Simón Rodríguez: plantador de uma nova América
“Professor é o que ensina a aprender e ajuda a compreender”
22/10/2013
Elaine Tavares
Findava
o século 18 quando nesse continente dominado pela ocupação espanhola
uma voz solitária propõe outra forma de educar as crianças, para além
do simplesmente escrever o nome e soletrar algumas palavras. Era o
jovem Simón Rodríguez, professor numa pequena escola da cidade de
Caracas, Venezuela. Num documento que entra para a história, ele faz
uma ácida crítica ao sistema educacional da época e expõe suas ideias.
Segundo ele, o estado tinha de investir na formação de professores e a
educação não podia mais ficar restrita aos jovens brancos bem nascidos.
Era necessária uma educação popular capaz de formar meninos, meninas,
negros e índios. Essa proposta, revolucionária para aquele então, o
colocaria para fora da escola, mas começava aí a incrível trajetória
desse educador sem igual na América Latina.
O começo
Simón
Rodríguez nasce em Caracas no ano de 1771. Ele mesmo contava que fora
um menino exposto, daqueles que são colocados nas portas dos conventos.
Foi criado por Caetano e Rosália Rodríguez, embora sua educação
estivesse a cargo do tio, que era sacerdote. Naqueles dias, a cidade de
Caracas era um lugar aprazível, de grandes solares onde viviam os
espanhóis e os criollos, servidos por escravos. Para essa sociedade, o
trabalho era basicamente uma desonra e aos filhos da classe dominante
se permitia unicamente a carreira militar além dos postos de mando da
vida cotidiana. Havia apenas três estabelecimentos de educação na
cidade: o convento dos Franciscanos, uma escola pública e a
Universidade. Simón foi alfabetizado em casa, pelo tio, mas era um
garoto aplicado e observador. Amava ler e devorou cada livro que
encontrou na biblioteca do tio, que era bem servida. Na Caracas
daqueles dias chegavam os franceses da ilustração (Montesquieu,
Voltaire, Rousseau) e Simón os conhecia. Também tinha acesso aos
escritos que chegavam dos Estados Unidos e acompanhou o processo de
independência daquele país, bem como o da Revolução Francesa.
Forjava-se nele o espírito da rebelião.
Em 1791,
com apenas 20 anos, consegue o cargo de professor na escola pública e
tem sob seu comando 114 alunos. Simón não tem experiência, mas observa
que o ensino ministrado não tem um método e começa a matutar sobre essa
deficiência. Amante de Rousseau, quer estabelecer outra relação com os
alunos, mas fica prisioneiro das regras. Então, decide ensinar alguns
dos alunos em sua própria casa, que gradativamente torna-se uma escola.
A cidade olha curiosa para aquele garoto de aparência séria que dedica
sua vida ao ensino. E é essa pequena “fama” que faz com que o tutor de
Simón Bolívar peça ao educador que assuma a educação do garoto, então
com nove anos. Começa aí a relação dos dois Simóns que mudará a face da
colônia.
No começo Simón atende o garoto Bolívar
na casa da família e passa a usar com ele as ideias de Rousseau. Uma
educação ao ar livre, repleta de brincadeiras e exercícios físicos. O
ensino das letras vai devagar. Com o passar do tempo, a família de
Bolívar percebe que não há muito avanço e exige mais. Então, Simón
propõe que o garoto fique na escola que mantém em sua casa, junto com
os demais alunos. Já naqueles dias a escola de Simón era bem diferente.
Recebia, além de filhos da aristocracia, crianças de famílias pobres,
uma coisa praticamente inédita para a época. E lá se vai Bolívar
estudar com negros e índios, além de dividir o quarto, coisa até então
impensável para um herdeiro criollo. Há quem diga que foi aí que aquele
que seria o “libertador” forjou seu amor pelas gentes da América. Mas,
isso são especulações.
O certo é que Simón não
se conformava em ver a educação das crianças colocada nas mãos de gente
sem formação e sem método. Então se dispõe a registrar uma crítica
avassaladora do sistema. Escreve o texto: “Reflexões sobre os defeitos
que viciam a Escola de Primeiras Letras de Caracas e os meios para uma
reforma por um novo estabelecimento”. Nele, o jovem professor arrasa
com o sistema vigente, critica o fato de só ser oferecida educação às
crianças brancas e aponta a necessidade de educar as crianças pobres,
aos agricultores, aos artesãos. “O regime deve ser de igualdade”, diz.
