sábado, 30 de julho de 2011

Mundo árabe, Revolta, reação ou revolução?



Os acontecimentos no mundo árabe revelam bem como a situação internacional é caracterizada por grandes perigos mas simultaneamente por reais potencialidades de desenvolvimento da luta dos trabalhadores e dos povos.
Quando, no início deste ano, os tunisinos e os egípcios saíram à rua exigindo melhores condições de vida e direitos democráticos muitos foram os que afirmaram que, numa região tradicionalmente fustigada pelo domínio colonial e imperialista, nada iria ficar na mesma. A questão é saber que sentido terá essa evolução, se avanços de carácter progressista e democrático, se novas e mais sofisticadas formas de exploração e domínio imperialista e neocolonial.

Efeito dominó?

Os acontecimentos nesta região do Globo – rica em recursos estratégicos como o petróleo e o gás natural, chave de rotas fundamentais de transporte de mercadorias e de energia e onde se travam importantes batalhas em torno de recursos vitais como a água – são uma clara expressão das diferentes tendências e dinâmicas de fundo da actual situação internacional, marcada pelo aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e pela ofensiva do imperialismo face a essa mesma crise.
Contrariamente a teses que tentam apresentar as situações destes países como iguais, e a região como um bloco homogéneo reagindo de forma idêntica (a teoria do «dominó»), a análise da realidade demonstra como estamos perante situações muito diferentes entre si. Há evoluções distintas consoante a situação social e política de cada país e a sua relação com o sistema de domínio imperialista na região.
Analisando alguns indicadores económicos e sociais constam-se níveis muitos diferentes de desenvolvimento económico e social. Os valores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) vão desde o valor do Iémen (0,439 – 133.ª posição mundial) até o da Líbia (0,755 – 53.ª posição, o maior IDH de todo o continente africano)(1). As percentagens de população a viver abaixo do limiar nacional da pobreza vão desde valores muito baixos, como a Tunísia (3,8%)(2), a valores impressionantes, como no Iémen – 42% segundo dados do próprio regime iemenita, passando por valores como no Egipto, com 22%(3).
Igualmente importante é constatar as diferentes relações destes países com as principais potências imperialistas. Países como o Egipto, a Arábia Saudita, o Bahrein e o Iémen foram e são pilares fundamentais do domínio imperialista norte-americano na região. O Egipto de Mubarak, um dos mais importantes aliados dos EUA na região, alinhado com a política de Israel de genocídio do povo palestiniano, é o segundo país do Mundo que mais «ajuda» recebe dos EUA (essencialmente para manter o seu poderoso exército). A monarquia do Bahrein está às ordens da ditadura saudita e dos EUA, albergando no seu território a V Esquadra norte-americana. O Iémen (onde a intervenção e ingerência externas dos EUA e da Arábia Saudita foram determinantes para pôr fim ao processo revolucionário no Sul do país e onde o actual regime abraçou a «guerra contra o terrorismo») é um dos mais importantes pontos estratégicos para o domínio norte-americano do Golfo de Áden e da entrada para o Mar Vermelho. Por outro lado, países como a Síria e a Líbia, com notáveis histórias de luta contra o colonialismo, o imperialismo e a agressão sionista (no caso da Síria) e com políticas económicas que ao longo dos anos puseram as suas riquezas naturais ao serviço do desenvolvimento social, são, ainda hoje, países soberanos que apesar de alguns desenvolvimentos negativos (como a adesão da Líbia à «luta contra o terrorismo» de Bush, os acordos de Kadhaffi com o FMI e a progressiva rendição do Governo de Al Assad à «economia de mercado») representam obstáculos ao domínio do imperialismo norte-americano na região, e de forma crescente ao imperialismo europeu. A Síria é um importante ponto de apoio para os movimentos de libertação árabes, como é o caso dos movimentos palestinianos.
Não estamos portanto perante situações iguais com desenvolvimentos copiados a papel químico. Estamos, isso sim, perante a confluência de factores internos e externos vários que evoluem e se relacionam dialecticamente. Na região coexistem uma poderosa presença e ofensiva imperialista e movimentos vários de resistência, travando-se aí algumas das mais importantes batalhas geoestratégicas da actualidade.

A crise como pano de fundo

Se é importante ter presente as diferenças acima referidas, é necessário e possível identificar tendências que são indissociáveis do aprofundamento da crise estrutural do capitalismo e que estão na origem de alguns dos acontecimentos.
É o caso central do desemprego entre as gerações mais jovens. Os dados disponíveis sobre as taxas de desemprego revelam mais uma vez realidades diversas que vão de valores inferiores à actual taxa oficial portuguesa, como é o caso da Síria e do Egipto – com taxas de desemprego de 8,4% e 9,2% em 2010, respectivamente(4) –, até aos 13% da Tunísia(5), ou aos 34% do Iémen, segundo dados do próprio regime iemenita(6).
Se há tendência que marca a realidade da esmagadora maioria dos países do mundo árabe é um forte e continuado crescimento demográfico. O Egipto viu aumentar a sua população de 70 milhões de pessoas, nos últimos dez anos, para mais de 84 milhões(7). O resultado são sociedades extremamente «jovens» onde os sistemas económicos e políticos – marcados pela corrupção generalizada, pela entrega das receitas provenientes das suas riquezas naturais (como o petróleo) às grandes burguesias e ao capital estrangeiro, rendidos de forma crescente ao neoliberalismo, fiéis executantes das políticas do FMI e do Consenso de Washington, enfeudados ao imperialismo e aos interesses das multinacionais – não conseguem dar resposta à necessidade de criação de postos de trabalho que assegurem o direito ao trabalho e perspectivas de vida às imensas massas de população jovem.
Acresce que as políticas anti-sociais, decorrentes da ofensiva que visa transferir os efeitos da crise para as massas trabalhadoras e populares, acentuam estes fenómenos. Se é verdade que o problema vem detrás, as consequências da crise económica do capitalismo e as políticas neoliberais aplicadas na maioria destes países aumentaram a pressão de uma «panela» que já estava em situação limite, como o demonstram os valores apontados para o desemprego na região na faixa etária dos 15 aos 24 anos, cuja média se situa entre 30 e 40%, ou ainda a acentuação de enormes desigualdades sociais e a polarização da riqueza nesta região, bem visível nos elevadíssimos valores do índice de Gini.
Mas o caldo de revolta popular não se limita às questões centrais do direito ao trabalho e à polarização da riqueza. A crise alimentar e a crise energética estão também na origem das genuínas explosões de revolta. A acrescentar à falta de emprego e de perspectivas de amplas camadas da população, essencialmente jovens, somam-se as consequências do brutal aumento dos preços dos alimentos a nível mundial. De acordo com dados da Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO), o valor de mercado dos principais bens alimentares aumentou 138% nos últimos oito anos. Em Dezembro de 2010, os preços do trigo, do óleo, do milho, do arroz, da carne e do leite atingiram preços recordes e esperam-se novos recordes este ano. O milho aumentou 60%, o trigo 43% e o açúcar 77%. Consequência geral do agravamento da crise estrutural do capitalismo, tais aumentos tiveram, e continuam a ter, efeitos devastadores do ponto de vista social numa região que importa cerca de 60 a 70% dos seus alimentos, especialmente em países como a Tunísia e o Egipto, onde quase metade dos orçamentos familiares é consumida na alimentação. No Egipto, esta tendência fez-se ainda sentir de forma mais vincada se tivermos em conta a pressão demográfica num país com uma muito larga extensão territorial desértica, assim como as consequências das políticas de liberalização do sector agrícola e o progressivo esgotamento de terras aráveis das margens do Nilo.
A crise energética também teve influência em alguns destes países. Mais uma vez o Egipto é um caso sintomático. Por um lado, o crescimento acentuado da sua população determina um crescimento significativo do consumo energético do país, por outro, o facto de o país ter já atingido o seu pico de produção de petróleo e de ter entregue ao capital estrangeiro uma parte muito significativa da sua exploração petrolífera, fez com que passasse nestes anos da condição de país exportador de petróleo para país importador. As consequências rapidamente se fizeram sentir nos bolsos da população por via dos aumentos brutais do preço dos combustíveis e da energia.
Em conclusão, algumas das razões dos levantamentos populares em países como o Egipto, a Tunísia e outros países, residem na questão social e de distribuição da riqueza, ou seja na luta de classes, e são de facto indissociáveis do aprofundamento da crise estrutural do capitalismo nas suas diversas vertentes – económica, financeira, alimentar e energética.

