sábado, 3 de maio de 2014

Noam Chomsky: o pânico dos EUA sobre a Crimeia se dá pelo medo de perder a dominação global | Portal Fórum

A linha vermelha dos EUA está firmemente localizada nas fronteiras russas… E a anexação da Crimeia a violou



Por Noam Chomsky, em Alternet | Tradução: Vinicius Gomes




A atual crise na Ucrânia é séria e perigosa, tanto, que até alguns
comentaristas chegam a compará-la com a Crise dos Mísseis Cubanos de
1962.
A colunista Thanassis Cambanis resume
o problema central da questão sucintamente no Boston Globe: “A anexação
da Crimeia por Putin é uma quebra na ordem a qual os EUA e seus aliados
vieram a depender desde o fim da Guerra Fria – notoriamente, uma na
qual as maiores potências apenas interveem militarmente quando eles
contam que o consenso internacional esteja do lado deles; se isso não
acontecer, que ao menos eles não atravessem a “’linha vermelha” de uma
potência rival.
Assim sendo, o maior crime internacional de nossa era: a invasão do
Iraque por parte dos EUA e Reino Unido, não foi uma quebra nessa ordem
mundial, pois quando falharam em contar com o apoio internacional, os
agressores não atravessaram as linhas vermelhas da Rússia ou da China.
Em contraste, a tomada da Crimeia por Putin e suas ambições na Ucrânia, atravessaram as do norte-americanos.
Consequentemente, “Obama está focado em isolar a Rússia de Putin ao
cortar os laços econômicos e políticos com o resto do mundo; limitando
suas ambições expansionistas em sua própria vizinhança e, tornando-a
efetivamente, em um Estado pária”, escreveu Peter Baker no New York
Times.
As linhas vermelhas dos EUA, em resumo, estão localizadas nas
fronteiras russas, o que faz com que as ambições russas “em sua própria
vizinhança” violem a ordem mundial e criem uma crise.
Esse argumento é generalizador. Outros países também possuem suas
linhas vermelhas, que são suas fronteiras. Mas isso não aplicado ao
Iraque, por exemplo, ou até mesmo o Irã – onde os EUA continuam a
ameaçar com um ataque (“nenhuma opção está descartada).
Tais ameaças violam não apenas a Carta das Nações Unidas, mas também a
resolução da Assembleia Geral condenando a Rússia, a qual os EUA
acabaram de assinar. A resolução começa dizendo que a Carta da ONU bane a
“ameaça ou o uso da força” em assuntos internacionais.
A crise dos mísseis em Cuba também revelou as linhas vermelhas das
grandes potências. O mundo chegou perigosamente próximo a uma guerra
nuclear quando o presidente Kennedy rejeitou a oferta do premiê Kruschev
em acabar a crise ao simultaneamente retirarem seus mísseis de Cuba
junto com os dos EUA instalados na Turquia. (Os mísseis norte-americanos
já estavam agendados para serem substituídos pelos muito mais letais
submarinos Polaris, sendo parte de um maciço sistema ameaçando a Rússia
com destruição).
Nesse caso também, as linhas vermelhas dos EUA estavam nas fronteiras russas e isso era aceito amplamente.
A invasão dos EUA na Indochina, assim como a invasão do Iraque, não
cruzou linha vermelha alguma; assim como muitas ações predadoras dos EUA
ao redor do mundo.
Sobre a atual situação, o professor de Oxford, Yuen Foong Khong
explica que existe uma “longa tradição no pensamento estratégico dos
norte-americanos: sucessivas administrações têm enfatizado que o
interesse vital dos EUA é evitar a existência de uma hegemonia hostil –
no caso, a Rússia – de dominar qualquer outra região importante do
mundo.
Além disso, é normalmente aceito que os EUA devem “manter sua
predominância”, pois “foi a hegemonia dos EUA que manteve a paz e a
estabilidade ao redor do muno” – sendo que a última parte pode ser
traduzida como: subordinação às exigências norte-americanas.