Mostra também que o sistema não se preocupa com a formação dos
professores e insiste que esse deve ser o principal fator de mudança.
Como proposta exige o aumento do número de escolas, capaz de atender
todas as crianças em idade escolar, a formação de professores
profissionais, salários dignos para os educadores, jornada de seis
horas, móveis adequados para o ensino e finalizava exigindo que se
tomasse a sério a escola de primeiras letras. “Uma escola até pode ser
superficial, mas não inútil. O aluno não pode esquecer o que aprendeu.
Há que ter cuidado e delicadeza para dar às crianças a primeira ideia
de uma coisa”. Dizia isso porque havia a tradição de ensinarem até nas
barbearias, enquanto afeitavam os clientes. Simón abominava isso.
Defendia que como nessa idade a criança se distrai com qualquer coisa,
era necessário um ambiente adequado e que o professor também prestasse
atenção nas brincadeiras. “É necessário saber ler em todos os sentidos
e dar a cada expressão o seu próprio valor”.
As
reflexões de Simón não são bem vindas, nem na escola nem na
administração. Ele se indigna e deixa o cargo, seguindo apenas com sua
escola, em casa. Nesse meio tempo se engaja num movimento conspiratório
pela independência que já existia em Caracas. O grupo é descoberto e
Simón acaba fugindo para a Jamaica, visando escapar da justiça
colonial. No dia do embarque recebe a visita de seu aluno, Bolívar, do
qual se despede. Chegando à Jamaica Simón troca de nome, passa a
chamar-se Samuel Robinson. Não quer nenhuma ligação com a vida antiga e
jura nunca mais voltar à Venezuela. Pouco tempo depois vai para os
estados Unidos onde fica por três anos trabalhando numa gráfica. Lá,
ele aprende a editar e inventa uma nova forma de montar os textos,
usando letras maiúsculas para destacar bem como criando manchetes.
Tem
30 anos (1801) quando embarca finalmente para a França. Lá abre
escolas, ensina espanhol e inglês, lê como um louco e vai consolidando
seu pensamento educativo. Três anos depois encontra, em Viena, seu
antigo aluno, Bolívar, que passa a conviver com o mestre. Eles leem,
estudam e viajam juntos. No ano de 1805 os dois seguem à pé até a
Itália, aproveitando para discutir a realidade do mundo e da velha
pátria colonizada. E é justamente no Monte Sacro que os dois fazem seu
histórico juramento: libertar a pátria ou morrer. A partir daí, Bolívar
retorna para a Venezuela, onde nos anos seguintes vai dar consequência
a essa promessa. Simón segue no velho mundo criando escolas por todo o
lugar onde passa: Itália, Alemanha, Prússia, Polônia e Rússia. O
educador acompanha as façanhas de seu aluno na colônia e percebe que a
vida por ali está prestes a sofrer uma grande transformação. Decide
então, voltar para casa.
O retorno para a América
Simón
tem 52 anos quando desembarca em Cartagena em 1823, disposto a dar todo
o seu conhecimento para construir a Pátria Grande, liberta do jugo
espanhol. Vinha honrar o juramento que fizera com Bolívar há quase 20
anos. As guerras de independência já estavam quase consolidadas.
Bolívar era o grande libertador e comandava os destinos de toda a Gran
Colômbia. Simón então viaja até Bogotá onde começa a pôr em prática a
sua proposta pedagógica, amadurecida por longos anos de estudo e
prática. Todos ali já sabem que ele é o grande mestre de Bolívar e
todos os recursos são colocados à sua disposição para a criação da Casa
de Indústria Pública, o que vem a ser o inovador método educativo de
Simón. Nessa casa as crianças teriam ensino por tempo integral e além
de estudarem as matérias clássicas aprenderiam também um ofício,
aprendendo artes mecânicas. Seu foco eram as crianças mais pobres, que
precisariam enfrentar o mundo que nascia com uma formação adequada. O
educador entendia que o que estava nascendo era uma forma nova de ser
nação e por conta disso era necessária também uma nova educação.
“Formar o povo deve ser a única ocupação dos que se ligam a uma causa
social”, dizia e, para ele, as novas repúblicas eram essa causa social.
Toda
a sua linha de agir pedagógico já tinha sido eternizada num escrito
chamado: “Sociedades Americanas”, que ele só conseguirá editar em 1828.
Nele, Simón defendia que o aluno dessa nova forma de ser nação tinha de
ser um sujeito pensante. “O que pensa, procede segundo sua consciência.
O que não pensa, só imita”. Sua preocupação não era formar letrados e
sim cidadãos, pessoas capazes de compreenderem seu espaço geográfico e
político. Por isso insistia que em vez de papagaiar sobre os persas e
os egípcios era necessário entender os índios. Simón queria tomar para
si a tarefa de educar os jovens pobres que estavam pelas ruas, os
abandonados, os ilegítimos, fazendo com eles se tornassem homens
cientes de seus direitos na nova sociedade. “Deixemos a França e
vejamos a América”, bradava. Sua proposta era de educação popular para
que todos pudessem viver sem amos. “Na educação popular o filho do
sapateiro se educa como o filho de um negociante. Ambos aprendem a
faculdade do pensar. A instrução é para o espírito assim como o pão é
para o corpo”. Simón tinha plena certeza de que se todos fossem
instruídos, os ignorantes de então poderiam vira a ser conselheiros e
os ladrões, companheiros de viagem. Certo de que a ignorância era a
causa de todos os males, seu remédio era a educação. “A América é
original, original hão de ser suas instituições e seus governos, e
originais os meios de fundar um e outro. Ou inventamos ou erramos”.
Simón
Rodriguez não podia conceber que a nova nação se erguesse sob bases
antigas, sob imitações da Europa. Queria saídas originais e sabia que
isso era possível. Queria homens e mulheres capazes de gerir sua
própria história sem precisar de heróis ou mitos. Um homem que pensa é
um homem livre, afirmava. E, para isso, era preciso investir tudo na
formação de professores. Depois, com eles, criar as condições para que
o ensino fosse um fazer-se compreender e não o velho estilo de
trabalhar a memória. A proposta era formar homens úteis à República.
Também insistia que era necessário educar e ensinar as mulheres “para
que elas não se prostituíssem por necessidade, nem buscassem o
casamento para garantir sobrevivência”. Toda a base de sua pedagogia
era mesclar o ensino social, corporal e científico. “O fundamento do
sistema republicano está na opinião do povo. Ninguém faz bem o que não
sabe, então não se pode fazer uma república com gente ignorante”.
Seu
conceito original de escola, a escola social, é o que ele tenta pôr em
prática na Colômbia, mas não encontra eco. Ele queria formar pessoas
que atendessem a uma autoridade social e não pessoal. Foi o precursor
da Escola de Artes e Ofícios, da Universidade Popular. Na época,
comandava a Colômbia aquele que viria a trair toda a proposta de
Bolívar: Santander. E obviamente esse tipo de ensino não lhe era
favorável.
De novo com Bolívar
Quando
Simón finalmente encontra Bolívar, depois de mais de ano de sua
chegada, decide que não é mais possível ficar na Colômbia e segue com
seu antigo aluno rumo ao Peru. Bolívar quer que o velho mestre se
incorpore ao esforço de construir a grande pátria americana e não mede
esforços nem recursos para que ele consiga colocar em prática suas
ideias educativas. Simón segue então para a cidade de Cuzco onde cria
um colégio já dentro do seu padrão: para crianças pobres, com ensino de
ciências, arte e trabalho. Para isso usa os espaços e o dinheiro das
congregações religiosas, o que também já coloca uma boa parte do clero
contra ele. Mas, como está com Bolíviar, tudo vai se fazendo conforme
as regras ditadas por Simón. Em várias cidades peruanas surgem colégios
desse tipo. Logo em seguida eles partem para a Bolívia aonde vão se
encontrar com Sucre. Na cidade de La Paz Simón estrutura uma biblioteca
e Bolívar decide nomear o professor para comandar todo o processo de
Educação no nascente país. Assim, no ano de 1825, Simón é nomeado
Diretor de Ensino e prepara um Plano Educativo para o governo de Sucre.