Lutas que não nasceram agora

Muitas destas razões não nasceram agora, tal como não nasceram agora as contradições do capitalismo, a crise que lhe é intrínseca e as crescentes contradições de classe. Nem os povos do mundo árabe «acordaram» só agora para estes problemas, como alguns levianamente se apressaram a analisar.
Não! No Egipto e na Tunísia houve uma confluência de factores que adensaram as contradições de classe em dois países com violentos regimes ditatoriais, e portanto sem «válvulas de escape» que retirassem um pouco de pressão à «panela».
Como o demonstram as várias lutas e movimentos grevistas que há vários anos vinham marcando a realidade egípcia e tunisina, os problemas daquelas sociedades não nasceram agora. Nem foram as redes sociais e as novas tecnologias os factores determinantes para que, como por milagre, despertasse no povo uma nova consciência social. No Egipto, os utilizadores de Internet eram em Dezembro de 2010, 24,5% da população(8) e nessa altura a taxa de penetração do Facebook era aproximadamente 7%. Como referiu um activista egípcio na altura das grandes mobilizações na Praça Tahrir, o Facebook foi essencialmente usado para divulgar as acções e os seus resultados e não para organizar as acções e muito menos definir o seu conteúdo político.
A verdade é que os problemas destas sociedades já existiam e eram alvo da luta dos trabalhadores e das forças progressistas que viviam esmagadas pelas ditaduras apoiadas pelos EUA, a União Europeia e a Internacional Socialista.
Lutas que no Egipto foram violentamente reprimidas (como em 2008 e 2009) e que determinaram a criação de novos sindicatos dissociados da central sindical egípcia controlada pelo regime de Mubarak, que vieram a ter um importante papel na pressão grevista que acabaria por se revelar fundamental para o afastamento de Mubarak.
Lutas que, no caso da Tunísia, foram fundamentais para arrastar a UGTT para posições contrárias ao regime de Ben Ali, e para, por acção das diferentes forças progressistas, incluindo os comunistas, construir rapidamente uma frente popular e progressista que fez frente às sucessivas tentativas de esmagamento e subversão da revolta tunisina, demonstrando assim o quão importante é aliar à criatividade, e mesmo espontaneidade, das massas em movimento a acção de forças organizadas portadoras de projectos e estratégias de luta política e ideológica capazes de imprimir a movimentos de revolta o carácter de movimentos de real transformação social.
No entanto, as questões sociais não são as únicas que estão na origem destes levantamentos. Como é particularmente evidente nas situações do Iémen e do Bahrein, a revolta contra a presença estrangeira e o domínio norte-americano (não poucas vezes correctamente identificada pelas massas como uma das principais razões para muitos dos problemas económicos e sociais e para a corrupção generalizada) teve um peso importante no desenrolar dos acontecimentos. Tal como teve, aliás, no Egipto, a questão da solidariedade para com o povo palestiniano e a condenação do regime de Mubarak pelo seu apoio à estratégia dos EUA e de Israel, sobretudo após os acordos de Camp David em 1979, razão pela qual o novo regime, ainda que intimamente ligado aos interesses do imperialismo norte-americano, se viu forçado a tomar a decisão de abrir a passagem de Rafah, aliviando o criminoso cerco israelita à Faixa de Gaza.
Independentemente de ulteriores desenvolvimentos, os levantamentos em países como a Tunísia, o Egipto, o Iémen (país com largas tradições progressistas e mesmo revolucionárias) e o Bahrein associaram de forma natural a luta social a um sentimento anti-imperialista. Tal facto não pode ser desligado da História de resistência e luta dos povos do mundo árabe e é por isso que o imperialismo viu nestes movimentos reais perigos para o seu já de si decadente sistema de domínio económico, político e geoestratégico na região. Num tempo em que o imperialismo tenta retomar o velho projecto de Bush do «Grande Médio Oriente», os acontecimentos no mundo árabe têm uma importância central. Independentemente dos seus desfechos, despertaram nas massas reais sentimentos anti-imperialistas e isso coloca estes povos em rota de colisão com os projectos do imperialismo para esta região.

A contra ofensiva do imperialismo

Mas como seria de esperar o imperialismo não assistiu «sentado» ao questionamento do seu poder na região e as respostas não se fizeram esperar. Se o aprofundamento da crise do capitalismo; o acentuar do declínio económico relativo das potências do centro capitalista; a gigantesca movimentação das «placas tectónicas» da economia mundial com a entrada em cena das potências emergentes em busca de matérias-primas e recursos energéticos para sustentar os seus crescimentos económico e demográfico, são factores que já tinham desencadeado novos episódios da ofensiva das principais potências imperialistas para garantir e aprofundar o seu domínio desde o continente africano à Ásia Central, estes acontecimentos vieram acelerar projectos como o do «Grande Médio Oriente» – retomado em força por Obama na autêntica declaração de guerra aos povos da região que foi o seu último discurso sobre o mundo árabe – bem como velhos projectos de domínio da França, da Grã-Bretanha, da Itália e da Espanha que viram nestes acontecimentos, e na resposta de força a eles, uma oportunidade para aumentar o seu quinhão de saque das riquezas naturais da região e para subir um degrau na hierarquia do domínio imperialista na região, sonhando com a recuperação de posições perdidas com o fim dos seus impérios coloniais.
Não obstante contradições inter-imperialistas que de dia para dia se adensam, os EUA e as principais potências da União Europeia rapidamente se puseram de acordo, manobraram e conspiraram contra os povos em luta, tentando desde logo abrir frentes de ofensiva e ingerência que «reequilibrem» os «pratos da balança» de domínio na região.
Confrontado com a força imparável dos protestos populares na Tunísia e no Egipto, o imperialismo tentou recuperar espaço e ganhar tempo para conter e «domesticar» os levantamentos e, simultaneamente, reganhar alguma «credibilidade» completamente perdida com a defesa até ao limite dos ditadores. Tendo sido obrigadas a deixar cair Mubarak e Ben Ali, as principais potências imperialistas apressaram-se então em tentar promover figuras e definir soluções políticas que garantissem o essencial da sua cadeia de poder económico, político e militar, incluindo a promoção de forças islâmicas ditas «moderadas» como a Irmandande Muçulmana.
Simultaneamente foi lançada uma campanha ideológica e mediática de âmbito mundial em torno do conceito «revolução» (tão bem propalada pela cadeia Al-Jazeera, sedeada no Qatar e claramente ao serviço da reacção árabe e do imperialismo), que, tirando partido da volatibilidade da situação no terreno, da relativa debilidade das forças progressistas e do movimento operário, mantivesse dentro dos limites do «aceitável» as consequências das movimentações populares indo assim também ao encontro de sectores das burguesias nacionais que desejam uma espécie de «modernização» de um mesmo sistema de exploração e opressão ao qual necessitam conferir uma «capa» democrática. Trata-se de «revoluções de faz de conta» encharcadas com milionários pacotes de «ajuda» do FMI, do Banco Mundial e da União Europeia, que tentam impedir reais revoluções populares, democráticas e nacionais, acentuar a dependência destes países face às principais potências imperialistas mundiais e ao mesmo tempo comprar as burguesias nacionais e associar ainda mais os seus interesses aos interesses dos grandes grupos económicos transnacionais.
Trata-se de manobras que desde o início foram cuidadosamente preparadas pelos serviços secretos, agências e agentes do imperialismo norte-americano e europeu e que foram mais uma demonstração de hipocrisia e da sua determinação em não dar espaço e campo de manobra à soberania dos povos, à verdadeira democracia e ao respeito pela vontade popular.
Tal ficou bem patente na forma com os EUA e a União Europeia lidaram com as situações no Iémen e no Bahrein, dois pontos demasiadamente importantes do ponto de vista geoestratégico (tendo sempre presente o confronto e latente conflito militar com o Irão) para que aqui se possam jogar as cartadas das «revoluções faz de conta». Neste dois países a resposta a meses de poderosos movimentos de massas está a saldar-se por centenas de mortes e milhares de feridos, além de uma brutal perseguição e repressão. No Bahrein, a Arábia Saudita, às ordens da Administração dos EUA, enviou para o território (sob a capa de um mandato da Liga Árabe completamente instrumentalizada pelos EUA) 1500 soldados sauditas com a missão de esmagar pela força os protestos populares, atirando a matar sobre os manifestantes pacíficos. No Iémen, os EUA jogam a cartada da divisão étnica, bombardeiam o Sul com a sua força aérea em nome do combate à sempre conveniente e oportuna Al-Qaeda, e o regime de Ali Abdullah Saleh envolve-se em conspirações que permitam, em nome do «combate ao terrorismo», acentuar ainda mais a repressão sobre os movimentos populares.