Como era de se esperar, o mundo pensa de maneira diferente, e considera que os EUA que são um “Estado pária” e a “maior ameaça à paz no mundo”, com nenhum outro competidor chegando perto nas pesquisas. Mas afinal, o que o mundo sabe?
O artigo de Khong também fala sobre a crise na Ásia, causada pelo
crescimento da China, que cada vez mais se aproxima de se tornar a
“maior economia da Ásia”, e assim como a Rússia, tem “ambições
expansionistas em sua própria vizinhança”, cruzando também as linhas
vermelhas dos EUA.
A recente viagem do presidente Obama à Ásia foi para afirmar a “longa tradição” dos EUA, mas em um linguajar diplomático.
A condenação quase universal de Putin para com o Ocidente inclui seu
discurso emocionado no qual ele reclamou amargamente que os EUA e seus
aliados “os enganou várias vezes, tomaram decisões por suas costas, e
apresentaram fatos completamente mentirosos sobre a expansão da OTAN em
direção ao leste, com instalações e infraestruturas militares nas
fronteiras russas”. E sempre a mesma conversa era: “Bem, isso não
envolve vocês”.
As queixas de Putin são de fato precisas. Quando o presidente
Gorbachev aceitou a unificação da Alemanha como parte da OTAN – uma
surpreendente concessão histórica – foi acordado com Washington que a
OTAN não se moveria um centímetro para o leste, se referindo à Alemanha
Oriental.
A promessa foi imediatamente quebrada e quando Gorbachev reclamou,
ele foi instruído apenas à fazer isso verbalmente, sem o uso da força.
O presidente Clinton continuou com a expansão da OTAN para muito mais
ao leste, até às fronteiras russas. Hoje, existem pedidos para que a
OTAN se estenda até à Ucrânia, indo à fundo na “vizinhança” histórica da
Rússia. Mas isso não “envolver os russos”, pois a responsabilidade de
“manter a paz e segurança” exige que as linhas vermelhas dos EUA estejam
nas fronteiras russas.
A anexação russa da Ucrânia foi uma ação ilegal, que violou a lei
internacional e tratados específicos. Mas não é fácil encontrar nada
comparável nos últimos anos com um crime ainda maior como foi a invasão
do Iraque.
Mas um exemplo próximo seria o controle norte-americano da Baía de
Guantánamo, no sudeste de Cuba; Guantanamo foi tirada de Cuba à força e
não foi devolvida desde então, apesar das frequentes exigências dos
cubanos desde que obtiveram sua independência em 1959.
Mesmo assim, a Rússia tem um ponto muito mais forte. Mesmo se
desconsiderar um forte apoio interno pela anexação, a Crimeia é
historicamente russa: ela tem o único porto em águas quentes, é o lar da
frota russa e possui enorme significância estratégica. Os EUA não
possui qualquer argumento por Guantanamo exceto seu monopólio de força.
Uma razão de os EUA se recusarem a devolve-la à Cuba é,
presumivelmente, ser uma grande maneira dos norte-americanos controlarem
a região – prejudicando severamente o desenvolvimento cubano. Essa é
uma das principais políticas dos EUA e um de seus grandes objetivos há
50 anos, incluindo uma guerra econômica e de terror, em larga escala.
Os EUA alegam que ficam chocados com as violações dos direitos
humanos em Cuba, esquecendo-se de suas próprias violações em Guantánamo –
fazendo com que as válidas acusações contra Cuba não possam ser
comparadas com as práticas regulares dos aliados norte-americanos na
América Latina; e que Cuba tem estado sobre ataque severo dos EUA desde
sua independência.
Mas nenhuma dessas violações cruzam linha vermelha alguma ou causa
alguma crise. Elas caem na categoria de invasões norte-americanas na
Indochina e Iraque; a derrubada constante de regimes parlamentares e a
instalação de ditaduras criminosas e nosso hediondo histórico de outros
atos para “garantir a paz e a estabilidade”.

Nenhum comentário: