que nunca vi esse homem aqui”.
Ao final do dia, uma voz masculina em particular, sem rosto, ecoa
sobre as outras: “moça, não sei como, mas eu saio daqui logo. Nem que
seja com os pés gelados”.
Consulado e Itamaraty
Procurado pela Pública, o advogado contratado boliviano que atende em
nome consulado brasileiro, Juan Soliz, diz que ajuda como pode, fazendo
correr os processos, porém a verba é curta e a demanda é muito grande:
“temos bastante indigentes, esses hippies que vem para cá, consumidores
de drogas que decidem cometer alguns delitos, quando são presos ficam
nestes lugares mais humildes. Normalmente minha atividade é centrada
nessa gente. De maneira voluntária, o consulado manda um pouco de comida
a cada dois ou três meses”. Segundo ele, a cesta básica é “voluntária”
porque não é atribuição do consulado. “Hoje temos cerca de cem presos
brasileiros e a verba que temos para custos processuais e de ajuda a
todos é de mil dólares”
Segundo o advogado especializado em direito internacional Claudio
Fikelstein, não há uma lei que determine o que o Consulado brasileiro
deve ou não fazer nestes casos. Mas regularizar a parte de documentos,
avisar a família dos presos e prestar auxílio jurídico adequado é, sim,
uma obrigação do orgão. “O que acontece é que alguns consulados
realmente interferem mais em casos de prisões de brasileiros no
exterior, como os que envolvem pena de morte e casos extremos e outros,
talvez por falta de verba ou de pessoal, se envolvem menos.
Questionado a respeito, o Itamaraty declarou por meio de sua
assessoria de imprensa que “em 2011 foram visitados 120 brasileiros em
Palmasola em 95 visitas de periodicidade quinzenal” – ao contrário do
que dizem os presos – e que o governo brasileiro não tem competência
para representar em corte os brasileiros presos. Explicou ainda que “a
responsabilidade básica da dignidade e bem-estar dos presos é da
autoridade local, mas o cidadão detido pode se comunicar e levar suas
denúncias ao Consulado sempre que necessário e em casos extremos
adquirir artigos básicos como remédios, alimentos e peças de vestuário”.
Tais normas são regidas pela Convenção de Viena sobre Relações
Consulares e no Manual de Normas do Serviço Consular e Jurídico (NSCJ)
que regulamenta a assistência a presos brasileiros no exterior prestada
pelo Itamaraty. Destaque para o artigo 3.10.7 do Manual: “A Autoridade
Consular procurará apurar junto às autoridades locais qualquer fato que
possa, a seu critério, colocar em risco a integridade moral, física e
psicológica do preso brasileiro, solicitando a implementação de
providências nesse sentido”.
Pouco antes do fechamento desta reportagem, a advogada Darly Franco
levou as cartas dos presos ao Consulado brasileiro em Santa Cruz que,
segundo ela, se negou a receber porque os papéis não estavam assinados.
Esta reportagem foi realizada por meio do Concurso de Microbolsas da Agência Pública, em parceria com a Rede Brasil Atual. A repórter da Pública Andrea Dip se uniu à jornalista Tatiane Ribeiro, que atualmente trabalha no site Mural, da Folha de S Paulo. *Todos os nomes são fictícios.
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