Os casos da Líbia e da Síria

É tendo em conta esta estratégia de resposta multifacetada e de força aos acontecimentos e as grandes tendências de fundo da situação internacional – nomeadamente a resposta de força do imperialismo à crise do centro capitalista, tirando partido da sua vantagem militar (resposta bem patente no conceito estratégico da NATO aprovado na sua Cimeira de Lisboa) – que devem ser analisados os acontecimentos na Líbia e na Síria.
As situações sociais nestes países diferem, para melhor, de situações em países já aqui analisados. Tal não significa que aí não existam problemas vários de ordem social, económica e política. Quer o governo Líbio, quer o Estado sírio e os dois Partidos Comunistas ali existentes reconhecem a existência de problemas. Estes sistemas políticos não são para os comunistas portugueses exemplos de democracia e participação popular, apesar das suas tradições progressistas e anti-imperialistas.
Mas seria um crasso erro de análise atribuir exclusivamente (ou mesmo maioritariamente) a factores internos as causas dos actuais desenvolvimentos nestes dois países. Se é certo que existe descontentamento popular e que a situação social se tem vindo a degradar em função da adopção progressiva da «economia de mercado livre», da aplicação das receitas do FMI (Líbia), da prossecução de políticas de privatização e de desinvestimento nas funções sociais (Síria), o facto é que se a situação rapidamente resvalou para conflitos armados internos isso foi fruto de poderosas acções externas de desestabilização e incitação ao conflito, que visaram preparar e justificar a ingerência e agressão externa a dois países que estão na mira do imperialismo norte-americano há vários anos e que, como é bem patente no caso da Síria, são alvos de constantes provocações e ataques.
O espaço disponível não permite a denúncia detalhada das múltiplas conspirações dos EUA e de países europeus como a Grã-Bretanha na preparação da agressão à Líbia, ou ainda a desmontagem de mentiras como «o banho de sangue» levado a cabo pelo regime Líbio em «bombardeamentos de civis pela força aérea». Acusações essas desmentidas pelo embaixador de Portugal em Tripoli, cujas declarações foram convenientemente ocultadas e ignoradas pelo Governo português, que votou no Conselho de Segurança das Nações Unidas a agressão e a interferência nos assuntos internos da Líbia num acto de claro desrespeito pela Constituição da República e pela Carta das Nações Unidas.
No caso da Líbia, a realidade está a encarregar-se de desmentir rapidamente a patranha da «protecção de civis», o eufemismo utilizado para justificar a aplicação do novo conceito estratégico da NATO de intervir militarmente em conflitos internos. Como o PCP denunciou, a resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas – um gravíssimo passo e precedente deste órgão no desrespeito pelo Direito Internacional e a soberania dos povos, demonstrativo do grau de instrumentalização a que a ONU está sujeita – visou avançar (apesar das contradições evidenciadas nas posições de países como a Alemanha) com uma típica guerra de agressão imperialista, que visa submeter, dividir ou ocupar o país com as maiores reservas de petróleo e gás natural não exploradas do continente africano. Uma guerra em tudo semelhante às guerras da Jugoslávia, do Iraque e do Afeganistão, construída com base em mentiras, em acções de desestabilização e divisão interna e numa poderosa campanha mediática de diabolização e isolamento do legítimo Governo líbio. Os bombardeamentos de complexos residenciais e de infra-estruturas civis várias (incluindo estruturas fundamentais para o funcionamento dos hospitais líbios), as centenas de mortos e milhares de feridos vítimas dos bombardeamentos da NATO, as denúncias da presença de instrutores da NATO no comando das operações em terra dos ditos «rebeldes», a utilização de mercenários iemenitas, egípcios e argelinos na guerra contra o exército regular líbio, são algumas das muitas provas do crime que a NATO ali leva a cabo, desrespeitando inclusive a já de si criminosa resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU.
As riquezas naturais da Líbia, a possibilidade de ali ser instalado o AFRICOM e, acima de tudo, o perigo que uma Líbia independente e soberana pode significar para os planos do imperialismo, numa região em convulsão social, são as reais razões desta guerra. Mas há uma terceira: é que esta agressão é desencadeada contra o povo líbio mas também contra todos os povos da região. Ela foi uma clara mensagem do imperialismo que pretende dizer às massas populares em luta que essa «estranha coisa» da vontade soberana e popular tem limites e que quem se mete com o sistema de domínio do imperialismo e o põe em causa «leva». É por isso que independentemente das críticas que se possam – e podem – fazer ao actual regime líbio, a solidariedade com a resistência deste povo à agressão externa é um dever internacionalista e um acto de solidariedade para com todos os povos da região e do Mundo.
Não sabemos quais serão os desenvolvimentos na Síria à altura da publicação deste artigo, mas os dados existentes apontam claramente para uma mesma estratégia de desestabilização externa e possível agressão militar. Aliás, Líbia e Síria fazem parte da conhecida lista, elaborada pela Administração norte-americana e divulgada pelo General Wesley Clark, de sete países que, após 2001, deveriam ser, mais cedo ou mais tarde, alvos de intervenção militar dos EUA e de invasão, nos quais se incluem o Iraque e o Afeganistão e também o Irão. A consolidação do eixo Irão/Síria na resposta à política criminosa e de genocídio de Israel, dos EUA e da União Europeia contra o povo palestiniano e na resistência ao projecto do «Grande Médio Oriente» são algumas das razões que estão por detrás da decisão de avançar com a desestabilização e possível agressão contra o povo sírio.
Nos media lança-se mais uma campanha de diabolização do Governo sírio e de incitamento à violência, ocultando-se cirurgicamente factos como o massacre de mais de uma centena de polícias sírios – que, como é óbvio, só pode ser o resultado de uma operação militar de considerável envergadura; a apreensão pelas autoridades sírias, nas semanas que precederam a deterioração da situação no terreno, de barcos e automóveis carregados de armamento proveniente do Norte do Líbano; a denúncia de que refugiados iraquianos a viver na Síria (cerca de um milhão) estariam a ser pagos para participar em manifestações contra o Governo de Bashar Al-Assad, ou ainda a revelação de que uma suposta bloguer síria lésbica, alegadamente vítima de repressão, era afinal um cidadão escocês.
Tal como na Líbia, na Síria a questão não é se existem ou não problemas. Existem e são bem denunciados pelos seus dois Partidos Comunistas. As lutas verdadeiramente populares por mais justiça social e avanços democráticos (que não começaram agora) têm a nossa solidariedade, tal como a luta de todo o povo sírio pela integridade territorial do seu país e pela recuperação dos territórios ocupados por Israel, com destaque para os Montes Golã.
O que está em causa na Síria neste momento é precisamente a sua soberania, independência e integridade territorial. É tempo de manifestar, sem tibiezas, a solidariedade a este povo, de condenar as manobras de desestabilização e de denunciar a tentativa de instrumentalização de dificuldades internas para a abertura de uma nova frente de guerra imperialista contra um país soberano do Médio Oriente. País que, ao longo dos anos, se tem recusado a submeter-se ao domínio imperialista na região, opondo uma tenaz resistência à política de terrorismo de Estado de Israel.

Os povos terão a última palavra…

Os acontecimentos no mundo árabe estão intimamente ligados às tendências de fundo da situação internacional. É um facto que a resposta do imperialismo se revelou forte, articulada e sofisticada e conta com enormes recursos económicos, políticos e militares e amplo apoio dos media dominantes. Mas também é verdade que, apesar das insuficiências, indefinições e debilidades das forças progressistas e revolucionárias na região, os povos do mundo árabe se levantaram, reganharam dignidade e estilhaçaram preconceitos construídos ao longo dos últimos anos em torno do famigerado conceito de «choque de civilizações». Oprimidos e enxovalhados pelo discurso do imperialismo durante décadas, estes povos voltaram a demonstrar que os trabalhadores e os povos, unidos, mobilizados e protagonizando poderosos movimentos de massas, têm de facto poder para transformar o Mundo. Esperamos que, apesar da dimensão da contra-ofensiva do imperialismo nesta região, os povos saibam de que lado da barricada é necessário estar em cada momento, assegurando que, numa situação extremamente complexa e plena de contradições, sejam eles a ter a última palavra, derrotando a reacção e transformando revoltas em verdadeiras revoluções.
Notas
(1) Relatório do Desenvolvimento Humano 2010 (PNUD).
(2) Banco Mundial – dados relativos a 2005.
(3) Banco Mundial – dados relativos a 2008.
(4) FMI – World Economic Outlook – Abril 2011.
(5) Idem.
(6) Economic Annual Report – Ministry of Planning and International Corporation.
(7) Relatório do Desenvolvimento Humano 2010 – PNUD.
(8) ITU – Agência das Nações Unidas para as tecnologias da informação e da comunicação – dados de Dezembro de 2010.

Época, IstoÉ e os atentados na Noruega

Por Mauro Malin, no Observatório da Imprensa: via BLOG DO MIRO

Duas das mais importantes revistas semanais brasileiras, Época e IstoÉ, poderiam ter disputado, no fim de semana de 23-24/7, para saber quem foi capaz de errar mais na avaliação dos violentíssimos atos terroristas cometidos na sexta-feira (22/7), na Noruega, por um fascista local.

IstoÉ errou de cabo a rabo: simplesmente atribuiu o atentado à Al Qaeda. Ilustra a reportagem com uma foto de prédios abalados em Oslo e outra de Ayman Al-Zawahiri, sucessor de Osama bin Laden.

A revista, como as demais, apresentou a Noruega como um cenário político idílico. Esse engano se repetiu em todas as mídias. Ou quase. Na noite de terça-feira (26/7), Alberto Dines abriu o programa do Observatório de Imprensa na TV com um comentário que colocou em contexto histórico o ato aparentemente desvairado de Anders Behring Breivik:

“O monstro de Oslo certamente agiu sozinho, mas ele não estava nem está sozinho. Breivik faz parte de uma legião mundial de extrema-direita que não nasceu agora, começou nos anos 20 do século passado e levou a humanidade à mais sangrenta guerra de todos os tempos. A ideologia de Breivik só difere do nazifascismo no acréscimo do ingrediente religioso. De resto, nada a diferencia do rancor hitlerista e fascista. Sua xenofobia é gêmea do Tea Party americano. O antissocialismo que levou Breivik a atacar a sede do governo e massacrar 68 jovens conterrâneos num acampamento de verão é o mesmo que leva a direita americana a travar o orçamento do país com o pretexto de que Barack Obama é socialista. A pacífica Noruega foi invadida em 1940 pelas tropas de Hitler, que lá instalaram um ditador local, chamado Quisling, cujo nome tornou-se sinônimo de colaborador do nazismo. A Segunda Guerra Mundial ainda não acabou.”

Os suspeitos habituais

A Época evitou a imagem de uma Noruega isenta de riscos, mas os atribuiu exclusivamente à hostilidade de fundamentalistas islâmicos devido à participação do país no contingente da Otan que combate o Talibã no Afeganistão e à reprodução, em jornais noruegueses, de charges dinamarquesas que, em 2005, provocaram a ira de religiosos muçulmanos.

No fim da reportagem, mencionou a hipótese de o ataque ter sido promovido pela extrema direita norueguesa, dada a nacionalidade do atirador preso, mas isso não abalou o tom geral do texto, encimado por um subtítulo onde se lia: “Um duplo atentado à [sic] bomba e a tiros, endereçado ao governo norueguês, lembra o Ocidente de que o sinistro legado de Osama bin Laden continua à espreita”.

Presente desenraizado?

Veja esperou para dar as informações corretas, embora não tenha deixado de mencionar a hipótese de uma ação de fundamentalistas islâmicos. O que não saiu a contento foi o cenário norueguês. O clichê usado na capa da revista, “Terror no país da paz”, patenteia granítica ignorância histórica.

Por sinal, a reportagem afirma, logo no início, para criar um mote com o qual “amarra” o texto no final, que Alfred Nobel, antes de morrer, em 1896, estabeleceu que a entrega do prêmio que leva seu nome seria feita na Noruega, porque ela era “um país sem apego ao militarismo e dirigido por uma elite tolerante”.

Ocorre que em 1896 a Noruega não era um país, mas parte da Suécia (desde 1814, após uma dominação pela Dinamarca que remontava a meados do século 16). Tornar-se-ia independente em 1905 e, num plebiscito, escolheria como rei um príncipe dinamarquês. O regime é desde então essencialmente democrático, em molde parlamentarista.

O colaborador norueguês

A Noruega independente é um país pacífico, que ficou fora da Primeira Guerra Mundial e teria repetido essa escolha na Segunda se não tivesse sido invadida por Hitler. A Alemanha importava da Suécia o ferro que era escoado pelo porto norueguês de Narvik e daí pelo Mar do Norte. Hitler adiantou-se aos britânicos, que teriam invadido o país para cortar esse fluxo. O exército da Noruega resistiu dois meses aos alemães até capitular, tempo suficiente para a família real e o governo buscarem refúgio.

Forças antinazistas norueguesas impuseram ao invasor uma resistência nada desprezível, que, juntamente com a possibilidade de ataque dos Aliados, obrigou Hitler a manter no país 300 mil soldados que teriam sido preciosos em outras frentes de batalha.

O Quisling mencionado por Dines no programa de TV, Vidkun Quisling (sobrenome aportuguesado como quisling, sinônimo de quinta-coluna), foi primeiro-ministro entre 1942 e 1945, sob a égide de um “comissário civil” alemão, o nazista Josef Terboven. Das fotos que ilustram este texto (publicadas na Coleção 70º Aniversário da II Guerra Mundial, 1939-1945, vol. 4), uma mostra Quisling durante uma visita a Berlim e outra é de seu julgamento.

Por vontade própria

O que importa aqui não é a narrativa histórica, mas sinalizar para o leitor a força que teve e tem na Noruega, como na Europa inteira, nos Estados Unidos e alhures, a extrema-direita racista, antissemita, xenófoba.

Quisling era um homem da elite norueguesa, filho de conhecido pastor luterano. Foi ministro da Guerra entre 1931 e 1933. Depois, fundou o Nasjonal Samling, agremiação nacionalista que acabaria transformada em partido nazista, com escassos votos (2% nas eleições de 1935), embora tenha chegado a 45 mil filiados sob a ocupação hitlerista. Logo após o desembarque alemão, em abril de 1940, tentou sem êxito formar um governo pró-nazista. Não foi aceito. Só em 1942 conseguiu tornar-se primeiro-ministro.

Essas informações servem para sublinhar que Quisling não foi um colaborador “forçado”, ou alguém que se deixou cooptar em nome do “mal menor”. Era nazista convicto. Uma parte da intelectualidade norueguesa simpatizava com o nazismo – como, de resto, acontecia em todos os países.

O caso mais notório foi o do escritor Knut Hamsun, autor do celebrado romance A Fome e Prêmio Nobel de Literatura em 1920. O cartaz de propaganda nazista reproduzido abaixo mostra a expectativa de entendimento entre nazistas e noruegueses “contra o bolchevismo”.

Punição radical

Quisling, acusado de corrupção, assassinatos e traição, foi julgado, condenado e executado em outubro de 1945. Segundo Tony Judt (Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945), na Noruega todos os integrantes do Nasjonal Samling (ele dá o número de 55 mil) foram julgados, “além de outros 40 mil indivíduos; 17 mil homens e mulheres receberam penas de detenção e trinta sentenças de morte foram expedidas, das quais 25 levadas a cabo. Em nenhum outro local as proporções [de punição a colaboracionistas pró-nazistas] foram tão elevadas”.

Segundo algumas interpretações, penas punições adotadas podiam ser classificadas como retaliações. Esse rigor era tanto antinazista como anti-alemão. Não funcionou para “sepultar” o radicalismo de direita, como se deu a entender depois da guerra (minha geração cresceu com essa ideia na cabeça, até que, no Brasil, a ditadura militar, com suas indisfarçáveis inclinações fascistas, enterrou ilusões).

Teimosa erva daninha

Giogio Almiranti fundou o Movimento Social Italiano, sucessor do Partido Nacional Fascista, em 1946. Franco, o ditador espanhol, governou de 1939 até morrer, em 1975. O ditador Antônio de Oliveira Salazar morreu em 1970, mas só em 1974 Portugal se viu livre do regime por ele instaurado em 1933.

Em 1999, a revista The Economist publicou um artigo cujo título é expressivo: “Fascismo ressurgente?”. O motivo imediato era a ascensão, na Áustria – país que teve proporcionalmente o maior número de nazistas, mas não os puniu em escala comparável à da Noruega e mesmo às de outros países ocupados por Hitler −, de Jörg Haider e seu Partido da Liberdade. Haider, que morreu num acidente automobilístico em 2008, propagandeava sua admiração por algumas políticas de Hitler.

Em relação à Noruega, a The Economist assinalava o crescimento do Partido do Progresso, de Carl Hagen (cerca de 15% dos votos nas eleições daquele ano; hoje, é o segundo partido no Parlamento, com 41 cadeiras), mas não o considerava uma ameaça à democracia escandinava, “menos ainda um herdeiro da depravação de Vidkun Quisling”. Entre as características do Partido do Progresso, a revista apontava o empenho em “espremer o estado de bem-estar social” e “um sopro de agressividade anti-imigrantes”.

Armas da direita

Com o terrorista Breivik o sopro virou vendaval, voltado contra noruegueses que seriam complacentes. O Christian Science Monitor disse na quinta-feira (28/7) que a oposição ao multiculturalismo e os sentimentos anti-imigrantes são “supreendentemente comuns” na Noruega.

Breivik não é louco. Ele aparentemente agiu sozinho, mas, como constatou Dines, não estava nem está sozinho. Com raríssimas exceções, atentados de direita de grandes proporções ou intensa repercussão política produziram recuos da democracia nas últimas décadas.

Isso aconteceu, por exemplo, na Itália (1976, assassinato de Aldo Moro; os autores se imaginavam de esquerda radical; 1980, atentado de Bolonha) e nos Estados Unidos (1995, bomba de Oklahoma, detonada por um simpatizante da milícia, governo Clinton; 2001, Torres Gêmeas e Pentágono, governo G.W. Bush).

Teria acontecido no Brasil em 1981, truncando a reconquista democrática, se a bomba destinada ao Riocentro não tivesse explodido no colo do sargento que a portava.

A Segunda Guerra Mundial derrotou Mussolini e Hitler, mas não o fascismo, que brota e rebrota indiferente ao grau de severidade com que seus praticantes tenham sido punidos após a vitória aliada.

As revistas que noticiaram o terror em Oslo informaram, na edição do mesmo fim de semana, que a prefeitura de Wunsiedel, sul da Alemanha, decidiu destruir o túmulo do segundo homem na hierarquia nazista, Rudolf Hess, exumar seus ossos, cremá-los e jogar suas cinzas no mar, para acabar com a peregrinação de neonazistas ao cemitério onde ele estava enterrado havia quase 25 anos.

A consciência dessa desafiadora realidade está um pouco distante das redações brasileiras.

GT dá largada para a política de integração binacional


O secretário de Estado da Educação, Prof. Dr. Jose Clovis de Azevedo, enfatizou a acolhida que a Secretaria, professores brasileiros e uruguaios receberam da reitora da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Maria Beatriz Luce. “A possibilidade do diálogo entre nossas nações e instituições é importante para que continuemos construindo uma sociedade mais equilibrada”, salientou, destacando a importância da Mesa de Fronteira que debate temas relacionados à integração de políticas para a educação tendo como foco a integração binacional e do Mercosul. “Vivemos hoje um simbolismo muito grande, porque essa é uma necessidade de toda a nossa fronteira: virarmos de frente para nossos irmãos latino-americanos, integrarmos a ação de governos, com participação de universidades e escolas para atender às necessidades de nossos jovens, no Brasil e no Uruguai, em relação a uma educação de qualidade com cidadania”, enfatizou. Azevedo também falou à plateia de aproximadamente 400 professores que é possível avançar nas políticas de integração; para isso, é preciso iniciar esse processo.

Tarson Nunez destacou a importância que a integração binacional tem no governo Tarso Genro e o papel da Educação. “Nesse sentido a educação tem um papel fundamental, de produção e difusão de conhecimento; em regiões de fronteira isso significa políticas de integração”, salientou o Assessor para Relações Internacionais do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, exemplificando que entre as proposições estão a integração de gestores, o ensino das línguas portuguesa e espanhola nos dois países nas redes públicas de educação e a convergência de conteúdos de estudo. “Também no Uruguai, se discute qual a educação mais adequada para um projeto de desenvolvimento no Século XXI”, frisou.

A diretora-adjunta do Departamento Pedagógico da Seduc, Vera Regina Amaro, participou da mesa de fronteira para socializar políticas voltadas ao ensino da língua espanhola na rede estadual de ensino. Vera explicou que desde 2005 o Rio Grande do Sul trabalha para implementar a língua espanhola nas escolas, atendendo à lei 11.161, que torna obrigatório o ensino nas escolas de Ensino Médio brasileiras, facultando aos alunos a escolha. A região da Fronteira Oeste, no âmbito da 19ª  Coordenadoria Regional de Educação (Santana do Livramento), 27 escolas de Ensino Fundamental e 21 de Ensino Médio contam com o ensino do espanhol nas bases curriculares, nos municípios de Quaraí, Santana do Livramento, São Gabriel, Rosário do Sul e Santa Margarida do Sul. Nas quatro Coordenadorias (Bagé, Pelotas, Livramento e Uruguaiana), o número chega a 113 escolas de ensino médio.

Além disso, a diretora-adjunta do DP abordou temas como formação de professores – 40 deles nesta semana estão em curso de espanhol em Porto Alegre – e boas práticas envolvendo o ensino da língua, como a desenvolvida pelo professor Noelci Cunha, da Escola de ensino Médio José Antonio Flores da Cunha, de Livramento, que utiliza português e espanhol na alfabetização. “No entanto, temos clareza que para atingir as referências apontadas pelo Ministério da Educação de constituição de escolas bilíngues nas regiões de fronteira ainda temos um longo caminho a percorrer”, frisou Vera Amaro, destacando que o momento pode significar o início de parcerias conjuntas que não se restringem ao ensino do espanhol e português em escolas brasileiras e uruguaias, mas podem se concretizar por meio de intercâmbio de professores e alunos, formação de docentes, sistemáticas de trabalho e planejamento conjunto, entre outras.

O diretor do Departamento de Articulação com os municípios da Seduc, Glauber Lima, fez uma análise sobre a política de integração entre Brasil e Uruguai. Ele lembrou o anúncio do secretário Azevedo, que chega a R$ 1milhão para a região Fronteira Oeste. “Isso demonstra o compromisso da Secretaria com a Educação de qualidade social, com as melhores perspectivas”, declarou. Sobre a parceria, ele garantiu que o governo está apostando nesta política. “Estamos construindo um Grupo de Trabalho, que será composto por 12 integrantes do Brasil e Uruguai. Temos convicção de que faremos um ótimo trabalho de integração binacional”.

O superintendente da SUEPRO – Superintendência da Educação Profissional da Seduc, Pedro Maboni apresentou o Programa de Qualificação e Ampliação da Oferta de Educação Profissional e Tecnológica. De acordo com ele, o objetivo é formular e implementar a política pública para a Educação Profissional e Tecnológica, fomentando sua expansão e garantindo a qualificação do acesso e permanência do aluno através de políticas públicas integradoras que assegurem as modalidades de Educação Profissional ofertadas pelo Estado. “A educação profissional é propulsora indutora da promoção humana nos processos de interação socioeconômica nas diferentes comunidades e regiões de nosso Estado”.

A Educação Profissional no Estado constitui-se em uma rede composta por 151 escolas e um contingente de, aproximadamente, 30 mil alunos em 107 municípios.

A Secretaria da Educação pretende ampliar o número de professores com capacitação em projetos; ofertar capacitação para gestores em Educação Profissional, ofertar cursos de formação pedagógica e potencializar parcerias com instituições para habilitação de profissionais da área técnica em docência. Também tem trabalhado para adequar os cursos às necessidades locais e regionais, de acordo com os Arranjos Produtivos Locais (APLs), estabelecendo parcerias com os setores de produção, obtendo incentivos financeiros para o desenvolvimento da pesquisa em Educação Profissional. Outro eixo de atuação diz respeito à implantação gradativa de Institutos Estaduais de Educação Profissional que atuem com irradiadores do conhecimento tecnológico e profissional em parceria com o governo federal, apoiando a oferta de educação profissional desenvolvida em cada escola das Coordenadorias Regionais da Educação.

Maboni também informou as ações para implantação do Currículo Integrado na rede de Educação Profissional, reduzindo a fragmentação curricular e contemplando a formação humana integral. 
 
Fonte: SEDUC

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Caí no Mundo e não sei como voltar


Eduardo Galeano por email do camarada Nei Senna

O que acontece comigo é que não consigo andar pelo mundo pegando coisas e trocando-as pelo modelo seguinte só por que alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco…

Não faz muito, com minha mulher, lavávamos as fraldas dos filhos, pendurávamos na corda junto com outras roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para que voltassem a serem sujadas.
E eles, nossos nenês, apenas cresceram e tiveram seus próprios filhos se encarregaram de atirar tudo fora, incluindo as fraldas. Se entregaram, inescrupulosamente, às descartáveis!

Sim, já sei. À nossa geração sempre foi difícil jogar fora. Nemos defeituosos conseguíamos descartar! E, assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço de tecido, de bolso.
Nããão! Eu não digo que isto era melhor. O que digo é que, em algum momento, me distraí, caí do mundo e, agora, não sei por onde se volta.

O mais provável é que o de agora esteja bem, isto não discuto. O que acontece é que não consigo trocar os instrumentos musicais uma vez por ano, o celular a cada três meses ou o monitor do computador por todas as novidades.
Guardo os copos descartáveis! Lavo as luvas de látex que eram para usar uma só vez.

Os talheres de plástico convivem com os de aço inoxidável na gaveta dos talheres! É que venho de um tempo em que as coisas eram compradas para toda a vida!

É mais! Se compravam para a vida dos que vinham depois! A gente herdava relógios de parede, jogos de copas, vasilhas e até bacias de louça.
E acontece que em nosso, nem tão longo matrimônio, tivemos mais cozinhas do que as que haviam em todo o bairro em minha infância, e trocamos de refrigerador três vezes.

Nos estão incomodando! Eu descobri! Fazem de propósito! Tudo se lasca, se gasta, se oxida, se quebra ou se consome em pouco tempo para que possamos trocar.
Nada se arruma. O obsoleto é de fábrica.
Aonde estão os sapateiros fazendo meia-solas dos tênis Nike? Alguém viu algum colchoeiro encordoando colchões, casa por casa? Quem arruma as facas elétricas? o afiador ou o eletricista? Haverá teflon para os funileiros ou assentos de aviões para ostalabarteiros?

Tudo se joga fora, tudo se descarta e, entretanto, produzimos mais e mais e mais lixo. Outro dia, li que se produziu mais lixo nos últimos 40 anos que em toda a história da humanidade.

