Por Fábio Konder Comparato, da Caros Amigos
Artigo do jurista Fábio Konder Comparato evidência a dupla visão
dos grupos dominantes brasileiros diante da questão dos direitos
humanos, presente em toda história nacional e que atualmente encoberta
crimes da Ditadura Militar, no blog o escrevinhador.
No conto O Espelho, de Machado de Assis, o narrador assevera a seus
ouvintes espantados que cada um de nós possui duas almas. Uma exterior,
que exibimos aos outros, e pela qual nos julgamos a nós mesmos, de fora
para dentro. Outra interior, raramente exposta aos olhares externos, com
a qual julgamos o mundo e a nós mesmos, de dentro para fora.
Penso que essa alegoria explica perfeitamente a diplopia ou dupla
visão dos nossos grupos dominantes diante da questão dos direitos
humanos. A alma exterior dessas falsas elites, exibida ao mundo,
sustenta que neste país todos, sejam eles ricos ou pobres, poderosos ou
humildes, têm seus direitos igualmente respeitados. Mas a alma interior
repele com desprezo esse igualitarismo absurdo. Afinal, como bem
sentenciava Napoleão – não o imperador dos franceses, mas o líder suíno
da rebelião dos animais na famosa novela de George Orwell – se todos, em
princípio, são iguais entre si, alguns acabam sendo mais iguais do que
os outros.
Dois episódios históricos ilustram à perfeição esse aspecto deplorável dos nossos costumes políticos.
O primeiro deles foi a refinada hipocrisia das autoridades públicas
(nelas incluído o clero católico, pois a Igreja era aliada ao Estado) a
respeito do tráfico negreiro, durante a primeira metade do período
imperial.
Em 1826, firmamos com a Inglaterra uma convenção, pela qual o tráfico
de africanos que se fizesse depois de três anos da troca de
ratificações seria equiparado à pirataria. Para cumprimento desse
tratado internacional, promulgamos a Lei de 7 de novembro de 1831, a
qual determinou que, a partir de então, todo africano desembarcado no
Brasil seria considerado livre.
Essa lei, porém, permaneceu letra morta, pois fora editada unicamente
“para inglês ver”. Os traficantes de carne humana tornaram-se os mais
poderosos empresários do Império. Como lembrou o grande advogado negro
Luiz Gama, ele próprio vendido como escravo pelo pai quando tinha apenas
10 anos, “os carregamentos eram desembarcados publicamente, em pontos
escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista da
polícia, sem recato nem mistério. Eram os africanos, sem embaraço algum,
levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas fazendas, e
batizados como escravos pelos reverendos, pelos escrupulosos párocos!”
Diante desse comportamento indigno das autoridades brasileiras, e
tendo em vista a iminente expiração do tratado de 1826, o Parlamento
britânico votou em 1845 o bill Aberdeen, pelo qual, reiterando-se a
qualificação do tráfico negreiro como pirataria, foi autorizado o
apresamento, até mesmo em águas brasileiras, dos tumbeiros e de sua
carga, com o julgamento da tripulação pelas Cortes do Almirantado em
Londres.
Viu-se, portanto, o governo imperial constrangido a abandonar sua
política de vistas grossas em relação ao comércio de seres humanos.
Levou, porém, um lustro até fazer votar, em 4 de outubro de 1850, e
aplicar efetivamente, a Lei Eusébio de Queiroz, que impunha o julgamento
dos traficantes e compradores de africanos como contrabandistas.
Pois bem, vivemos agora um episódio análogo.
Durante a maior parte do regime militar, uma política de Estado
efetivamente aplicada, embora nunca oficialmente reconhecida – como
sempre, a alma exterior desmentindo a alma interior – consistiu em
torturar e assassinar (com ou sem ocultamento, ou mutilação do cadáver),
os principais opositores políticos, mesmo quando já recolhidos à
prisão.
Em 1979, na esteira de outras ditaduras do hemisfério, decidiram os
chefes militares, como condição para se afastarem do poder, impingir ao
Congresso Nacional uma lei de anistia, aparentemente dirigida aos
perseguidos pelo regime, mas na verdade e principalmente para garantir a
total impunidade dos agentes de Estado, militares ou civis, que haviam
ordenado e executado aqueles crimes hediondos. Em suma, uma
auto-anistia.
