sábado, 8 de junho de 2013

As prostitutas na história – de Deusas a Escória da Humanidade


POR PATRÍCIA PEREIRA em UOL-Leituras da História
Que a prostituição é popularmente conhecida como a profissão “mais antiga do mundo”, todos sabem. E, desde que o mundo é dito civilizado, sempre houve prostitutas pobres e prostitutas de elite. O lado desconhecido dessa história é que a imagem a respeito delas nem sempre foi a que temos atualmente. As meretrizes já foram admiradas pela inteligência e cultura, e também já foram associadas a deusas – manter relações sexuais com elas era necessário para conseguir poder e respeito. As “mulheres da vida” sempre tiveram um lugar na História, mas, ao longo dos anos, seu status passou de respeitável à condenável.
Maria Regina Cândido, professora de graduação e de pós-graduação em História, e coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a conotação de ser ou não bem-vista pela sociedade é um olhar de nosso tempo sobre as prostitutas. “Na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função”, diz Maria Regina.
Lá atrás, no período da pré-história, a mulher era associada à Grande Deusa, criadora da força da vida, e estava no centro das atividades sociais, explica Nickie Roberts, no livro As Prostitutas na História. Com tal poder, ela controlava sua sexualidade. Nessas sociedades pré-históricas, cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, tendo como fonte a Grande Deusa, conhecida inicialmente como Inanna e mais tarde como Ishtar. Os homens, ignorantes de seu papel na procriação, não eram obsessivos pela paternidade. Foi essa preocupação com a prole que, mais tarde, levou ao surgimento das sociedades patriarcais, com a submissão da mulher.

Por volta de 3.000 a.C., tribos nômades passaram a criar gado e tornaram-se conscientes do papel masculino na reprodução. As sociedades matriarcais da deusa começaram a ser subjugadas. As primeiras civilizações da era histórica desenvolveram-se na Mesopotâmia e no Egito, e nasceram desse levante. Novas formas de casamento foram introduzidas, especificamente destinadas a controlar a sexualidade das mulheres, afirma a escritora. “Foi nesse momento da história humana, em torno do segundo milênio a.C.,
que a instituição da prostituição sagrada tornou-se visível e foi registrada pela primeira vez na escrita”, explica Nickie.

AS PRIMEIRAS PROSTITUTAS DA HISTÓRIA
As grandes cidades da Mesopotâmia e do Egito continuaram centralizadas nos templos da Grande Deusa. As sacerdotisas dos templos, que participavam de rituais sexuais religiosos, ao mesmo tempo mulheres sagradas e meretrizes, foram as primeiras prostitutas da História, conta Nickie Roberts. O status dessas mulheres era elevado. Os reis precisavam buscar a benção da deusa, por meio do sexo ritual com as sacerdotisas, para legitimar seu poder. “Nessa época, as prostitutas do mais alto escalão do templo eram, por direito nato, agentes poderosas e prestigiadas; não eram as meras vítimas oprimidas dos homens, tão protegidas pelas feministas modernas”, escreve Nickie Roberts.

A Suméria criou a segregação feminina ao colocar em lados opostos a esposa obediente e a prostituta má.
Julio Gralha, professor do NEA/UERJ, lembra que a visão sobre as prostitutas da época é pouco documentada de forma escrita, mas pode ser inferida pelas imagens das iconografias. “Pela análise da iconografia, a prostituta existia no Egito e atuava de forma remunerada.
Há contos iconográficos, cômicos, em que a prostituta é vista como poderosa, o homem não agüenta. Como aparecem o colar e outros símbolos ligados à deusa, elas são vistas como protegidas. A prostituição não era algo repulsivo ou condenado pela religião”, diz Gralha.

UM NEGÓCIO ORGANIZADO NA GRÉCIA
Com o passar do tempo, a independência sexual e econômica da prostituta tornou-se uma ameaça à autoridade patriarcal. Por isso, a religião da deusa foi combatida pelos sacerdotes hebreus e, aos poucos, suprimida. Os rituais sexuais viraram pecados graves e as sacerdotisas, pecadoras.

“As principais religiões patriarcais que se seguiram – o cristianismo e o islamismo – reconheceram o impacto devastador do estigma da prostituta na divisão e regulamentação das mulheres”, explica Nickie Roberts.
A Grécia antiga foi uma típica sociedade patriarcal. As mulheres não podiam participar da vida política e social. No entanto, como aconteceu a todas as sociedades antigas, os primeiros habitantes da Grécia foram povos adoradores da deusa, afirma Nickie. Os deuses masculinos só vieram mais tarde, por volta de 2.000 a.C., com os invasores indo-europeus. As duas culturas fundiram-se e produziram o híbrido que chegou até nós. Basta lembrar que Zeus, divindade suprema indo-européia, casou-se com Hera, poderosa deusa sobrevivente do culto anterior.

A negação total do poder da mulher na sociedade grega é decorrente do governo de uma série de ditadores homens. Sólon, que governou Atenas na virada do século VI a. C., foi o principal deles, tendo institucionalizado os papéis das mulheres na sociedade grega. Passaram a existir as “boas mulheres”, submissas – e as outras. Foi também Sólon quem, percebendo os lucros obtidos pelas prostitutas – tanto as comerciais quanto as sagradas -, organizou o negócio, criando bordéis oficiais, administrados pelo Estado. Neles, havia grande exploração das mulheres, que eram praticamente escravas. Junto com os bordéis oficiais, muitas meretrizes independentes exerciam o seu comércio, apesar da legislação de Sólon. “Pela primeira vez na História, as mulheres estavam sendo cafetinadas – oficialmente. (…) Assim, de mãos dadas, nasceram a cafetinagem estatal e privada”, afirma Nickie.
Maria Regina Cândido, historiadora da UERJ, lembra que foi a pressão sobre a terra, com o grande aumento da população grega, que levou Sólon a criar os primeiros bordéis. Isso porque ele trouxe para a região estrangeiros ceramistas, com o intuito de ensinar à população excedente uma nova atividade, já que a agricultura não absorvia mais a todos.
“Para que os estrangeiros não molestassem as esposas e filhas de cidadãos gregos, ele criou um espaço de prostituição oficial na periferia da cidade, os bordéis”, explica a coordenadora do NEA.


Segundo Maria Regina, as prostitutas ficavam em frente ao cemitério, na região do cerâmico, onde estavam instaladas as oficinas dos ceramistas, e também na região do Porto do Pireu, onde eram chamadas de pornes, daí vem a palavra pornografia.

As prostitutas dos bordéis eram estrangeiras, trazidas para a Grécia exclusivamente para cumprir esse papel. Mas muitas mulheres gregas, depois de casamentos desfeitos por suspeita de traição ou outros desvios de comportamento, não viam outro caminho a não ser prostituir-se. Essas, estigmatizadas, juntavam-se às estrangeiras nos bordéis oficiais.
SÍMBOLO ÀS AVESSAS
Maria Madalena, famosa prostituta arrependida da Galiléia, representa que, para ser salva, a mulher precisa abandonar a profissão. Conhecida como a ex-prostituta da Galiléia, Maria Madalena foi uma das mais fiéis seguidoras de Jesus Cristo. De acordo com a Bíblia, ela estava presente em sua crucificação e em seu funeral. Foi ela quem encontrou vazio o túmulo de Jesus, ouviu de um anjo que ele havia ressuscitado e foi dar a notícia aos apóstolos.
Prostituta com papel de destaque na história de Cristo – foi, inclusive, canonizada pela igreja católica -, Maria Madalena poderia ter se tornado um símbolo na luta pela aceitação da atividade. Mas o que ocorreu foi o contrário: como personificou o estereótipo de “prostituta arrependida”, acabou por disseminar uma imagem negativa sobre a prostituição, ao reforçar a idéia de que é preciso abandonar a atividade para redimir-se dos pecados e ser perdoada por Deus.