Entendia ele que o primeiro dever de um governo é dar educação ao povo
e, assim, monta uma proposta semelhante a que tinha tentado trabalhar
na Colômbia: uma escola social. Para isso buscou recolher todos os
órfãos que andavam vagando pelas ruas e os colocou em ambiente adequado
para o ensino das artes, da ciência e do ofício. Também procurou
acolher as meninas, as quais acreditava mereceriam também receber
educação. Da mesma forma que no Peru, também usou propriedades da
igreja.
Bolívar segue seu caminho e deixa Simón
na Bolívia. Sem a proteção do libertador, Simón vai perdendo apoio no
seu projeto. As autoridades locais, os padres e até mesmo Sucre não
conseguem entender os métodos de caraquenho. É que ele insistia em
proporcionar aos alunos aquilo que havia de melhor. Os melhores móveis,
as melhores máquinas para o trabalho, os melhores professores. Tudo
isso custava dinheiro e, no meio da guerra, os que estavam no comando
acreditavam que havia coisas mais urgentes para investir. Seis meses
depois de estar no cargo de Diretor Geral, ele sai de Chuquisaca e vai
para Cochabamba criar mais uma escola. Aproveitando a ausência, o
prefeito da cidade fecha a sua Escola Modelo que abrigava mais de 200
crianças. “Essa é uma escola para cholas e filhos de putas”, dizia o
prefeito, e pregava a necessidade de ter uma escola apenas para “gente
decente”. Intrigado com os padres que não queriam ver os bens da igreja
sendo dispensados aos garotos pobres e aos índios, Simón vai sendo
derrotado. Até mesmo Sucre o repreende pelo alto valor dos gastos e
Simón se sente insultado. Então, renuncia ao cargo e sai da Bolívia.
“Por querer ensinar mais do que todos sabem, não me entenderam, muitos
me depreciaram, e alguns me ofenderam. Entretanto, para fazer
republicanos é preciso gente nova”.
Derrotado na
Bolívia ele volta ao Peru, vai para a cidade de Arequipa onde escreve
seu livro “Sobre o Projeto Popular” que é a sistematização das
experiências que ele havia dado início na Colômbia e na Bolívia. Ali
orienta, mais uma vez, o ensino da ciência, das letras e de ofício,
defende a educação das meninas, dos índios e dos pobres. “Todos devem
ser bem alojados, bem vestidos e alimentados”. Sua proposta era de
educação integral. Além disso, preocupava-se com a situação dos pais
das crianças. Acreditava que era preciso garantir trabalho a eles, e
socorro se fossem inválidos. “Há que formar homens úteis, dar-lhes
terras e auxiliar nos seus negócios”. Não é sem razão que o método de
Simón é visto como assustador pelos novos dirigentes criollos. Sua
proposta educativa era também uma revolução social e econômica.
Educação colonizada
Naqueles
dias em que a independência se consolidava não eram poucos os
educadores europeus que vinham oferecer seus serviços a Bolívar e aos
outros dirigentes das repúblicas. Um deles foi Lancaster. Seu método
aparecia como muito mais interessante para os novos governadores porque
era bem mais barato do que o de Simón. Lancaster propunha que os alunos
mais adiantados fossem os professores dos menores, o que para Simón era
uma vilania. Afinal, o pilar de sustentação do seu método era
justamente a formação dos professores, a qualificação dos mesmos.
“Instruir não é educar, nem instrução pode ser equivalente à educação,
ainda que instruindo se eduque”, dizia, mostrando que aluno não podia
educar aluno. Acreditava que na primeira escola as crianças, mais do
que aprender a pintar as palavras, precisavam aprender a pensar e a
raciocinar. E isso era tarefa para gente capacitada a educar. Simón
trabalha com uma pedagogia prática: expõe como ensinar lógica, o
idioma, o cálculo, a história, sempre por princípios e “como os
princípios estão nas coisas, se ensinará a pensar”. Esse era seu
mantra. “Ler não será estropear palavras para ganhar tempo, mas sim dar
sentido aos conceitos. Assim, quem não entende o que está lendo, não
deve ler”. E assim esgrimia sua crítica ao método lancasteriano. “O que
pode ler aquele que não tem ideias?” Simón acreditava que ensinar mal
era um crime que se cometia contra aqueles que deveriam ser os novos
dirigentes na nova América.
Morre Bolívar
O
ano de 1830 é particularmente triste para todo o continente
sul-americano. A proposta de Bolívar de criar uma grande pátria,
compostas por províncias interdependentes, fracassa. Traído pelos
velhos companheiros, doente, Bolívar vê seu sonho desmoronar como um
castelo de cartas. Certos de que a enfermidade vencerá o libertador, os
novos dirigentes vão dando fim a qualquer rastro da Pátria Grande
idealizada por ele. Sucre, que seria o braço direito do libertador e
seu natural sucessor, é assassinado em uma emboscada. Pouco depois,
Bolívar morre, abandonado e degredado. Para Simón, tudo aquilo também
significaria a derrota de seu projeto de educação. Sem seu velho amigo
e marcado como um dos homens de Bolívar, Simón terá seu caminho
sistematicamente travado a partir daí.
Abandona
Arequipa e segue para Lima, onde recomeça a dar aulas. Mas, não
consegue avançar no seu método. As famílias “de bem” o chamam de louco
e imoral, porque ele insiste em educar as meninas e os índios. Ainda
assim, insiste na crítica à educação da época, escrevendo num jornal
local: “Para ser uma república há que se investir em educação popular.
Com homens já formados só se pode fazer o que se faz hoje: desacreditar
a causa social”.
Simón permanece em Lima até o
ano de 1834, quando completa 60 anos. Recebe o convite de um amigo para
ir ao Chile ser reitor de um Colégio Provincial. Apesar de todos os
ataques que sofre, ainda restam muitos seguidores de Bolívar, muitos
homens dispostos a dar outra cara para as repúblicas nascentes e é aí
que ele se ampara. Che ao Chile e prefere dirigir uma pequena escola,
onde seu método pode vingar. Lá, ele ensina a partir de quatro quadros,
que desenha na lousa. O primeiro era o fisionômico, no qual repassava
as noções acerca das matérias e dos ofícios. O segundo era o
fisiográfico, no qual repassava o conhecimento mais aprofundado sobre
os temas. O terceiro era o fisiológico, no qual ensinava as ciências e
o quarto era o econômico, no qual ensinava filosofia. Sua maneira de
ensinar era expositiva. Não usava textos, apenas os quadros sinópticos,
sempre apontando explicações que estivessem ao alcance dos alunos.
“Encontrem vocês as suas ideias, para fixa-las e retê-las na memória.
Procurem armazenar as ideias e se perguntem sobre o que fazer”.
Um homem sem raiz
Quando
tudo parecia caminhar bem, alguma coisa acontecia e obrigava o velho
educador a se mover. Era como se ele fosse predestinado a não encontrar
guarida. Um ano depois de estar no Chile, um grande terremoto destrói a
escola e faz com que Simón mude-se outra vez. Segue agora para Santiago
onde abre uma escola e uma fábrica de velas, para dar aos alunos a
possibilidade de aprender um ofício. Continua tentando imprimir uma
educação transformadora, ainda acredita na possibilidade de um mundo
novo. “A educação pública no século XIX pede muita filosofia. O
interesse geral está chamando por uma reforma e a América está chamada
pelas circunstâncias para empreendê-la. A América não deve imitar
servilmente e sim ser original. Ideia, ideias, primeiro que letras”.
Naqueles
dias, apesar de todos os infortúnios, Simón era muito procurado por
educadores de todo o mundo. Vinha gente da Europa para conhecê-lo e
aprender seu método. Mas, na América mesmo, sua voz era como pérolas
aos porcos. Tanto que as escolas que criava acabam se fechando por
falta de recursos. Não havia quem bancasse. E os que bancavam exigiam
mudanças, queriam baixar os custos. Simón não aceitava. Foi o que se
passou em Valparaíso, onde foi também obrigado a desistir da escola,
embora seguisse com a fábrica de velas. Com sua fina ironia, dizia: “A
liberdade me é mais querida que o bem estar. Vou continuar iluminando a
América, sigo fazendo velas”.