Quem tem menos de 30 anos não vai acreditar: quando eu era pequeno, pela minha casa não passava o caminhão que recolhe o lixo! Eu juro! E tenho menos de ... anos! Todos os descartáveis eram orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos coelhos (e não estou falando do século XVII). Não existia o plástico, nem o nylon. A borracha só víamos nas rodas dos autos e, as que não estavam rodando, as queimávamos na Festa de São João. Os poucos descartáveis que não eram comidos pelos animais, serviam de adubo ou se queimava..
Desse tempo venho eu.  E não que tenha sido melhor.... É que não é fácil para uma pobre pessoa, que educaram com "guarde e guarde que alguma vez pode servir para alguma coisa", mudar para o "compre e jogue fora que já vem um novo modelo".
Troca-se de carro a cada 3 anos, no máximo, por que, caso contrário, és um pobretão. Ainda que o carro que tenhas esteja em bom estado... E precisamos viver endividados, eternamente, para pagar o novo!!! Mas... por amor de Deus!
Minha cabeça não resiste tanto. Agora, meus parentes e os filhos de meus amigos não só trocam de celular uma vez por semana, como, além disto, trocam o número, o endereço eletrônico e, até, o endereço real.

E a mim que me prepararam para viver com o mesmo número, a mesma mulher e o mesmo nome (e vá que era um nome para trocar). Me educaram para guardar tudo. Tuuuudo! O que servia e o que não servia. Por que, algum dia, as coisas poderiam voltar a servir.

Acreditávamos em tudo. Sim, já sei, tivemos um grande problema: nunca nos explicaram que coisas poderiam servir e que coisas não. E no afã de guardar (por que éramos de acreditar), guardávamos até o umbigo de nosso primeiro filho, o dente do segundo, os cadernos do jardim de infância e não sei como não guardamos o primeiro cocô.

Como querem que entenda a essa gente que se descarta de seu celular a poucos meses de o comprar? Será que quando as coisas são conseguidas tão facilmente, não se valorizam e se tornam descartáveis com a mesma facilidade com que foram conseguidas?
Em casa tínhamos um móvel com quatro gavetas. A primeira gaveta era para as toalhas de mesa e os panos de prato, a segunda para os talheres e a terceira e a quarta para tudo oque não fosse toalha ou talheres. E guardávamos...

Como guardávamos!! Tuuuudo!!! Guardávamos as tampinhas dos refrescos!! Como, para quê?  Fazíamos limpadores de calçadas, para colocar diante da porta para tirar o barro. Dobradas e enganchadas numa corda, se tornavam cortinas para os bares. Ao fim das aulas, lhes tirávamos a cortiça, as martelávamos e as pregávamos em uma tabuinha para fazer instrumentos para a festa de fim de ano da escola.

Tuuudo guardávamos! Enquanto o mundo espremia o cérebro para inventar acendedores descartáveis ao término de seu tempo, inventávamos a recarga para acendedores descartáveis. E as Gillette até partidas ao meio se transformavam em apontadores por todo o tempo escolar. E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de sardinhas ou de corned-beef, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua chave.
E as pilhas! As pilhas das primeiras Spica passavam do congelador ao telhado da casa. Por que não sabíamos bem sese devia dar calor ou frio para que durassem um pouco mais. Não nos resignávamos que terminasse sua vida útil, não podíamos acreditar que algo vivesse menos que um jasmim. As coisas não eram descartáveis. Eram guardáveis.

Os jornais!!! Serviam para tudo: para servir de forro para as botas de borracha, para por no piso nos dias de chuva e por sobre todas as coisa para enrolar.

Às vezes sabíamos alguma notícia lendo o jornal tirado de um pedaço de carne!!! E guardávamos o papel de alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias de enfeites de natal, e as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os conta-gotas dos remédios para algum medicamento que não o trouxesse, e os fósforos usados por que podíamos acender uma boca de fogão (Volcán era a marca de um fogão que funcionava com gás de querosene) desde outra que estivesse acesa, e as caixas de sapatos se transformavam nos primeiros álbuns de fotos e os baralhos se reutilizavam, mesmo que faltasse alguma carta, com a inscrição a mão em um valete de espada que dizia "esta é um 4 de bastos".

As gavetas guardavam pedaços esquerdos de prendedores de roupa e o ganchinho de metal. Ao tempo esperavam somente pedaços direitos que esperavam a sua outra metade, para voltar outra vez a ser um prendedor completo.

Eu sei o que nos acontecia: nos custava muito declarar a morte de nossos objetos. Assim como hoje as novas gerações decidem matá-los tão-logo aparentem deixar de ser úteis, aqueles tempos eram de não se declarar nada morto: nem a Walt Disney!!!

E quando nos venderam sorvetes em copinhos, cuja tampa se convertia em base, e nos disseram: Comam o sorvete e depois joguem o copinho fora, nós dizíamos que sim, mas, imagina que a tirávamos fora!!! As colocávamos a viver na estante dos copos e das taças. As latas de ervilhas e de pêssegos se transformavam em vasos e até telefones. As primeiras garrafas de plástico se transformaram em enfeites de duvidosa beleza. As caixas de ovos se converteram em depósitos de aquarelas, as tampas de garrafões em cinzeiros, as primeiras latas de cerveja em porta-lápis e as cortiças esperaram encontrar-se com uma garrafa.

E me mordo para não fazer um paralelo entre os valores que se descartam e os que preservávamos. Ah!!! Não vou fazer!!!
Morro por dizer que hoje não só os eletrodomésticos são descartáveis; também o matrimônio e até a amizade são descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de comparar objetos com pessoas.

Me mordo para não falar da identidade que se vai perdendo, da memória coletiva que se vai descartando, do passado efêmero. Não vou fazer.
Não vou misturar os temas, não vou dizer que ao eternotornaram caduco e ao caduco fizeram eterno.
Não vou dizer que aos velhos se declara a morte apenas começam a falhar em suas funções, que aos cônjuges se trocam por modelos mais novos, que as pessoas a que lhes falta alguma função se discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com brilhos, com brilhantina no cabelo e glamour.

Esta só é uma crônica que fala de fraldas e de celulares. Do contrário, se misturariam as coisas, teria que pensar seriamente em entregar à bruxa, como parte do pagamento de uma senhora com menos quilômetros e alguma função nova. Mas, como sou lento para transitar este mundo da reposição e corro o risco de que a bruxa me ganhe a mão e seja eu o entregue...

Eduardo Galeano
* Jornalista e escritor uruguaio

Caingangue defende trabalho como camelô: “Não assaltamos bancos, como os brancos fazem”


"Muita coisa mudou e ainda vai mudar muito. Hoje tem índio vereador, índio motorista. Estamos pensando, para 2014, em ter um deputado” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Felipe Prestes no Sul21

Felipe da Silva encontrou na Praça da Alfândega e na Rua da Praia o seu sustento. Na mais tradicional via de Porto Alegre, vende bijuterias, lenços e outros badulaques – no inverno, se destacam os gorros e as luvas. Sentado em uma cadeira de praia, aguarda pacienciosamente os transeuntes, ou joga conversa fora com amigos que trabalham por ali. Com os clientes, é monossilábico. Limita-se a responder o que perguntam. Em outra cadeira, a esposa, Rosalina, maneja cipós com uma faca, produzindo pequenos artigos de decoração.
Felipe é líder de uma comunidade caingangue que reúne 35 famílias e cerca de 190 pessoas no bairro Lomba do Pinheiro, na periferia da capital gaúcha. Como ele e a esposa, mais de uma dezena de famílias caingangues vive do comércio de rua no centro da cidade. Nos finais de semana, eles rumam para o Brique da Redenção.
Rosalina faz artigos para decoração com cipó e intervém: "Os índios são os donos do Brasil" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Foi Felipe quem os aglutinou, há cerca de dez anos, em uma comunidade formada por caingangues de diferentes partes do Estado. “Os caingangues se conhecem. Eu fui chamando: ‘Quer morar comigo, meu primo? Quer morar comigo, meu irmão?’”. Felipe atualmente ocupa o posto de vice-cacique. Foi cacique durante bastante tempo, depois entregou o cargo para um de seus oito filhos, Claudir, mais conhecido como Preto. “Temos 23 casas de material, posto de saúde, escola estadual indígena”, gaba-se Felipe.
O vice-cacique veio do extremo norte do Rio Grande do Sul, região que os caingangues já habitavam desde os primeiros contatos com homens de origem europeia, onde ainda hoje vive a maioria deles, que são cerca de 30 mil em todo o sul do Brasil. Felipe nasceu há 63 anos em Tenente Portela e vivia em Nonoai quando decidiu se estabelecer de uma vez em Porto Alegre. Durante cerca de dez anos ele vinha sazonalmente à Capital como ainda fazem muitos caingangues. Na época de Páscoa, por exemplo, muitos dos que vivem em aldeias no norte do Estado viajam para grandes cidades para vender macela e artesanatos. Numa dessas visitas, há cerca de uma década, Felipe resolveu ficar.
“Aqui dá para tirar mais dinheiro”, ele explica. Nas aldeias, o trabalho com o plantio de feijão leva 90 dias para dar algum resultado, conta. Outra alternativa dos caingangues tem sido a criação de galinhas, mas os indígenas não costumam ter capital para que este negócio dê certo.
Lojistas e feirantes temem que indígenas como Felipe “ocupem toda a rua” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Muita coisa mudou e vai mudar mais”