Durante a Idade Média, as prostitutas atuantes eram excomungadas da igreja católica. Mas as que se arrependiam eram perdoadas e aceitas pela sociedade. Houve até um movimento de conversão, em que a igreja estimulou fiéis a “recuperar” prostitutas e casar-se com elas. Também surgiram comunidades monásticas de ex-prostitutas convertidas, que receberam o nome de “Lares de Madalena”. Elas proliferaram pela Europa, tendo sido financiadas, em sua maioria, pelo clero. Além de Maria Madalena, a igreja enalteceu diversas outras prostitutas que salvaram suas almas pelo arrependimento, como Santa Pelágia, Santa Maria Egipcíaca, Santa Afra e outras.
O curioso é que nenhuma passagem na Bíblia afirma que Maria Madalena foi prostituta. Os textos sagrados a mencionam como pecadora, de quem Jesus expulsou sete demônios, mas não especificam qual seria seu passado. Provavelmente, o que a levou a ser vista como prostituta foi a identificação com um relato de Lucas (7:36-50) sobre uma pecadora anônima, descrita de forma a sugerir ser uma prostituta, que em certa passagem unge os pés de Cristo. O relato de Lucas, a respeito de tal mulher arrependida, antecede a citação nominal de Maria Madalena. No Ocidente cristão, a versão de que Maria Madalena seria essa mulher foi a mais difundida. No Oriente, a mulher anônima e Maria Madalena são vistas como pessoas diferentes.
As prostitutas do templo de Afrodite deixaram de ser vistas como sacerdotisas e viraram escravas. Muitas prostitutas eram cultas e instruídas, e cumpriam o papel de entreter os líderes daquela sociedade. Cobravam alto preço por sua companhia e podiam ou não ceder aos desejos sexuais do cliente. São as hetairae, amantes e musas dos maiores poetas, artistas e estadistas gregos, explica Maria Regina. “As hetairae conduziam seus negócios abertamente em Atenas, trabalhando independentemente tanto dos bordéis do Estado quanto dos templos”, diz Nickie.
A prostituição sagrada também sobreviveu, embora timidamente, durante o período da Grécia clássica. Havia templos em toda a Grécia, especialmente em Corinto – dedicado à deusa Afrodite. As prostitutas do templo não mais eram vistas como sacerdotisas, eram tecnicamente escravas. Mas, por serem consideradas criadas da deusa, mantinham a aura de sacralidade e eram homenageadas pelos clientes. “Demóstenes pagava caro por essas prostitutas. Ele ia de Atenas até Corinto só para ter relações sexuais com elas”, diz
Maria Regina.

LIVRES NO IMPÉRIO ROMANO
Roma foi diferente da Grécia. Até o início da República, a prostituição não era tão disseminada no território romano. “Roma ainda era muito provinciana, fechada”, explica Ronald Wilson Marques Rosa, historiador e pesquisador do NEA/UERJ. A prostituição apenas se difundiu com a expansão militar do império romano e a conquista de escravos.
Antes desta expansão, há indícios de que entre os primeiros romanos, que eram povos agrícolas, existia a antiga religião da deusa, diz Nickie Roberts. Ela também afirma que, em tempos posteriores, a prostituição religiosa estava ligada à adoração da deusa Vênus, que era considerada protetora das prostitutas.

Após a expansão militar e territorial, “os escravos eram os prostitutos, tanto homens quanto mulheres. E não havia estigmatização, não era algo mal-visto. Era normal o uso comercial do escravo para a prostituição. E, muitas vezes, eles usavam esse dinheiro para conseguir a liberdade”, diz Ronald Rosa.
De acordo com Nickie, Roma foi uma sociedade sexualmente muito permissiva. ”Eles escarneciam de qualquer noção de convenção moral ou sexual e desviavam-se de toda norma que houvesse sido inventada até então”, afirma. A grande expansão urbana favoreceu o crescimento da prostituição. A vida era barata, e o sexo, mais barato ainda, diz a autora. Prostituição, adultério e incesto permearam a vida de muitos imperadores romanos. “Falando de modo geral, a prostituição na antiga Roma era uma profissão natural, aceita, sem nenhuma vergonha associada a essas mulheres trabalhadoras”, comenta Nickie.
A vida permissiva levava mulheres a rejeitar o casamento, a ponto de o imperador Augusto estabelecer multas para as moças solteiras da aristocracia em idade casadoira. Muitas se registraram como prostitutas para escapar da obrigação. O sucessor de Augusto, Tibério, proibiu as mulheres da classe dominante de trabalhar como prostitutas.

Diferente da Grécia, os romanos não possuíam e nem operavam bordéis estatais, mas foram os primeiros a criar um sistema de registro estatal das prostitutas de classe baixa. Isso resultou na divisão das prostitutas em duas classes, explica Nickie: as meretrices, registradas, e as prostibulae (fonte da palavra prostituta), não registradas.
A maior parte não se registrava, preferia correr o risco de ser pega pela fiscalização, que era escassa.

CONDENADAS NA IDADE MÉDIA
Com o declínio do Império Romano, começou a Idade Média. Os invasores, guerreiros bárbaros, organizam a vida não mais em grandes cidades e sim em aldeias agrícolas, que não favoreciam a prostituição como a vida urbana. “As artes civilizadas do amor, do prazer e do conhecimento – o erótico e os demais – desapareceram durante a Idade das Trevas. (…) a antiga tradição de uma sensualidade feminina orgulhosa e exaltadora desapareceu para sempre”, afirma Nickie Roberts. A igreja cristã perpetua-se e reprime a sexualidade feminina, ao censurar a prostituição.


Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela igreja, que a considerou “uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus”, explica Nickie. A igreja condenava todo relacionamento sexual, mas aceitava a existência da prostituição como um mal necessário. De acordo com Jacques Rossiaud, autor de A Prostituição na Idade Média, “pode-se afirmar, sem receio de erro, que não existia cidade de certa importância sem bordel”.

Havia bordéis públicos, pequenos bordéis privados e também casas de tolerância - os banhos públicos. Além disso, continuavam a existir as prostitutas que trabalhavam nas ruas. Em tese, o acesso aos prostíbulos públicos era proibido para homens casados e padres, mas eles encontravam meios de burlar a legislação. Rossiaud escreve que as prostitutas não eram marginais na cidade, mas desempenhavam uma função.
Nem eram objeto de repulsão social, podendo, inclusive, ser aceitas na sociedade e casar-se depois que deixassem a vida de prostituta.

A liberdade sexual só era tolerada para os homens. As mulheres casadas e suas filhas, de boa família, deviam temer a desonra. Mas, de acordo com Rossiaud, essa liberdade masculina não sobreviveu à “crise do Renascimento”. Houve uma progressiva rejeição da prostituição, que revelava nas comunidades urbanas a precariedade da condição feminina. “Lentamente, a mulher conquistou uma parte do espaço cívico, adquiriu uma identidade própria, tornou-se menos vulnerável”, explica Rossiaud. E houve uma revalorização do casal.
Prostituição e violência aparecem pela primeira vez associadas, devido a brigas, disputas e assassinatos nos locais públicos. Autoridades municipais, apoiadas pela Igreja, passaram a coibir a prostituição que, a partir de então, “aparecia como um flagelo social gerador de problemas e de punições divinas”, afirma Rossiaud. Um após outro, os bordéis públicos foram desaparecendo. “A prostituição não desapareceu com eles, mas tornou-se mais cara, mais perigosa, urdida de relações vergonhosas”, diz Rossiaud. Para o autor, foi o “duplo espelho deformante do absolutismo monárquico e da Contra-Reforma” que fizeram parecer “decadência escandalosa o que era apenas uma dimensão fundamental da sociedade medieval.”

UMA PATOLOGIA PARA A MODERNIDADE
Na modernidade, segundo Margareth Rago, professora titular do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de “Os Prazeres da Noite”, a prostituição ganhou feições diferenciadas. Isso porque as mulheres conquistam maior visibilidade e atuação na sociedade. Surgiram novas formas de sociabilidade e de relações de gênero, com a criação de fábricas, escolas e locais de lazer e consumo. “Foram outros modos de vida, nos quais a mulher vai ter maior participação”, diz Margareth. Apesar da modernização dos costumes, a sociedade ainda é conservadora em relação às prostitutas.

