“Vagabundo que faz greve deveria ser demitido.” Algumas poucas vezes me dou o direito de atualizar e republicar certos textos deste blog. Hoje é o caso. Pois, ouvi no trem, uma senhora reclamando destemperadamente com uma amiga dos professores da rede municipal em São Paulo, que estão em greve desde o dia 03 – da mesma forma que doutos senhores espezinhavam a greve de professores das universidades federais, tomando cafezinho nos Jardins, tempos atrás. Pedem 17% de recomposição inflacionária dos últimos três anos. A prefeitura oferece 10,19% agora e mais 13,43% em 2014. Mas os sindicatos alertam que esses valores seriam relativos a outros acordos firmados em anos anteriores para incorporação de abonos.
Contudo, mais do que discutir se o salário dos professores será suficiente para pagar uma esfiha ou um kibe no Habib’s, o que me interessa neste texto é a forma com a qual vemos suas reivindicações e as descolamos da melhoria da educação como um todo.
Quando escrevi pela primeira vez sobre isso vivíamos a greves dos mestres das universidades federais. E, é claro, essa frase nunca vem sozinha: passeata que atrapalha o trânsito? Cacete neles! Protesto em praça pública? Cacete neles! Onde já se viu? Essas pessoas têm que saber seu lugar.
Sindicatos não são perfeitos, longe disso. Assim como ocorre em outras instituições, possuem atores que resolvem voltar-se para os próprios umbigos e tornar a busca pelo poder e sua manutenção de privilégio mais importante que os objetivos para os quais foram eleitos. Ou seja, tá cheio de sindicalista pelego ou picareta, da mesma forma que empresário corrupto e sonegador. Contudo, graças à organização e pressão dos trabalhadores, importantes conquistas foram obtidas para civilizar minimamente as regras do jogo – não trabalhar até a exaustão, descansar de forma remunerada, ter salários (menos in)justos, garantir proteção contra a exploração infantil. Direitos estes que, mesmo incompletos, são chamados por alguns empregadores de “gargalos do crescimento”.
É esquizofrênico reclamar que não há no Brasil quantidade suficiente de força de trabalho devidamente preparada para fazer frente às necessidades de inovação e produtividade e, ao mesmo tempo, chutar feito caixa de giz vazia as reivindicações de professores por melhores condições e remuneração. Como acham que o processo de formação ocorre? Por osmose? Cissipartição? Geração espontânea a partir dos argumentos fedidos desse povo?
Incrível como muitos colegas, ao tratarem sobre greve de professores, chamam sempre as mesmas fontes de informação que dizem, sempre, as mesmas coisas: é hora de apertar os cintos, os grevistas só pensam neles, a economia não aguenta, bando de vagabundos, já para a senzala sem jantar, enfim. Não existe imparcialidade jornalística. Qualquer estudante de jornalismo aprende isso nas primeiras aulas. Quando você escolhe um entrevistado e não outro está fazendo uma opção, racional ou não, por isso a importância de ouvir a maior diversidade de fontes possível sobre determinado tema. Fazer uma análise ou uma crítica tomando partido não é o problema, desde que não se engane o leitor, fazendo-o acreditar que aquilo é a única intepretação possível da realidade.
Infelizmente, muitos veículos ou jornalistas que se dizem imparciais, optam sistematicamente por determinadas fontes, sabendo como será a análise de determinado fato. Parece até que procuram o especialista para que legitime um ponto de vista. Ou têm preguiça de ir além e fugir da agenda da redação, refrescando suas matérias com análises diferentes. Ou alguém acha que é aleatório escolherem sistematicamente o professor José Pastore para analisar direitos trabalhistas?
Apoio os professores. Apoio os metalúrgicos de fábricas de automóveis. Apoio os controladores de vôo. Apoio os cobradores e motoristas de ônibus. Apoio os bancários. Apoio os garis. Apoio os residentes médicos. Apoio o santo direito de se conscientizarem, reconhecerem-se nos problemas, dizer não e entrar em greve até que a sociedade pressione e os patrões escutem. Mesmo que a manifestação deles torne minha vida um absurdo.
O Brasil está conseguindo universalizar o seu ensino fundamental, mas isso não está vindo acompanhado de um aumento significativo na qualidade da educação. Mesmo que os dados para a evolução dos primeiros anos de estudo estejam além do que o governo esperava no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), grande parte dos jovens de escolas públicas têm entrado no ensino médio sabendo apenas ordenar e reconhecer letras, mas não redigir e interpretar textos. Enquanto isso, o magistério no Brasil continua sendo tratado como profissão de segunda categoria.
Uma educação de baixa qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das demandas profissionalizantes e com professores mal tratados pode mudar a vida de um povo?
Por fim, estou farto daquele papinho do self-made man cansativo de que os professores e os alunos podem conseguir vencer, com esforço individual, apesar de toda adversidade, “ser alguém na vida”. Aí surgem as histórias do tipo “Joãozinho comia biscoitos de esterco com insetos e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou (às vezes, contando com a ajuda de um mecenas da iniciativa privada), andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Hoje é presidente de uma multinacional”. Passando uma mensagem “se não consegue ser como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade e de um bom professor, você é um verme nojento que merece nosso desprezo”. Afe. Daí para tornar as instituições públicas de ensino e a figura do próprio professor cada vez mais acessórias é um passo.
Educação é a saída, mas qual educação? Aquela defendida pelo pessoal do “Amigos do Joãozinho”? Educar por educar, passar dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina e ponto final. Uma das principais funções da escola deveria ser produzir pessoas pensantes e contestadoras que podem colocar em risco a própria estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Educar pode significar libertar ou enquadrar. Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter? Para essa tarefa, professores bem formados e remunerados são fundamentais.
Em algumas sociedades, pessoas assim, que protestam, discutem, debatem, discordam, mudam são úteis para fazer um país crescer. Por aqui, são vistas com desconfiança e chamadas de mal-educadas e vagabundas. Ironia? Não, Brasil.
Aproveitando o gancho, há algum tempo aves funestras passam voando por redacões de veículos de comunicação demitindo sem dó.
Mudanças acontecem e a nova geração que, hoje, pega uma revista e, com dois dedinhos, tenta ampliar uma foto como uma tela sensível ou que não entende porque a TV da sala não responde aos seus toques terá um relação diferente com o papel que temos hoje. Jornais vão morrer no meio dessa transição. Outros migrarão para a internet. Veículos novos vão surgir, pensados para plataformas digitais, multimídias, interativas. Quem não se adaptar e não se planejar para essa virada, vai comer capim pela raiz mais cedo. Contudo, temos uma forte produção jornalística em formato de empresa tradicional e, durante muito tempo, ainda teremos. Talvez essa parte nunca mude, garantindo as coisas boas e ruins dessas estruturas. O fato é que isso está sustentado em uma relação capital/trabalho, ou melhor dizendo, patrão/empregado. Sim, colegas jornalistas, apesar de muitos de nós pensarem que não, nós somos operários da notícia. É difícil ouvir isso, mas é a realidade.
De tempos em tempos, somos surpreendidos com notícias de demissões coletivas em veículos de comunicação. Motivos são vários: garantir a sobrevivência do veículo, aumentar a margem de lucro, gerar capacidade de investimento em outros produtos da empresa. Há ainda os casos em que um jornal fecha as portas e boa parte das pessoas simplesmente vai para a rua por má gestão e erros na condução da publicação. Razões podem existir para o encerramento das atividades de um veículo ou a diminuição de sua força de trabalho. Mas o que não entra pela minha cabeça é que isso seja encarado tão bovinamente por todos nós.
E que algumas empresas que defendem a democracia e o diálogo como processo de construção de uma sociedade melhor, ignorem isso quando se trata delas próprias. É um negócio e pertence a alguém? Claro! Mas cresceu graças ao suor de trabalhadores, que deveriam ser consultados e chamados a compartilhar decisões. Quando demissões coletivas ou fechamentos de fábricas acontecem em linhas de montagem de veículos, metalúrgicos mobilizam o Pai, o Filho e o Espírito Santo, informam a população, além de cruzarem os braços até que uma solução seja encontrada para reverter o corte de vagas ou, pelo menos, criar compensações à altura. Professores vão para as ruas. Nós, não. Vemos colegas irem embora e não fazemos nada. Ou melhor, ficamos com medo de sermos os próximos e choramos sozinhos no banheiro.
Isso não é texto novo. Como já disse, nós, jornalistas, muitas vezes não nos reconhecemos como classe trabalhadora. Devido às peculiaridades da profissão, desenvolvemos laços com o poder e convivemos em seus espaços sociais e culturais, seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. Só percebemos que essa situação não é real e que também somos operários, transformando fato em notícia, quando nossos serviços não são mais necessários em determinado lugar.
Alguns colegas vão repetir: japa, mas essas mudanças são boas. Agora, os jornalistas vão poder trabalhar por conta própria e criar seus próprios veículos na internet. Como se um grupo de pessoas que, durante toda a vida, trabalhou em uma estrutura empresarial possa, de uma hora para outra, tornar-se um empreendedor de sucesso. Tendo família para sustentar, contas a pagar e sem a disposição de tentar do zero e dar com a cara no muro. Financiamento coletivo, patrocínio cruzado, enfim, há quem lide com isso de forma mais fácil. Mas lembrem-se que a maioria não foi programada para isso. Por isso, temos o chamado “Milagre da Multiplicacão dos Frilas”, que eram assalariados e tornaram-se “chefes de si mesmos”. Alguns são felizes por não terem férias remuneradas. Outros, não.
Talvez o futuro seja um misto de tudo isso, emprego CLT, frilas, empreendedores individuais ou coletivos, pessoas produzindo conteúdo em redes, ONGs, enfim. Mas, hoje, o que me preocupa são os viventes e suas contas a pagar.
O que estou pedindo? Jornalistas do mundo, uni-vos? Que tamancos sejam jogados nas prensas dos jornais? Nem… isso seria muito brega. Ou melhor, kitsch – tenho horror a kitch. O que gostaria de lembrar é que as coisas vão mudar cada vez mais rápido. E temos duas opções: encarar isso sozinhos ou juntos.
Um bom exercício seria tentar entender e relatar as greves de professores como algo que faz parte das necessárias disputas sociais e econômicas e não tema para página policial. O próximo pode ser você, caro jornalista com salário de coxinha e emprego de palha.
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