Há quem não concorde com o trabalho dos caingangues no centro de Porto Alegre. Lojistas e integrantes de uma feira de artesanato na Rua da Praia temem que eles “ocupem toda a rua” e clamam por “igualdade”. Isso porque eles precisam regularizar seu trabalho, pagar impostos, mas os indígenas não. Também entendem que os indígenas só devem ter autorização para vender produtos feitos por eles, e não produtos industrializados. “Eles fugiram de suas características, são camelôs. O branco não pode botar uma banca para vender camelô. O índio pode”, diz o feirante Paulo. A prefeitura também tem se movimentado para que os indígenas trabalhem em outros locais que não as concorridas Praça da Alfândega, Rua da Praia e Brique da Redenção.
“Hoje, o índio está quase igual ao branco. Eu tenho que ter relógio para controlar o horário do ônibus, tenho que usar roupa de branco, porque não posso andar quase pelado no meio de vocês”, diz Felipe. Exatamente por este motivo defende que os caingangues não podem ficar apenas vendendo os artesanatos que produzem. “Muita coisa mudou e ainda vai mudar muito. Hoje tem índio vereador, índio motorista. Estamos pensando, para 2014, em ter um deputado”, diz.
O líder caingangue considera legal o trabalho que faz.“O índio trabalha legalmente. Não assalta bancos, como os brancos fazem”, diz. No comércio está justamente a opção, segundo Felipe, para que ele e seus companheiros tenham uma vida digna. “Leio o jornal todos os dias, sei das malandragens que existem. Não quero que a minha comunidade se envolva com maconha”, exemplifica. Quando diz que “a rua é pública”, Rosalina intervém. “Os índios são os donos do Brasil”.
Apesar da veemência com que defende seu trabalho, o próprio Felipe também fica ressabiado. Quando pedimos para tirar fotos, ele orienta que tiremos apenas dos produtos artesanais feitos por sua esposa, e por dois arcos e flecha que já estavam prontos.
"O índio trabalha legalmente. Não quero que a minha comunidade se envolva com maconha" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sérgio, um amigo, negro, que estava batendo papo com Felipe quando chegamos, observa que os artigos de artesanato indígena não sustentam uma família em Porto Alegre, porque o turismo é fraco. “Não há turismo em Porto Alegre, não tem como ficar apenas vendendo flechas. Se fosse no Nordeste, venderiam como água”, projeta. “No interior, os índios têm as terras deles. Na capital trabalham vendendo as coisas deles, mas precisam mais, não é suficiente”, defende.
Em pouco tempo, o comércio deve deixar de ser a única opção para os indígenas que optaram pela vida em uma grande cidade. A universidade já é uma realidade para alguns integrantes da comunidade caingangue da Lomba do Pinheiro. Um dos caingangues que trabalha no comércio de rua estuda enfermagem em uma universidade particular e espera que o trabalho na Rua da Praia seja apenas temporário. Um dos filhos de Felipe cursa Odontologia. Na escola indígena da comunidade, o vice-cacique conta que todos os profissionais são caingangues. “Só o diretor da escola é branco, porque ainda não temos ninguém capacitado”.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Avaliação do ensino não terá prêmios nem castigos, diz governo



Proposta de avaliação dos professores coloca Cpers e governo em embate | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Rachel Duarte no Sul21

O governo do Rio Grande do Sul pretende implantar, já no início do próximo ano, um novo sistema de avaliação do ensino público. A proposta, que será apresentada neste segundo semestre, desagrada ao Cpers, que não concorda em vincular questões quantitativas, como o resultado dos alunos, ao aumento salarial, além de ver riscos ao atual plano de carreira, que já pressupõe uma avaliação. Já o governo ressalta que o sistema a ser implantado não terá prêmios nem castigos.
“O governo fará mudanças na avaliação de mérito já existente no Estado e não irá implementar a meritocracia”, diz o secretário de Educação, José Clóvis Azevedo. Sem entrar em detalhes, Azevedo afirma que serão ampliados os itens de avaliação e serão construídos indicadores. “A pontuação é muito vaga hoje. Temos que fazer a diferenciação entre avaliação de mérito e meritocracia. Meritocracia envolve prêmios e castigos, não vamos andar nesta linha”, garante.
Os professores receberão pontos por cada curso de aperfeiçoamento que realizarem, enquanto o atual sistema restringe a apenas um certificado de formação. Não serão aplicadas provas como forma de ascensão dos professores no plano de carreira. “Os professores já estão concursados”, justifica o secretário.
Azevedo explica que o desempenho do professor em sala de aula será avaliado pelas comissões já existentes nas escolas, com a participação da comunidade escolar. “A criatividade dos professores para ensinar, a participação deles em projetos comunitários e as propostas para a escola serão avaliados”, exemplifica.
O governo ainda não definiu, mas a tendência é fazer um decreto para implantar o sistema no próximo semestre.

“Este governo está fora da lei”

O ato que vai reempossar a professora Rejane de Oliveira na presidência do Cpers, no próximo dia 19 de agosto, servirá de protesto da entidade contra “qualquer mudança no plano de carreira sem diálogo com a categoria e contra a meritocracia”. Segundo Rejane, o governo só muda o nome, mas a metodologia proposta segue a lógica mercantil.

Cpers critica avaliação quantitativa e que não respeite a realidade de cada escola | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

A presidente do Cpers critica a avaliação quantitativa, que aplica um mesmo método para toda a rede, sem respeitar a realidade de cada escola. “Um professor que atua na escola rural tem uma realidade. O que atua na escola urbana tem outra. E, muitas vezes, as condições estruturais não são as mesmas. Isso influencia no cotidiano do professor”, explica.
“Não é possível falar em qualidade sem falar em cumprir os 35% da receita líquida para investimentos em educação, previstos na Constituição Federal. E no cumprimento do piso nacional. Este governo está fora da lei”, critica a sindicalista. O Cpers defende a aplicação do piso nacional da categoria ao atual plano de carreira, sem a necessidade de pontuações para elevar os salários.
O Cpers usa como argumento um documento assinado pelo governo do Estado, após reunião com o sindicato. “Reafirmamos nossa posição contrária à meritocracia e ao modelo de avaliação efetivado por meio do SAERS (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Rio Grande do Sul), que já foi extinto. Não estabeleceremos a política de diferenciar salário a partir de verificação de resultados, nem vamos promover competição entre escolas e professores, o que só aprofundaria a desigualdade”, diz o texto.

A experiência de Canoas

Nesta semana, em almoço com jornalistas no Palácio Piratini, Tarso Genro disse que considera bom o modelo de avaliação implementado em Canoas, na região metropolitana, mas aplicado a um número restrito de professores, o que dificultaria a transposição para o plano estadual.
O modelo de Canoas foi discutido com sindicatos e a comunidade escolar. A categoria, no entanto, está descontente. “O prefeito se comprometeu em rever alguns pontos, mas até agora não alterou nada”, diz o presidente do Sindicato dos Professores de Canoas, Jari Rosa de Oliveira. No último dia 14, cerca de 300 professores protestaram em frente à prefeitura.
Bruno Alencastro/Sul21
"Temos que fazer a diferenciação entre avaliação de mérito e meritocracia. Meritocracia envolve prêmios e castigos, não vamos andar nesta linha”, diz secretário da Educação | Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Segundo Jari Oliveira, a principal queixa é quanto à gratificação pela Regência de Classe (domínio do professor em sala de aula). “Nós agregávamos 30% do salário. Agora foi criado um novo mérito: o Valor Pessoal Nominalmente Identificado (VPMI), onde acréscimos no salário ocorrem somente mediante qualificação na formação do professor”, explica. Outro fator é o controle das faltas por licença saúde. “Os professores que faltarem um dia perderão 30 pontos”, reclama o professor.

Avaliação por mérito e meritocracia

A coordenadora do Programa de Pós Graduação em Educação da Unisinos, Edla Eggert, considera positiva a polêmica, pois abre a possibilidade de que experiência de pesquisa cheguem ao conhecimento do poder público. “Teoria e prática precisam estar afinadas. Isso contribui com os governos para evitarem a lógica do ‘apagar incêndios’, já que os pesquisadores tem acúmulo”, defende.
Para a pesquisadora, a metodologia de avaliação do ensino deve respeitar a realidade de cada lugar. “Não adianta ver números para avaliar um processo que tem todo um caminho para a garantia da aprendizagem dos alunos. O produto final é apenas um dos aspectos para se aferir o ensino. Com elementos apenas quantitativos isso é ignorado. O simples olhar da régua é comprometedor”, alerta.
A professora lembra que avaliação não é algo novo e existem diversas experiências, como as realizadas pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), a instância máxima para avaliação da pesquisa cientifica no Brasil. “A avaliação feita por eles é muito consistente e o professor só recebe bolsa se tiver um projeto e defendê-lo. Então, já temos instrumentos de avaliação por mérito no Brasil. Não é algo novo”.
“Não podemos temer a avaliação que farão da gente. Temos uma cultura punitiva que vem da nossa tradição no Brasil, mas nem tudo que vem de cima é ruim. Temos que ter cuidado e se articular melhor”, diz a pesquisadora.
Edla Eggert  disse ainda que o Plano Nacional de Educação, em discussão no Congresso Nacional, prevê aspectos que vão ao encontro de melhorias da avaliação do ensino. “Apesar das emendas que foram acrescentadas e que não contemplam os professores, é uma importante bandeira para implementar as modificações e qualificações que os Estados também desejam”, afirma.