Nesse contexto, nasceu o feminismo e a mulher reivindicou o direito de trabalhar e de estudar. O discurso sobre a prostituição ficou forte nesse período e virou debate médico e jurista. “Há um uso, não consciente, da prostituição para dizer que mulher direita não fuma, não sai de casa sozinha, não assobia na rua, não goza. O médico vai dizer que a mulher não tem muito prazer sexual, ela tem desejo de ser mãe. Já o homem tem e, por isso, precisa da prostituta” , afirma Margareth. De acordo com Margareth, é nessa época que as prostitutas passam a ser condenadas como anormais, patológicas, sem-vergonhas; uma sub-raça incapaz de cidadania. E a justificativa vai vir de teorias médico-científicas. “O que acontece é que a medicina do século XVIII usa os argumentos misógenos de Santo Agostinho e de São Paulo, e fundamenta cientificamente o preconceito contra a prostituta”, explica Margareth. “Diz que a prostituta é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais curtos. Criam toda uma tipologia” , diz Margareth.
Para a autora de “Os Prazeres da Noite”, podemos diferenciar a imagem que se construiu da prostituta na modernidade para a visão que temos dela hoje em dia: ”Nos últimos 40 anos, mudou muito. O sexo está deixando de ser patológico, de estigmatizar o que pode e o que não pode. Não sei se acontecem mais coisas na cama de casados ou de uma prostituta. ”
“A revolução sexual transformou os costumes. Mas a sociedade ainda é conservadora e há forte preconceito contra essas mulheres”, diz Margareth.

REFERÊNCIAS
ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 224 pág.
RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008. 360 pág.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Revolucionar é preciso: a crise portuguesa (e nós?)


 MARCELO BADARÓ MATTOS   no CORREIO DA CIDADANIA


Entre o Brasil e Portugal há laços históricos e, em muitas de nossas famílias, sanguíneos, que nos fazem ter uma sensação muito própria de proximidade. No entanto, não temos visto muito espaço na imprensa empresarial brasileira para notícias e análises da crise por que passa a sociedade portuguesa no momento atual. Nem mesmo a esquerda brasileira parece muito interessada em prestar atenção ao que acontece daquele lado do Atlântico.

A direita, porém, está sempre atenta ao que lhe parece ameaçador. Faz alguns dias, Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja, publicou em seu blog uma nota sobre um debate ocorrido dias antes na TV portuguesa, tendo por tema “Mudamos de país ou mudamos o país?”, no qual, em determinado momento, uma das entrevistadas se envolveu em uma polêmica com um jovem da platéia*. Na versão de Azevedo, a debatedora é “a Marilena Chauí” de Portugal e o jovem um herói do “empreendedorismo”, que aos 15 anos criou uma marca de roupas e está tendo sucesso em tempos difíceis, demonstrando que a iniciativa individual é a saída para a crise. Como o jovem respondeu à debatedora, que o questionava sobre o valor dos salários dos trabalhadores da indústria têxtil, dizendo que era melhor ganhar o salário mínimo do que ficar no desemprego, sendo aplaudido por parte dos presentes, esse take do programa foi reproduzido pelo colunista, com os comentários de praxe. Exaltou-se a perspicácia do garoto moderno e apontou-se o atraso da pesquisadora acadêmica.

Não perderei tempo analisando Reinaldo Azevedo, a Veja, ou mesmo comentando a tal ideia do tipo é melhor comer só farinha que passar fome, exposta pelo raciocínio do rapaz, ao defender implicitamente o programa de redução salarial em curso em Portugal. Não merecem. Apenas preciso que a “Marilena Chauí” portuguesa é Raquel Varela, historiadora reconhecida internacionalmente por seus estudos sobre a Revolução dos Cravos e sobre os trabalhadores do setor da construção naval e militante política cada vez mais conhecida dos portugueses por suas intervenções em dezenas de debates públicos, em centros sociais, rádios e TVs. Neles tem demonstrado (ancorada em estudos sérios e pormenorizados) as falácias da argumentação dominante sobre os altos custos do Estado Social, empregadas para justificar os cortes em salários, aposentadorias e outros direitos dos trabalhadores. Já o jovem “empreendedor” é Martim Neves, cuja fala, devidamente editada, foi reproduzida imediatamente após o programa em páginas eletrônicas como a do “microcrédito” do banco Millenium BCP e as de editores de grandes jornais diários. Como se apurou pouco depois, o seu “empreendimento” resume-se a estampar a sua logomarca (cujo registro só foi requerido no dia seguinte ao programa) em camisetas e moletons simples. Mas é claro que a propaganda feita durante e após o debate o levou a um novo “patamar de vendas”, conforme se depreende pelos pedidos não atendidos registrados no facebook do “empreendimento”.

O que estava em debate, entretanto, é algo mais importante. Para além do trecho recortado por Azevedo e pela direita portuguesa de forma geral, há uma resposta de Raquel Varela omitida na edição que circula na rede. Nela, a historiadora classifica o salário mínimo português (de 432 euros) como “uma vergonha”, e demonstra como esse valor é insuficiente para sustentar dignamente os trabalhadores e trabalhadoras portugueses, assim como do resto do mundo, e lembra que tanto a redução da massa salarial interna quanto a imigração de portugueses que se quer hoje forçar visam simplesmente instalar uma arena de competitividade por baixos salários na Europa, de forma a ampliar a margem de lucro dos capitalistas que, desde 2008, têm se fartado de demitir, achatar salários e ainda assim serem prodigamente subsidiados pelo Estado. Defendendo a estatização dos bancos, a ruptura com a “troika” (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), o não pagamento da dívida e a ruptura com o euro, além de relembrar o 25 de abril para propor a atualidade da saída revolucionária, Raquel Varela realmente tem incomodado à classe dominante portuguesa.

A referência que faço ao debate na TV e à replicação por aqui da grita da direita portuguesa contra a representante de uma proposta política radicalmente alternativa tem também um outro objetivo: chamar a atenção para o fato de que a sociedade portuguesa vive um momento de crise econômica, social e política. A taxa de desemprego atingiu 17,8% em abril, sendo da ordem de 42,5% o desemprego entre os jovens (segundo os dados da agência europeia Eurostat). Dados locais indicam 1 milhão e 400 mil desempregados em uma população economicamente ativa de 5,4 milhões de pessoas (no total de 10 milhões e meio de portugueses e portuguesas). Ao mesmo tempo, aposentadorias e salários do setor público foram cortados e 80% dos empregados ganham menos de 900 euros por mês. A precarização das relações de trabalho atinge boa parte desses que ainda não vivem o desemprego completo, numa força de trabalho que é relativamente jovem e altamente qualificada. São 1,3 milhão de graduados com nível superior e mais de 30 mil doutores formados pelas Universidades portuguesas.

Momentos como esses abrem espaço para o acirramento dos conflitos sociais e é a isso que estamos assistindo em Portugal. Foram já cinco greves gerais nos últimos cinco anos. A próxima já está convocada para 27 deste mês de junho. Há manifestações todos os dias (não é exagero retórico) nas ruas portuguesas. E são, algumas delas, as maiores manifestações da história do país, como a de 2 de março último, que levou às ruas de dezenas de cidades portuguesas mais de 1 milhão e 500 mil pessoas. A luta, é certo, não é apenas portuguesa. No último dia 1 de junho, um chamado à mobilização continental reuniu manifestantes em centenas de cidades europeias, do sul “periférico” (Portugal, Espanha, Grécia) ao centro financeiro do euro, em Frankfurt.