Em 2009, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
ingressou com uma demanda perante o Supremo Tribunal Federal, pleiteando
a interpretação dessa lei de anistia, à luz não só da Constituição de
1988, mas ainda dos princípios e tratados de direito internacional. Com
efeito, o art. 5º, inciso XLIII da Constituição declara imprescritível e
insuscetível de anistia o crime de tortura; e qualquer bacharel
aprovado em concurso de ingresso à magistratura sabe que a entrada em
vigor de uma nova Constituição revoga, de pleno direito, as leis
anteriores com ela incompatíveis.
Por outro lado, desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os
julgamentos de Nuremberg dos criminosos nazistas, fixou-se no direito
internacional o princípio fundamental de que os atos de terrorismo de
Estado (como os praticados durante o nosso regime militar) são crimes
contra a humanidade e, como tais, não sujeitos à prescrição nem à
anistia.
A demanda proposta pela OAB perante o Supremo Tribunal foi,
lamentavelmente, julgada improcedente. A Procuradoria-Geral da República
e alguns julgadores chegaram, sem ironia, a afirmar que a anistia dos
mandantes e executores de crimes de Estado, durante o período de
exceção, fora um “acordo histórico”, graças ao qual havíamos
ingressado, triunfalmente, no regime democrático.
Sucedeu que em novembro do ano passado, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, ao julgar a atuação de nossos capitães do mato na
repressão da chamada “guerrilha do Araguaia”, condenou o Brasil por
unanimidade pela prática de graves violações de direitos humanos.
Além da abertura total dos arquivos militares e da reparação dos
danos, físicos e morais, sofridos pelas vítimas sobreviventes daquela
chacina e pelos familiares dos mortos, a sentença determinou:
>> Que se conduza eficazmente perante a jurisdição ordinária
(ou seja, fora da Justiça Militar), a investigação penal de todos os
crimes (não só os da “Guerrilha do Araguaia”), praticados pelos agentes
do Estado contra opositores políticos ao regime militar, pois “as
disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e
sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a
Convenção Americana, e carecem de efeitos jurídicos”. A Corte
reconheceu, portanto, como destituída de fundamento jurídico a decisão
do Supremo Tribunal Federal a esse respeito.
>> Que o Estado brasileiro realize “um ato público de
reconhecimento de responsabilidade internacional”, a respeito dos crimes
praticados por seus agentes durante a chamada “Guerrilha do Araguaia”,
em presença de altas autoridades nacionais e das vítimas.
>> Que o Estado brasileiro “deve implementar, em um prazo
razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos
humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas”.
>> Que “o Estado deve adotar, em prazo razoável, as medidas que
sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de
pessoas, em conformidade com os parâmetros internacionais”.
Nunca é demais lembrar que, no livre exercício de sua soberania
internacional, o Brasil aderiu solenemente à Convenção Americana de
Direitos Humanos em 1992, e reconheceu a jurisdição da Corte
Interamericana em 1998. Ora, o art. 68 da Convenção determina que os
Estados por ela vinculados “comprometem-se a cumprir a decisão da Corte
em todo caso em que forem partes”.
No entanto, passados mais de quatro meses da prolação da sentença
condenatória no caso, as autoridades brasileiras ainda continuam a fazer
de conta que o assunto não é com elas. Até mesmo as publicações do
decisório, ordenadas pela Corte, não foram feitas.
Ou seja, seguindo o precedente da criminosa condescendência com o
tráfico negreiro no século XIX, e o nosso tradicional jogo duplo em
matéria de direitos humanos, o Estado brasileiro não repele a decisão da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas tampouco a executa.
Diante disso, o Conselho Federal da OAB ingressou recentemente com
uma petição, no processo acima referido sobre a interpretação da lei de
anistia, pleiteando que o Supremo Tribunal Federal decida, claramente e
sem rebuços – ou seja, fazendo coincidir o juízo da alma interior com o
da alma exterior – qual das posições da seguinte inescapável alternativa
o Estado brasileiro deve tomar:
>> Cumprir integralmente a sentença condenatória proferida pela
Corte Interamericana de Direito Humanos, inclusive quanto à
inadmissibilidade de anistia dos crimes cometidos por agentes públicos
contra opositores políticos durante o regime militar;
>> Ou tornar-se-á um Estado fora-da-lei no plano internacional.
Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da
Universidade de Coimbra