A experiência
chilena logo se desfaz e Simón volta para Lima onde permanece até o ano
de 1843. Lá, aproveita o tempo para escrever seus livros. Tem 72 anos
quando desde o Equador, um velho amigo o chama para ensinar na cidade
de Latagunga. Atravessa os Andes no lombo de uma mula, mas não fica por
lá muito tempo, em função da instabilidade política. O chamam da
Venezuela, mas ele se nega a voltar. Segue então para a Colômbia outra
vez. Apesar da idade, está forte e continua abrindo escolas por onde
passa. Quando completa 80 anos de vida retorna para o Equador onde
permanece por três anos ainda ensinando no Colégio São Vicente.
No
final do ano de 1853 decide voltar para o Peru com o filho José e um
amigo. Leva com ele tudo o que tem. Uma muda de roupa e duas caixas de
livros. Sem recursos, eles decidem ir por mar, numa balsa. O mar
encapelado, tempestades e eles se perdem. Quase naufragam. Acabam
batendo numa pequena comunidade de pescadores. Simón está muito fraco e
tem problemas de intestino. Os pescadores temem que seja doença
contagiosa e expulsam os viajantes. O amigo vai até a aldeia, buscar
ajuda junto ao padre. Explica quem é Simón, sua situação e o padre
decide ajudar. Mas, depois, informado de quem era Simón, chamado de
louco e imoral, não deixa que o velho venha para a aldeia. O confina
numa propriedade fora do povoado. Simón vai definhando. Apenas uma
caridosa mulher leva comida, apesar de ter sido proibida. Dois dias
antes de morrer, manda chamar o padre. Ele vai, achando que o velho vai
se confessar. Não o faz. Segundo o amigo, Camilo Gomez, ele apenas
disserta uma arenga materialista e diz que a única religião que teve na
vida foi o juramento que fez, junto com Bolívar, no Monte Sacro, de
libertar a América. No dia seguinte, morreu. Foram 83 anos de caminhada
pelo mundo, incompreendido, amaldiçoado. Mas nunca traiu seus
princípios.
O legado
Simón
foi, em tudo, um homem original. Casou-se cedo, teve um filho, mas não
viveu para ser um pai de família tradicional. Seu destino era o de ser
um plantador de escolas por todo o lugar onde passou. E não foram
poucos. Saiu da Venezuela, por conspirador, e nunca mais voltou. Mas
nunca deixou de mandar dinheiro para a esposa, apesar de nunca mais
vê-la. Forjou seu pensamento acerca de educação na crítica sistemática
e seu maior legado foi ter pensado a América desde a América. Não foi
capaz de se oportunizar das novas possibilidades do mundo novo que se
abria. Insistiu no seu método de ensinar a pensar os meninos, as
meninas, os negros e os índios, a quem chamada de “os donos do país”.
Queria formar gente capaz de ser sujeito de sua própria vida. “Dos
brancos não espere nada. Mais vale entender os índios que a Ovídio”.
Acreditava que a escola devia ser um lugar de acolhimento, com espaço
para a educação e a brincadeira, tirando as crianças da rua. Queria
seres pensantes: “Que aprendam as crianças a serem perguntadoras, para
que pedindo o porquê se acostumem a obedecer a razão, não à autoridade
como os limitados, nem aos costumes como os estúpidos”.
Simón
também ensinava a partir da realidade local, da observação da realidade
da criança. “Se ensinamos ciências exatas e de observação, os jovens
aprenderão a apreciar o que pisam”. Ministrava uma educação social, não
individual. Propunha-se a tirar o pobre da ignorância. “O homem não é
ignorante porque é pobre, senão o contrário. Ensinem e terão quem
saiba, eduquem, e terão quem faça. A América não deve imitar
servilmente, deve ser original”.
Aquele que
forjou Bolívar par a libertação tinha tanto amor pela educação que,
apesar de toda a sisudez, foi capaz de produzir poesia. “Ler é
ressuscitar ideias sepultadas no papel. Cada palavra é um epitáfio.
Chamá-las à vida é uma espécie de milagre e, para fazê-lo, é necessário
conhecer o espírito das palavras”. Tratado como louco ele ficou
esquecido por longo tempo. Agora, tal qual as palavras que amava, ele
também ressuscita, para assumir seu lugar no panteão dos grandes sábios
dessa Abya Yala.
Simón Rodriguez, Samuel Robinson, presente!
Referências
Obras completas de Simón Rodríguez – Tomos I e II. Presidencia de la República. Venezuela, 1999
Elaine Tavares é jornalista.
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