Mesmo com esse elevado nível de mobilização social, até aqui, o regime tem resistido. Nem mesmo o gabinete ministerial português caiu, apesar de todos os cartões vermelhos que a população acuada pelo desemprego e o avanço da miséria lhes apresenta. Tanto a direita declarada (PSD e CDS) no governo quanto os “socialistas” (PS) compartilham da mesma submissão aos desígnios da troika e o PS não parece querer se arriscar a ganhar eleições para se desgastar fazendo mais do mesmo. Já a oposição parlamentar de esquerda (especialmente o PCP e o Bloco de Esquerda), embora tenha sido progressivamente empurrada pelo povo nas ruas a uma posição de defesa da “demissão” do gabinete, não apresentou até aqui um projeto radicalmente distinto, propondo “renegociações”, políticas compensatórias e medidas “soberanas”, mas temendo sempre o “imponderável” da moratória ou da saída do euro. Nos sindicatos, a grande central – a CGTP –, dirigida principalmente pelos militantes do PCP, tende a limitar as mobilizações ao domínio econômico-corporativo da defesa dos salários e direitos do grupo cada vez mais reduzido de trabalhadores protegidos por contratos estáveis.

O resultado dessa combinação entre mobilizações multitudinárias de descontentamento e ausência de alternativas programáticas das direções mais representativas tem sido, até aqui, a sobrevivência de um regime democrático em que o teatro das eleições referenda governos títeres do poder de fato, emanado dos organismos supranacionais do capital, a ditarem as regras do jogo contra os interesses das maiorias trabalhadoras.

Pode uma situação dessa natureza se sustentar por muito tempo? Não há previsões infalíveis para o desenrolar da história. Podemos assistir na sequência à desmoralização completa das manifestações de massa. Afinal, como sustentar que milhões possam ir às ruas a cada mês, que diversas greves gerais se sucedam em poucos anos e que ainda assim nem um reles ministro caia de sua cadeira? Ou, de outro lado, é possível que se abra um período de inversão da correlação de forças a favor dos “de baixo”?

A segunda hipótese não pode ser dada como certa, mas está no horizonte de possibilidades, especialmente porque falamos de um país que, há quase quarenta anos, viveu a última revolução social do Ocidente. Nele convivem uma geração de portugueses que protagonizou a Revolução dos Cravos e as gerações seguintes, que se beneficiaram das conquistas revolucionárias, mas são agora mais fortemente impactadas pelo retrocesso social pós-2008. Mesmo derrotada a revolução, seu legado de conquistas garantiu um Estado Social (como o chamam por lá), que permitiu aos que foram às ruas em 1974 ver seus filhos e netos completarem os estudos universitários num sistema público de educação, usufruírem de um sistema de saúde pública exemplar, se informarem através de um sistema de rádio e televisão públicos em que as telenovelas importadas do Brasil têm que competir em audiência com programas de debate político, como o citado no início deste texto, entre outras conquistas, sintetizadas pela transferência de renda de cerca de 15% do capital para o trabalho no período de 1974-1975.

Essa geração está hoje, em grande medida, aposentada (reformada, como dizem por lá) e, apesar dos cortes em seus rendimentos, vem equilibrando orçamentos familiares em meio a filhos e netos precarizados e desempregados. A construção de uma unidade nas lutas entre os “reformados”, com o aprendizado organizativo das jornadas de 1974-1975, os precarizados/desempregados – que começam a ir para as ruas na conjuntura atual desprovidos do aparato sindical dos trabalhadores formais – e os setores mais combativos da classe trabalhadora sindicalmente organizada, pode fazer a diferença e significar o ponto de inflexão na correlação de forças. Resta saber se os que propõem tal estratégia conseguirão representatividade em meio às organizações que surgiram do 25 de abril e às novas formas organizativas que emergem das lutas de hoje, e ainda se encontrarão eco social para suas propostas.

De qualquer forma, olhando aqui do Brasil, não consigo deixar de pensar em algumas questões. Sou historiador e estou acostumado a ouvir falar sobre presumidas “heranças” portuguesas na ex-colônia das Américas, como a ideia de um “patrimonialismo ibérico”, uma suposta confusão entre “público” e “privado”, que de fato só existe na cabeça daqueles que se recusam a aceitar o fato de que o Estado (o “público”) existe historicamente para sustentar os interesses – econômicos inclusive – das classes dominantes (o “privado”). Mais recentemente virou moda dizer que fomos aqui uma extensão territorial nos trópicos do “Antigo Regime” português, em chave explicativa que menospreza tanto o caráter escravista da sociedade que se desenvolveu nestas terras quanto o sentido de exploração que motivou a empreitada colonizadora. Queria eu, porém, ouvir falar de outras heranças e homologias entre Brasil e Portugal, num período mais recente. Preferiria, com certeza, ter assistido a algum tipo de influência mais direta da saída revolucionária de um regime ditatorial, como a de 1974 em Portugal, na chamada “transição democrática” brasileira. Assim como espero que o exemplo das mobilizações atuais daquele lado do Atlântico faça algum eco deste lado de cá.

* O programa chama-se “Prós e Contras”, é transmitido pela RTP1 e, embora seja transmitido após as 22h, possui enorme audiência para os padrões portugueses. A edição comentada foi ao ar em 20 de maio último pode ser assistida em http://www.rtp.pt/programa/tv/p29826/e15

Marcelo Badaró Mattos é professor da Universidade Federal Fluminense

terça-feira, 4 de junho de 2013

Avalanche ‘neoconservadora’ une grande mídia e governo


ESCRITO POR VALÉRIA NADER, DA REDAÇÃO  do CORREIO DA CIDADANIA





Medidas governamentais e noticiários dos últimos dias têm deixado de olhos arregalados uma boa porção daqueles que acompanham e creem no ‘neodesenvolvimentismo’ do governo atual, assim como no progressismo da mídia e na sua defesa diuturna da pluralidade e da liberdade de expressão. Neste sentido, dentre tantos acontecimentos e respectivas versões que têm dominado a pauta de governo e imprensa, dois deles podem ser tomados como ilustrativos: o último aumento da taxa de juros pelo Banco Central e mais um assassinato dentre os povos indígenas.

Voltando o olhar primeiramente para o contexto da nossa imprensa – afinal, quase onipresente na contemporaneidade em ditar as regras de corpos e mentes –, tais acontecimentos foram objeto de extensas reportagens pelos maiores veículos de comunicação nos dias que passaram. O tom maior foi de indisfarçado triunfalismo, no que diz respeito à decisão do Banco Central em elevar os juros para combater a inflação, afinal, uma prova de um governo que estaria tomando ‘juízo’. E quanto aos índios, escancarou-se, em linhas e entrelinhas, a visão dos povos originários como bárbaros invasores.

Grande mídia, Folha de S. Paulo e os juros

Entre estes veículos, os enunciados e análises da Folha de S. Paulo podem ser tomados como termômetro das falas e visões da quase maioria dos grandes órgãos de comunicação, para evitar delongas e a fim de não se cometer alguma injustiça. Afinal, ao contrário dessa maioria de veículos, que escancara seu conservadorismo, trata-se a Folha do órgão de mídia que, não raras vezes, se compraz em sua auto-identificação como progressista. Um coro que tem como portavozes, inclusive, colaboradores e colunistas já escalados para, vez ou outra, verbalizar e lembrar aos leitores das ações do diário em prol da democratização da informação.

No que diz respeito à nova taxa de juros, nas suas edições a partir de quarta-feira, 29 de maio, o diário trouxe extensa lista de matérias, editoriais e reportagens. Mesmo para quem já há bom tempo não mais se ilude com o tal ‘progressismo’ da Folha, chega a surpreender o tom monocórdio de tantas reportagens. Um legítimo ‘samba de uma nota só’, verdadeiro tratado em defesa da agenda conservadora, aquela que dita as regras do mercado financeiro, que tem por trás os grandes grupos econômicos, que obviamente lucram com a subida da taxa de juros em função de suas bilionárias aplicações nos títulos da dívida pública.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, economista famoso e colunista do jornal, foi dos únicos estudiosos com espaço profuso a emitir sua opinião. No texto chamado ‘Um dia de cão na economia’, de sexta-feira, 31 de maio, aliviou-se com a ideia de que “um novo Banco Central emergiu das cinzas da instituição que comandou com mão de ferro o sistema de metas de inflação nos oito anos do governo Lula”. E comemorou sem volteios o fato de que “os mercados financeiros vão reagir com força à decisão tomada pelo Copom sobre os juros”. Para Mendonça, a presidente Dilma, quiçá, e finalmente, teria entendido que o aumento de juros é a melhor forma de controlar a inflação e promover o crescimento.