Colaborou Felipe Prestes.

Dilma mantém o "namorico" com a mídia

 André Barrocal, no sítio Carta Maior: via Blog do Miro

A presidenta Dilma Roussef concedeu, sexta-feira (22/07), entrevista a cinco grandes jornais brasileiros e deu recados importantes em política e economia. Disse que as trocas em cargos da área dos Transportes vão continuar e atingir quem for preciso. E que o crescimento não será sacrificado pela meta de inflação. Foram mensagens duras, dirigidas aos partidos e ao “mercado”.



Se tem endurecido com o Congresso e as finanças, que os veículos de comunicação presentes à conversa acham que tiveram boa vida no governo Lula, sobretudo no caso da classe política, Dilma tem procurado distensionar a relação com a grande imprensa, como mostra a própria entrevista.

Desde que assumiu, a presidenta faz gestos impensáveis para o antecessor, que dizia, sentindo-se orgulhoso, nunca ter tomado café, almoçado ou jantado com donos ou chefes dos grandes veículos em oito anos. Dilma tem recebido editores e colunistas no Palácio do Planalto e até na intimidade de sua residência oficial, o Palácio da Alvorada, para conversas informais, não apenas entrevistas.

Esteve na comemoração de 90 anos do jornal Folha de S. Paulo. Foi à sede da TV Globo participar de entrevista ao programa Ana Maria Braga e de almoço com dirigentes da emissora e membros da família Marinho. Agendara presença em evento do grupo O Estado de S. Paulo, no qual a agência do jornal entregaria prêmio a empresas. Na última hora, porém, antecipou viagem ao Paraguai, onde haveria reunião do Mercosul, e mandou o vice, Michel Temer, no lugar.

Nas palavras de um auxiliar, Dilma tenta estabelecer uma “relação mais madura” com a grande imprensa. E tem conseguido receber um tratamento mais respeitoso do que o antecessor. Segundo um repórter da sucursal brasiliense de um grande jornal, a presidenta inspira em seus chefes uma identificação que Lula não produzia, pois veio da classe média e gosta de ler, por exemplo. Contra ela, não há preconceito de classe.

Enquanto Dilma reformula a relação da Presidência com a grande imprensa, Lula briga. Em junho, ao participar do segundo encontro nacional de blogueiros progressistas, o ex-presidente acusou a grande imprensa de ser adepta do “pensamento único” e produzir “mentiras, má-fé e difamações” contra ele e seu governo.

Nos últimos dias, em discurso no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), atacou de novo. Disse que está “invocado” porque a imprensa não larga do pé dele e deu sua explicação para a má-vontade: “É que eu competia com o que eles falavam, e o povo acreditava em mim.”

Falta 'competição'

“Competir” com a imprensa foi a principal estratégia de comunicação do ex-presidente depois da guerra que enfrentara em 2005 e 2006 contra um noticiário carregado de “mensalão”. Em oito anos, Lula deu mil entrevistas, nas contas da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, sendo que quase 80% delas foram de 2007 em diante. No segundo mandato, ele falou com a imprensa dia sim, dia não, sempre “competindo” com o noticiário.

A frequência de entrevistas de Dilma assemelha-se ao Lula do primeiro mandato, mais ou menos uma por semana. Ao receber cinco jornais no Planalto sexta-feira (22/07), a presidenta totalizou 24 entrevistas no ano. Para um ministro, não é correto comparar o comportamento de Dilma com o Lula do segundo mandato. O certo seria a comparação com a primeira gestão, quando o ex-presidente também ainda estava se acostumando ao cargo, o que igualmente acontece com Dilma.

Como “compete” menos com o noticiário, Dilma produz uma certa angústia na Esplanada dos Ministérios em pessoas que gostariam de contar à sociedade o que estão fazendo e defender o governo. “O Lula dava a linha de todo o governo. A presidenta faz pouco isso e não deixa a gente fazer”, diz um secretário ministerial.

O símbolo do perigo que é expor-se no governo Dilma foi a demissão, logo em janeiro, do secretário Nacional de Justiça do ministério da Justiça Pedro Abramovay. Ele tinha dado uma entrevista opinando que pequenos traficantes de drogas não deveriam ser presos. Advogado que passara por cargos no governo Lula, Abramovay comportara-se como estava acostumado: falar e defender posições para abrir um debate no governo. Dilma ficou irritada, porque não gosta de ver expostos publicamente temas sobre os quais o governo ainda não tomou um decisão.

Demitido, Abramovay foi colaborar com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tem defendido a descriminalização da maconha, na criação de uma página na internet de debates, chamado Observador Político, inaugurado na última sexta-feira (22/07).

A saída dele foi pedagógica sobre a postura presidencial. Técnicos, secretários e até ministros têm medo de entrevistas, inclusive sem se identificar - em off, no jargão jornalístico. Ainda mais com uma presidenta que dá bastante atenção ao que é publicado, especialmente em jornais, tipo de mídia mais afeita a bastidores.

Dilma faz questão de ler minunciosamente, inclusive nos finais de semana, uma síntese das notícias mais importantes preparada por assessores - Lula recebia o mesmo resumo, mas preferia se guiar mais pelo relato verbal dos auxiliares. Quando encontra algo sobre o intestino do governo, irrita-se. Se a informação é “em off”, costuma pedir uma caça às bruxas, para saber quem foi. “Os vazadores oficiais estão na muda”, diz um assessor de um ministério.

É uma diferença de estilo importante. Com Lula, o governo, que já era heterogêneo e composto de forças políticas variadas, via setores diferentes usando a comunicação para influenciar a decisão final do presidente. Com Dilma, não. Até que ela decida, falar é um grande risco.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Os efeitos do jornalismo de esgoto


Um dos pontos centrais das políticas de direitos humanos é o chamado direito à privacidade. Desde que não afete a vida de terceiros nem desrespeite as leis, toda pessoa tem o direito à sua privacidade.
O caso Murdoch expôs uma das características mais repelentes do jornalismo-espetáculo e do jornalismo "partido político": a exposição da vida de pessoas, os ataques pessoais, os chamados assassinatos de reputação como ferramentas não apenas para aumento de audiência, mas como arma política.
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Ocorreu nas eleições de Barack Obama. Comentaristas da Fox News, acumpliciados com redes anônimas de internautas, espalhavam que Obama não teria nascido nos Estados Unidos, que seria muçulmano, uma liderança infiltrada na política norte-americana visando destruir o país.
Esse mesmo modelo foi utilizado na campanha eleitoral do ano passado. Em qualquer escola de São Paulo, crianças eram contaminadas pela versão de que a candidata Dilma Rousseff "assassinou pessoas", que seria a favor do aborto. Ao mesmo tempo, havia ataques destemperados contra nordestinos. Na outra ponta, o preconceito contra qualquer pessoa que pertencesse à classe média para cima.
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A intolerância global foi particularmente feroz contra muçulmanos e árabes em geral, especialmente após o episódio terrorista que derrubou as Torres Gêmeas. Proliferaram sites e analistas preconizando o fim da civilização ocidental, com a invasão da Europa pelos muçulmanos.
Na França, proibiu-se o uso da burka. Diferenças culturais foram apontadas como desvios morais. Em um mundo cada vez mais globalizado, e enfrentando o fantasma da crise econômica, essa pregação espalhou-se como um rastilho, especialmente pelos países europeus. Da mesma maneira que a intolerância que se seguiu ao crack de 1929 da Bolsa de Nova York.
Por aqui, a pregação limitou-se ao chamado Foro de São Paulo - que, segundo alguns alucinados, visaria tomada do poder na América Latina pelos esquerdistas.
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O massacre de Oslo foi conseqüência direta de um clima de intolerância que teve em Murdoch o ponto central de disseminação, o exemplo no qual se espelharam grupos de mídia pelo mundo afora. Esse movimento foi facilitado pela ampliação da Internet, com o caos inicial que marca a entrada de novas mídias - especialmente uma descentralizada e onde é possível a prática dos ataques anônimos.
Nesse ambiente, houve o oportunismo de muitos comentaristas de mídia, explorando a intolerância que se manifestava na classe média - acossada, de um lado, pela tributação pesada, de outro, pela ascensão das novas massas consumidoras.
Abriu-se espaço para um modismo repelente, o "politicamente incorreto", que tornou de bom tom zombar das minorias, dos defeitos físicos, da feiura.
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O episódio Murdoch-Oslo deve servir de reflexão não apenas na Inglaterra, mas sobre a comunicação de massa em geral, sobre o respeito às diferenças, sobre os direitos individuais, sobre a responsabilidade na hora de se atacar pessoas ou grupos.
El Pais chamou a esse jornalismo de Murdoch de "cloaca". Por aqui, tornou-se comum a expressão "jornalismo de esgoto" para definir esse estilo.