Segundo, ainda, o Editorial de sábado, 1 de junho, ‘Alta de credibilidade’, “a decisão do BC, apesar de amarga, vem em boa hora. Talvez consiga devolver alguma firmeza à gestão da economia, perdida em devaneios intervencionistas”. Pregando ainda uma ‘política fiscal mais responsável’ no lugar da ‘frouxidão orçamentária’, conclui que a nova decisão, à medida que incidir na queda da inflação, deve ajudar a presidente na corrida eleitoral do próximo ano. Ideias reforçadas no Editorial de domingo, 2 de junho, o qual, sob o título ‘Um Plano para Dilma’, faz uma série de sugestões, sempre de cunho liberal e privatizante, para o restante de seu mandato.

Engrossando, finalmente, este coro esteve ninguém menos que o ex-presidente do Banco Central sob Lula, o também colunista da Folha Henrique Meirelles. Citando o polêmico e emblemático caso chinês, Meirelles tem uma pista para a solução dos graves problemas do país: “medidas têm sido tomadas para transferir poder de decisão à iniciativa privada, eliminando controles e burocracia para facilitar o desenvolvimento dos negócios. Se exitosas, transformarão a China em competidor ainda mais forte e inovador, com maior equilíbrio no investimento e no consumo”.

E onde estão as vozes dissonantes de reconhecidos estudiosos, não necessariamente identificados à direita ou à esquerda do espectro político, e que têm visão diametralmente oposta, ou ao menos conflitante, com a ideia convencional de que a subida da taxa de juros é a solução para a inflação que se diz estar a galope no país? Aqueles que, por exemplo, ressaltam a influência da especulação nas bolsas de mercadorias de commodities agrícolas na atual oferta e preços de produtos comercializados internamente? E outros mais que destacam que, mediante a queda das exportações de commodities agrícolas e, por conseguinte, o menor resultado no saldo da balança comercial, o aumento da taxa de juros seria a forma de atrair capitais financeiros e especulativos, com o intuito de fechar o balanço de pagamentos? Provavelmente, estão em algum lugar bem distante da rua Barão de Limeira.

A Folha de S. Paulo e os índios

Não fosse pouco um culto escancarado da ortodoxia por aqueles que se dizem arautos da liberdade de expressão, mais atenção chama ainda um enviesamento jornalístico a cada dia mais próximo do obscurantismo na área de direitos humanos.

Após mais um confronto entre policiais e indígenas, envolvendo índios terenas no Mato Grosso do Sul, outro índio foi morto pela polícia. Na sexta-feira, 31 de maio, a chamada para matéria,‘Índio morre em confronto com a polícia’, é no mínimo muito ambígua, uma vez que pode sugerir uma ação mais deliberada dos indígenas – geralmente armados de arcos, flechas, lanças e facas – em seu confronto com a polícia – munida de armas de fogo de algo calibre. No sábado, 1 de junho, nova chamada induz o leitor a enxergar índios como bárbaros e baderneiros, ao dizer que ‘Índios invadem novamente fazenda em MS’. Afinal, estão entrando, e não invadindo, em áreas que lhes pertencem, de direito ancestral, e que somente não ocupam até hoje em função de uma homologação de terras indígenas que nunca se completa.

E aqui nem é preciso ir tão longe na denúncia da estreiteza de visão, desrespeito e afronta aos direitos dos povos originários, reconhecidos pela Constituição, mas secularmente negados pelos governantes de turno. É um dos próprios colunistas do jornal, daqueles poucos que têm independência opinativa em nossa grande mídia, que denuncia, em sua coluna de domingo, 2 de junho, a desconsideração para com estes povos. “A facilidade com que ainda se massacram os direitos e as vidas dos índios é uma homenagem que o Brasil presta ao seu passado genocida (...) As liminares e outros volteios judiciais que facilitam a usurpação de terras reconhecidamente indígenas, como se dá agora com a área Buriti, em Mato Grosso do Sul, são uma via direta para a miséria e a morte das populações indígenas”, declara Jânio de Freitas.

E o governo, por onde anda?

É de se pensar, nesta altura dos acontecimentos, onde está o governo em meio a tal conjuntura.

O lugar em que se coloca não é nada mais admirável que aquele ocupado pela mídia, pelo menos para quem se propõe a enxergar a realidade menos desavisadamente, ou com possibilidades de despir-se de noções falseadoras.

No que se refere à temática econômica, o governo Dilma e, anteriormente, o próprio governo Lula, tem sido acusado recorrentemente, pela imprensa e analistas conservadores, de intervencionista, dirigista e outros termos correlatos. Isso de forma a associá-lo a um ente distante dos ideais hipoteticamente criativos e libertadores decorrentes de um funcionamento mais livre das forças de mercado.

A ideia do intervencionismo é, por um lado, evitada pelos próprios governistas, de modo a não se indispor com sua base de apoio mais conservadora; mas, por outro lado, acalentada em meio à noção de neodesenvolvimentismo, sob a qual se tenta erigir a imagem de um governo progressista, que tem papel ativo em incluir os pobres ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento. Qual é, portanto, o teor de verdade dessa ideia de intervencionismo do governo Dilma?

Aqui são novamente os fatos que podem sugerir a melhor resposta. É inegável a maior atenção ao social, ainda que em sua maior parte focada em uma vertente assistencialista, assim como algum grau de ‘provocação’ (e não enfrentamento) ao capital financeiro, promovidos pelos presidentes petistas. Estão aí o Bolsa Família, os reajustes do salário mínimo, taxações impostas sobre a entrada do capital externo especulativo, dentre outros, para comprovar. No entanto, também estão presentes, de modo cabal, e desde o mandato lulista, a privatização das infraestruturas econômicas do país – mais sorrateira e disfarçadamente sob Lula e, agora, de forma mais escancarada. Portos, ferrovias, aeroportos, petróleo, energia e também o que restou das telecomunicações estão, a cada dia, mais distantes não somente das mãos do governo, mas também do controle público, em uma nação em que as agências reguladoras são, comprovadamente, bem mais articuladoras dos interesses econômicos do que dos direitos dos cidadãos. Os maiores beneficiários, ao final, e como a história do país tem confirmado, são os grandes grupos econômicos e privados externos, a partir da posição subalterna e associada do Estado nacional e da burguesia interna.

E a lista de submissão aos poderosos lobbies econômicos não para por aí. A desoneração da folha de pagamento de vários setores da economia interna, assim como uma série de medidas que vêm sendo levadas a cabo sob o rolo compressor da bancada ruralista, implicam no baixo grau de independência e autonomia na tomada de decisões internas de política econômica.

O intervencionismo, ou dirigismo, tão aventados por aí, não passam, assim, de mero jogo de palavras. Palavras, no entanto, com forte poder de persuasão sobre um governo que se perde em meio a uma extensa base de apoio e a poderosos lobbies econômicos. A atual subida da taxa de juros é acontecimento bastante sintomático desse quadro, vez que era a própria presidente Dilma que, até pouquíssimo tempo atrás, negava capitular frente às pressões para a sua elevação.

O chamado ‘neodesenvolvimentismo’ pode, portanto, ser tomado como uma ficção. Face a uma conjuntura internacional fortemente financeirizada e oligopolizada, com a crescente independentização do movimento internacional de capitais, resta exígua margem de manobra para a condução autônoma de políticas econômicas internas. Conjuntura que, obviamente, é agudizada pela dependência e subserviência de governos amparados em extensas e heterogêneas alianças políticas, reféns dessas alianças e, portanto, pouco propensos a promoverem confrontos mais pesados.

E resta uma palavra sobre a questão indígena, no caso, o assassinato de mais um índio no Mato Grosso do Sul, acima referido. Aqui, onde está o governo Dilma?

Certamente, este é tema para bem mais do que mil palavras, cabíveis em novo e profundo artigo. No entanto, forçoso é dizer que o atual mandato petista tem se mostrado, no mínimo, bem menos aberto ao diálogo com os movimentos e demandas sociais em geral do que o anterior. E, no caso em questão, são novamente os fatos que podem falar por si mesmos.

Morta a liderança indígena, a primeira providência do Planalto foi a convocação de uma reunião. Os convidados iniciais foram os interlocutores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), ligados ao Ministério da Agricultura, sabidamente influenciado por representantes da bancada ruralista. A Funai, que tem visto seu papel na demarcação de terras indígenas cada vez mais reprimido, não foi convocada.

Em tempo

Talvez fosse interessante ao governo começar a avaliar uma troca de termos para se autodefinir. O neoconsevadorismo há tempos poderia lhe cair melhor que neodesenvolvimentismo.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A questão do Estado, questão central de cada revolução

A questão do Estado, questão central de cada revolução

Álvaro Cunhal

O odiario.info vem, com a publicação deste texto do grande patriota, internacionalista, político comunista, revolucionário e multifacetado intelectual que foi Álvaro Cunhal, associar-se às comemorações do centenário do seu nascimento.
No momento em que amplas massas da juventude portuguesa manifestam nas ruas, nos blogues, nas acções de contestação do governo da burguesia que nos oprime, esclarecer o que é o Estado numa sociedade de classes, como, por que se formou e para que serve, e que a superação da ditadura da burguesia, desta ou de qualquer outra, não se faz no quadro da importante luta dentro das instituições, enfim, divulgar Álvaro Cunhal, o seu pensamento e a política do Partido por ele dirigido é, seguramente, a melhor forma de o recordar.




A 30 quilómetros a noroeste de Leninegrado, Razliv é hoje um lugar histórico. Aí, num sítio ermo, se pode ver a reconstituição da cabana onde Lénine viveu clandestinamente em Agosto de 1917. Aí se pode ver também o cepo de uma árvore que Lénine utilizava como mesa para escrever.
O Verão de 1917 foi um momento de viragem decisiva na revolução russa. Terminara a dualidade de poderes, situação original criada pela revolução, em que, ao lado do governo provisório, governo da burguesia, se formara um outro governo com «uma existência real e incontestável»: os sovietes de deputados operários e soldados (Lénine, «Sobre a dualidade dos poderes», Obras, edição francesa, vol. 24, p. 28) [1]. Os mencheviques e socialistas-revolucionários, impedindo que todo o poder fosse entregue aos sovietes e entrando num «governo de coligação», entregaram de facto todo o poder à burguesia. A contra-revolução passou à ofensiva. Novas tarefas se colocaram ao proletariado e ao seu partido, o Partido Bolchevique. Como escreveu Lénine, se até [4 de] Julho «o desenvolvimento pacífico da revolução russa era ainda possível», a partir de então a questão punha-se em novos termos: «ou a vitória completa da contra-revolução, ou uma nova revolução» (“Resposta», Obras, edição francesa, vol, 25, pp. 231 e 236).
Nas vésperas da «nova revolução», que problema considerava Lénine necessário abordar sem perda de tempo e o levava a escrever febrilmente no cepo de árvore em Razliv? Esse problema era o problema do Estado, e a obra que então Lenine escrevia viria a constituir uma obra fundamental: O Estado e a Revolução.
Já nas Teses de Abril Lénine caracterizara a situação como a transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia, para a segunda etapa, que deveria dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato (Ver Obras, edição francesa, vol. 24, p. 12) [2].
De Abril a Julho de 1917, em numerosos artigos e discursos, Lénine insiste na importância do problema do Estado. É porém em O Estado e a Revolução que não só expõe de uma forma sistematizada a teoria de Marx e a defende dos seus detractores, como a aprofunda e enriquece com a sua investigação teórica criadora assente nas experiências do movimento revolucionário.
Nas vésperas da revolução socialista, a ideia fundamental que Lénine julga necessário demonstrar exaustivamente e defender com paixão é que, conquistando o poder, o proletariado não se pode limitar a tomar conta do aparelho do Estado burguês, mas tem de destruí-lo e substituí­-lo por um novo Estado.

1

A teoria marxista da luta de classes permite explicar a origem e a natureza do Estado e os seus diversos tipos e formas.

Marx descobriu e demonstrou que o Estado é um poder que nasce da sociedade numa fase determinada do seu desenvolvimento, como resultado da divisão da sociedade em classes, como necessidade do recurso à coacção por uma minoria exploradora para manter a exploração da maioria.
O Estado é uma «organização especial do poder», «um poder especial de repressão», «a organização da violência», um aparelho militar e burocrático constituído especialmente pelas forças armadas, pela polícia, pelos tribunais, pelos órgãos legislativos e executivos, pelo funcionalismo.
Aparentemente acima da sociedade e das classes, o Estado é na realidade um instrumento de dominação e opressão de uma classe sobre outras classes.
A correcta compreensão da natureza do Estado é essencial para toda a acção revolucionária do proletariado, particularmente quando se coloca na ordem do dia a tomada do poder.
Marx descobriu que a luta de classes que se trava na sociedade capitalista conduz necessariamente à revolução, à conquista do poder político pelo proletariado, a um novo Estado definido no Manifesto Comunista como o «proletariado organizado como classe dominante» (Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 1, p. 53) [3].
Esta é a conclusão fundamental da teoria marxista da luta de classes. Não podem pretender ser marxistas aqueles que a rejeitam. Falando da sua teoria da luta de classes, Marx lembrava que não lhe cabia a ele o mérito nem de ter descoberto a existência das classes, nem de ter descoberto a luta de classes. «O que fiz de novo (sublinhava) foi demonstrar: 1) Que a existência das classes não está ligada senão a determinadas fases do desenvolvimento histórico da produção; 2) Que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3) Que esta ditadura não constitui ela própria senão a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes» (Carta a Weydemeyer, 5-3-1852, Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 2, p. 452) [4].
O papel do proletariado na revolução socialista decorre das suas próprias características como classe na sociedade capitalista. «De todas as classes que hoje defrontam a burguesia (proclamava o Manifesto Comunista) só proletariado é uma classe realmente revolucionária.» «Os proletários só têm a perder as próprias algemas. Eles têm um mundo a ganhar.” (Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 1, pp. 43 e 65.) [5]
Defendendo e desenvolvendo as ideias de Marx, Lénine insistiu em que só o proletariado, como «única classe revolucionária até ao fim», pode ser «o guia de todas as massas laboriosas e exploradas, que frequentemente a burguesia explora, oprime e esmaga não menos mas mais que aos proletários, e que são incapazes de uma luta independente pela sua libertação». Por isso, o poder da burguesia só pode ser abatido «se o proletariado se transforma em classe dominante capaz de reprimir a resistência inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime económico todas as massas laboriosas e exploradas» («O Estado e a Revolução», Obras, edição francesa, vol. 25, p. 437) [6].
O proletariado «transformado em classe dominante», como escreveu Lénine, o proletariado «organizado como classe dominante», como definiu o Manifesto, é precisamente a ditadura do proletariado, o novo Estado Proletário. «O proletariado (insistia Lénine) tem necessidade do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores, como para dirigir a grande massa da população - os camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários - na edificação da economia socialista» (Ibid.) [7]
Mas como organizar o poder do Estado? A conquista do poder significará a conquista do aparelho do Estado? A esta questão capital, Marx deu uma primeira e clara resposta, que depois Lenine desenvolveu.
Estudando atentamente a experiência revolucionária, Marx sublinhava em 1852 que até então as revoluções políticas não tinham feito mais do que aperfeiçoar a máquina do Estado, pois «os partidos que lutavam uns após outros pelo poder consideravam a conquista deste imenso edifício do Estado como a principal presa do vencedor» («O 18 Brumário», Obras Escolhidas em dois volumes, edição inglesa, vol.1, p. 333) [8]. A experiência da grande revolução proletária do século XIX, a Comuna de Paris de 1871, permitiu a Marx avançar e precisar a sua doutrina. Essa experiência comprovou que, ao contrário do sucedido nas revoluções burguesas, «a classe operária (ao conquistar o poder político) não pode contentar-se com o tomar a máquina completamente pronta do Estado e fazê-la funcionar para a realização dos seus fins» («A Guerra Civil em França», 1871, Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol, 1, p. 463) [9].
É nessa conclusão fundamental que Lénine insiste e é sobre ela que escreve no cepo da árvore em Razliv, no Verão de 1917, no momento em que ao proletariado russo se colocava a tarefa de realizar a sua revolução.
A libertação da classe oprimida (escreve Lénine) é impossível «sem a supressão do aparelho do poder de Estado criado pela classe dominante” e a sua substituição «por um poder especial de repressão” exercido contra a burguesia pelo proletariado» («O Estado e a Revolução», Obras, edição francesa, vol. 25, pp. 420 e 430) [10].
Lénine alertava contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da possibilidade de realizar a revolução socialista se o proletariado e as classes oprimidas se limitassem a tomar conta do aparelho do Estado, cuidando poder utilizá-lo contra a burguesia. Em conformidade com tal conclusão, indicava ao proletariado russo e ao seu partido uma tarefa capital para a conquista do poder pelos trabalhadores: a destruição do Estado burguês e a construção dum novo Estado, dum Estado dos operários e camponeses que, sob a direcção da classe operária, quebrasse a resistência decerto encarniçada da burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo homem, pusesse termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade socialista.
Tal é a essência da ditadura do proletariado.

2

Quando se fala da teoria marxista-leninista do Estado deve ter-se sempre presente o significado da palavra «ditadura» empregada tanto em relação aos Estados capitalistas - à «ditadura da burguesia», como em relação aos Estados socialistas - à «ditadura do proletariado». A clara explicação desse significado é essencial para a compreensão da teoria do Estado e da teoria da revolução e para a determinação da posição das várias classes e forcas políticas em relação ao problema da democracia. Os ideólogos burgueses, incluindo os liberais e socialistas, baralham os dados do problema e procuram mostrar que os comunistas, defendendo a ditadura do proletariado, se opõem à democracia, e que os burgueses liberais e socialistas é em nome da democracia que se opõem à ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado, como «ditadura», seria um regime de opressão, enquanto a democracia burguesa, como «democracia», seria um regime de liberdade.

A verdade é que a palavra «ditadura», na teoria marxista-leninista do Estado, não significa uma forma particular de dominação de uma ou várias classes por outra ou outras classes, mas o próprio facto dessa dominação. Segundo a teoria leninista, o Estado numa sociedade dividida em classes antagónicas é sempre uma ditadura. A expressão “ditadura» sublinha que o Estado não está acima das classes, não é um instrumento de conciliação das classes nem um árbitro entre elas, antes é a «organização da violência», é um «poder especial de repressão», é um organismo de dominação de umas classes sobre outras. Em resumo: numa sociedade dividida em classes antagónicas, Estado é sinónimo de Ditadura.
As formas de dominação, tanto na ditadura da burguesia como na ditadura do proletariado, é que podem ser diversas. A ditadura burguesa pode exercer-se através de variadas estruturas dos órgãos do poder e da administração, ou seja, sob regimes políticos diferentes: república parlamentar, monarquia constitucional, governo militar, ditadura fascista, etc. Em qualquer caso é sempre a «ditadura burguesa». A ditadura do proletariado pode também exercer-se com a existência de um ou mais partidos, com um sistema soviético ou uma assembleia parlamentar, ou outras formas de organização do poder. As experiências históricas das democracias populares já mostraram que o sistema soviético não é o único possível para o exercício da ditadura do proletariado, não é a forma única e obrigatória dum Estado socialista.
O facto de quaisquer que sejam as formas de dominação da burguesia se tratar sempre de uma ditadura da burguesia não torna a classe operária indiferente a essas formas de dominação.
Nada tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista, uma vez que num caso e noutro se trata de capitalismo. A repressão e o terror são utilizados precisamente contra o proletariado, para impedir o desenvolvimento da sua organização e da sua luta, para aniquilar os seus quadros, para cortar o caminho à revolução socialista. Enquanto subsistir o capitalismo o proletariado está interessado em lutar para que a ditadura da burguesia se exerça através de formas o mais democráticas possível, pois estas não só são as que menos sofrimentos lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios, ganhar as massas para a causa da revolução socialista. Nesse sentido se afirma que a luta pela democracia é parte constitutiva da luta pelo socialismo.
Nada tem também a ver com o marxismo-leninismo a posição de alguns «ultra-revolucionários» ao afirmarem que, nas condições do Portugal de hoje, a instauração das liberdades democráticas, se não fosse acompanhada pela conquista do poder pelo proletariado, seria ainda pior que a ditadura fascista, uma vez que representaria a consolidação do poder da burguesia, cuja crise se agrava nas condições do fascismo. O Partido Comunista Português não considera a revolução antifascista como uma revolução democrático-burguesa, mas como uma revolução democrática e nacional, de natureza profundamente popular. Mas insiste que o fim do fascismo e a instauração das liberdades fundamentais constituem um passo primeiro, fundamental e indispensável da revolução antifascista. Assim, não só formula uma reivindicação central, compreendida e sentida pelas mais vastas massas populares, como indica o caminho que pode conduzir à realização dos outros objectivos da revolução democrática e nacional e ao socialismo. Lénine numerosas vezes sublinhou que os comunistas russos «nunca separaram a luta pelo socialismo da luta pela liberdade política» («As tarefas dos sociais-democratas russos», Obras, edição francesa, vol. 2, p. 347).
Ao mesmo tempo que indicamos a conquista da liberdade política como um primeiro objectivo central da revolução antifascista, afirmamos como marxistas-leninistas, como partido do proletariado, como revolucionários que pretendem pôr fim à exploração do homem pelo homem, que a mais democrática das democracias burguesas serve a burguesia contra o proletariado, protege e defende a exploração dos trabalhadores e, se a luta destes põe em perigo os interesses do capital, a burguesia dominante, por muito «liberal» e «democrática» que seja, não hesita em violar a lei, retirar as liberdades e recorrer a métodos abertamente terroristas.
Como marxistas-leninistas, esclarecemos a classe operária e as massas da verdadeira natureza do Estado e da democracia. Quaisquer que sejam as formas do Estado burguês e do Estado proletário, o Estado proletário, tanto pela sua natureza como pela política que realiza, é sempre mais democrático que o Estado burguês. O Estado da burguesia é o instrumento de dominação por uma ínfima minoria de exploradores da maioria esmagadora da população; o Estado proletário é o instrumento da grande maioria contra uma ínfima minoria. O Estado burguês é um instrumento de exploração e subjugação das classes trabalhadoras e visa perpetuar a divisão da sociedade em classes antagónicas, o Estado proletário é o instrumento da liquidação da exploração do homem pelo homem e do termo da divisão da sociedade em classes.
Uma democracia burguesa, por mais amplas que sejam as «liberdades democráticas», e por muito grande que seja a autoridade do parlamento, é sempre uma ditadura da burguesia; qualquer ditadura do proletariado, mesmo quando assume formas «ditatoriais», é sempre mil vezes mais democrática do que qualquer democracia burguesa.

A Revolução de Outubro trouxe a grande primeira comprovação histórica desta verdade. Desde o início e no seu desenvolvimento, o primeiro Estado de operários e camponeses mostrou ser o Estado de mais profundo conteúdo democrático jamais existente na história da humanidade.
Notas:
[1] Cf. V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, Edições «Avante!” -Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1984-1989, t. 3, p. 132. (N. Ed.)
[2] Cf. V 1. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Edições “Avante!”-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1977-1979, t. 2, p. 14. (N. Ed.)
[3] Cf. K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Edições «Avante!», Lisboa, 1997, p. 56. (N.Ed.)
[4] Cf. K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1982-1985, t. 1, p. 555. (N. Ed.)
[5] Cf. K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, ed. cit., pp. 46 e 73. (N. Ed.)
[6] Cf. V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 3, pp. 207-208. (N. Ed.)
[7] Cf. Ibidem, pp. 208-209. (N. Ed.)
[8] Cf. K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. cit., t. 1, p. 502. (N. Ed.)
[9] Cf. Karl. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. cit., t 2, p. 237. (N. Ed.)
[10] Cf. V l. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 3,pp. 194 e 202. (N. Ed.)

Texto (Introdução, 1 e 2) e notas da 2ª edição, Editorial “Avante!”, 2007

sábado, 1 de junho de 2013

Há muito negro francês na escola pública

Há gênios demais nas secretarias de educação do Brasil todo, e talvez no MEC também. São gênios caolhos. Eles possuem ideias fantásticas, mas como são como o coelho do Maurício de Souza, procriam muito e enxergam pouco. Ideias não lhes faltam, mas alguma que funcione não aparece de modo algum em seus cérebros.
Um desses gênios colocou sua cabeça para fora da toca em Campinas.  Deve ter assistido algum filme desses em que um pobre encontra uma pessoa culta (e rica ou menos pobre) e convive com ela, e então, logo após uns meses, “absorve” (“assimila” – essas metáforas digestivas para o aprendizado cultura me torturam) as informações desse seu amigo e eis que se torna uma pessoa “interessante”. Vendo um filme assim, o coelho campineiro teve a brilhante ideia de “levar a cultura” para o “lugar carente”. Concretamente, eis a ideia: acho que deveríamos levar a cultura musical sofisticada para a escola pública atual.
A escola pública que um dia teve seu professor de música e que hoje, se tiver algum som com nome de música, é o Michel Teló gritando em algum aparelho colado às orelhas dos desgraçados que sobraram por lá, foi escolhida então para ser premiada com óperas, pianistas tocando clássicos etc. O resultado foi que durante a ópera os alunos gritaram e vaiaram e depois, no dia do pianista, os alunos resolveram também mostrar que cantavam, e entoaram um coro de “merda, merda, merda”, “filho da puta-aa, filho da puta-aa”, e assim presentearam o músico. Não foi só “zoeira”, como eles próprios, essa raça de bonés, dizem hoje em dia. Foi a própria barbárie. Manifestou-se ali não a bagunça, mas o ódio. Funcionou assim a cabeça dos ainda chamados estudantes: o que vem do âmbito da cultura sofisticada é o que eu não entendo e, por não entender, sei perfeitamente que pertence aos ricos e aos seus sabujos, os intelectuais, e não vou deixar isso aí me oprimir.  Não vão me fazer perder tempo com esse lixo. (Pianista hostilizado em Campinas)
Bagunça se fazia no meu tempo de escola pública.  Não há qualquer bagunça na escola pública atual. O que há é que ela é o lugar da bandidagem porque se tornou o último recanto do Brasil em que uma pessoa com dignidade e inteligência quer ficar. Qualquer coisa mais sofisticada posta na escola pública, hoje, vai gerar o comentário acertado de quem vê de fora: “pérolas aos porcos”. O gênio que fez o projeto “vamos levar os clássicos para a escola pública” não sabe disso porque ele se recusa a entender o seguinte: se aquele que é chamado de professor se sujeita a trabalhar pelo que o MEC colocou como “salário mínimo da educação” ou “piso” (só o nome “piso”, que é “chão”, já deveria mostrar a intenção do governo!), que vai de 1200 a 800 reais no ensino básico, então esse ambiente é completamente avesso a qualquer coisa que mereça o adjetivo “bom”. Essa é a verdade. A escola pública é hoje o lugar dos degradados, desgraçados e fracassados. Tudo que Deus não quis, e doou para o Diabo, está lá.
Mesmo aqueles que fazem dela um “bico” e, enfim, ou têm famílias que os sustentam ou têm muitos anos de trabalho e acumularam algum benefício trabalhista, se lá estão, também já estão um pouco fracassados, no mínimo desmotivados e, se são bons professores, nadam contra a corrente. Quando olho para o salário do professor imagino o tipo de aluno que ele tem e, então, a última coisa que penso oferecer para um tal aluno é música clássica. Não porque o pobre e idiotizado não mereça a música clássica, mas porque música clássica, como cinema ou filosofia, é para todo mundo mas não é para qualquer um. Quem não é o “qualquer um”? Aquele que obtém informação porque teve formação.  Ninguém pode levar um negro francês para ver ópera e esperar que ele não diga “esse cara lá cantando, ele está passando mal”, e comece a rir (cena de Os intocáveis, onde o negro, na verdade, é queniano). Nossos alunos são todos negros franceses, embora já não saibam nada de francês e, agora, nem mais de inglês, uma vez que também não sabem a língua materna.
Para que se possa receber informação sofisticada tudo que precisamos é de educação, de formação. Um ouvido não treinado não entende os sons que merecem analiticidade. Não é porque um som é consagrado pela parte culta da Humanidade que ele, não vindo em livros, é possível de ser popular. E assim é com tudo. Pois tudo tem seu lado sofisticado. O sofisticado não depende, para ser compreendido, de ser apresentado. Depende de uma familiaridade. Essa familiaridade depende de disciplina, o que se adquire por ser um iniciado. A iniciação nas “artes, ciências e filosofia” é um processo escolar e não-escolar, mas em nosso mundo moderno ocidental, os povos menos embrutecidos forjaram a escola como lugar dessa iniciação.
A escola pública, principalmente a de nível médio, era o nosso elemento principal de iniciação intelectual. Pegávamos com ela quase toda a classe média e alguns filhos de pobres e dizíamos para eles: alguns de vocês não vão para a universidade, mas o que aprendem aqui, já é em parte o saber do mundo, até mesmo mais sofisticado que alguns dos saberes da universidade. Essa escola pública era povoada por professores que, em cultura e em altivez, eram até superiores ao que é hoje os nossos doutores universitários. Não eram professores ricos. Eram também de classe média. Mas eram distintas figuras da cidade. Eram os intelectuais da cidade. Eram as autoridades. O salário do professor era um salário que permitia que ele entendesse o seu lugar de trabalho como um lugar de dignidade. E assim toda a sociedade via a escola.
Não soubemos preservar esse tipo de escola. Deixamos os ricos sair dessa escola à medida que a democratizamos e, paralelamente, abrimos escolas particulares para os ricos. Achatamos então o salário do professor de um modo geral. O que temos hoje é isso: uma escola pública que é o lixo da sociedade, uma escola particular que sabe que vai se tornar rapidamente um espelho desse lixo.
Em todos os países com diferenças grandes entre pobres e ricos, e onde a política é comandada pelos ricos, se os ricos saem de um lugar público, esse lugar perde a atenção das instituições mantenedoras e se deteriora. Quando decretamos que a escola pública era para os pobres, nós iniciamos a sua derrocada. Agora, corremos o risco de repetir esse erro com a universidade pública.
Estamos todos contentes com isso, porque somos gênios que acreditamos no projeto levado adiante em Campinas. Vamos apenas dizer: ah, deu um problema lá, mas o pobre não é ruim, ele tem lá sua cultura popular, pode também ter a cultura erudita e blá blá blá. Achamos mesmo que negros franceses aprendem se os deixamos expostos à cultura erudita. Não nos passa pela cabeça que antes de tudo ele vai é roubar ou simplesmente destruir o aparelho de som que ali deixamos para que ele escutasse o que queríamos que ele escutasse. E se nos passa isso pela cabeça, sentimos vergonha de nós mesmos e, então, nos calamos.
© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