quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Turquia, na vanguarda da Primavera Árabe


Pepe Escobar, Asia Times Online, Tradução: Vila Vudu

Finalmente. Cristalinamente claro. Alguém, afinal, disse o que todo mundo – exceto Washington e Telavive – sabe no fundo do coração coletivo mundial: o reconhecimento de um estado palestino “não é escolha, é obrigação”.
E foi prodigioso que o homem que o disse tenha sido o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, no Cairo, para a Liga Árabe, à frente de todos os ministros árabes de Relações Exteriores, com virtualmente todo o mundo árabe de olhos colados às telas de televisão conectadas por satélite, e cada palavra de Erdogan sob cerrado escrutínio.
O atual tour de Erdogan pela Primavera Árabe – como noticiou a imprensa turca – passando por Egito, Tunísia e Líbia, já o havia catapultado ao status de equivalente geopolítico de cruza de Bono, do U2, com o argentino Lionel Messi, superstar da equipe de futebol do Barcelona.
Erdogan teve recepção de estrela do futebol/rock no aeroporto do Cairo – completada com faixas e “Erdogan Herói” brandidas pela Fraternidade Muçulmana. Até falou em árabe à multidão (de “Saúdo a juventude e o povo do Egito. Como vão vocês?” até “Que a paz esteja com vocês”).
Erdogan repetiu várias vezes que “Egito e Turquia andam de mãos dadas”. Mas o subtexto foi ainda mais incendiário. No momento em que dois bons ex-amigos de Israel, Egito e Turquia andam de mãos dadas, Israel foi deixada isolada, de cara para um muro. Não poderia haver desenvolvimento mais radicalmente redemarcador em todo o Levante – coisa que jamais se viu desde os acordos de paz de Camp David, entre Israel e o Egito, em 1978.
Divulgador militante modelo
O tour de Erdogan é lição magistral de realpolitik. Está posicionando a Turquia como vanguarda do apoio à causa dos palestinos. Também está posicionando a Turquia no núcleo duro da Primavera Árabe – como apoiador e modelo inspiracional, apesar de, até agora, ainda não ter havido revolução às veras. Está enfatizando uma sólida unidade turco-árabe – planejando, por exemplo, um conselho de cooperação estratégica entre Egito e Turquia.
Além do mais, a coisa toda faz bom sentido em termos de business. A caravana de Erdogan inclui seis ministros e quase 200 empresários turcos – interessados em investir pesadamente em todo o norte da África. No Egito, talvez não igualem os bilhões de dólares já prometidos pela Casa de Saud à junta militar liderada pelo marechal-do-ar Mohammed Tantawi. Mas em 2010, o comércio turco com o Oriente Médio e Norte da África já era de quase $30 bilhões, 27% das exportações da Turquia. Mais de 250 empresas turcas já investiram $1,5 bilhão no Egito.
Crucialmente importante, Erdogan disse ao canal Dream da televisão egípcia: “Não desconfiem do secularismo. Espero que haja estado secular no Egito.” Erdogan referia-se sutilmente à constituição secular da Turquia; ao mesmo tempo, cuidadosamente, lembrava aos egípcios que o secularismo é compatível com o Islã.
O atual modelo turco é enormemente popular na rua egípcia, com partido islâmico moderado no poder (o partido Justiça e Desenvolvimento, AKP); constituição secular; militares – embora fortes – na caserna; e florescente boom econômico (a Turquia foi a economia que mais cresceu, em todo o mundo, no primeiro semestre de 2001).[1]
Esse modelo não é exatamente o que deseja a reacionária Casa de Saud. Prefeririam governo pesadamente islâmico controlado pelas facções mais conservadoras da Fraternidade Muçulmana. Pior: no que tenha a ver com a Líbia, a Casa de Saud adoraria ter lá um emirado amigo, ou, pelo menos, governo salpicado com islâmicos fundamentalistas.
Erdogan também destacou que a “agressividade” de Israel “é ameaça ao futuro do povo israelense”. É música aos ouvidos da rua árabe. O presidente palestino Mahmoud Abbas encontrou-se com Erdogan no Cairo – e confirmou que levará adiante o pedido para que a Palestina seja reconhecida como estado pelo Conselho de Segurança da ONU ainda nesse mês de setembro.
A Palestina será definitivamente aceita como estado membro sem direito a voto pelo plenário da Assembleia Geral da ONU. O problema é o Conselho de Segurança extremamente não representativo – ao qual compete sancionar o direito dos membros plenos, que votam. Claro que Washington vetará. A União Europeia fraturada, fiel ao próprio caráter, ainda não decidiu se votará como bloco. Há forte possibilidade de que Grã-Bretanha e França também vetem o pedido dos palestinos ao Conselho de Segurança.
Mas mesmo que só alcancem o prêmio de consolação de tornar-se estado membro sem voto, ainda assim os palestinos alcançarão uma vitória moral – alinhada com o que deseja a opinião pública mundial. Como estado membro, e mesmo sem o direito a voto, a Palestina poderá tornar-se estado membro da Corte Criminal Internacional, indispensável para processar Israel até o Juízo Final, por violação serial da legislação internacional.
Seguir o chefe
O jogo da Turquia vai muito além de algum ‘neo-otomanismo’ – ou nostalgia de reviver dias de superpotência dos séculos 16 e 17. É desenvolvimento natural da política de “zero problemas com nossos vizinhos” do ministro Ahmet Davutoglu das Relações Exteriores – que se move para criar vínculos mais profundos com a maioria desses vizinhos e consolidar o que o próprio Davutoglu define como destino estratégico da Turquia[2].
A Turquia, há alguns anos, abandonou decididamente uma deriva isolacionista do nacionalismo turco. O país parece ter afinal superado o trauma associado ao sonho de unir-se à União Europeia; para todas as finalidades práticas, o sonho foi destruído por França e Alemanha.
Quanto à aliança Israel-Turquia, de fato afastou o mundo árabe e confinou a Turquia a um papel passivo, de marginal sem qualquer ação efetiva no Oriente Médio. Já não é assim. Erdogan pode agora enviar várias mensagens simultâneas a Israel, EUA, União Europeia, a um sortido de líderes árabes e, sobretudo, diretamente à rua árabe.
Davutoglu tem sido relativamente magnânimo em relação a Israel, dizendo que “está sem contato com a região e incapaz de ver as mudanças que estão acontecendo, o que impossibilita que [Israel] mantenha relações saudáveis com os vizinhos”.
Poderia ter acrescentado que com ‘amigos’ como aqueles – Benjamin Netanyahu, como primeiro-ministro; o ex-leão-de-chácara na Moldávia Avigdor Lieberman como ministro de Relações Exteriores; colonos judeus fanáticos ditando políticas – Israel não precisa de inimigos ou, então, que produz inimigos em massa. Foi o próprio governo de Israel que acelerou a aproximação entre Turquia e Egito – o que está deixando Israel totalmente isolada.
O toque de gênio de todo o processo é que Erdogan representa uma democracia em país de maioria muçulmana, fortemente apoiado tanto pelos palestinos quando pelos verdadeiramente pró-democracia na Primavera Árabe. Assim se gera uma conexão direta entre a tragédia dos palestinos e o espírito da Primavera Árabe (que nada tem a ver, vale destacar, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, bombardear a Líbia, ou com uma junta militar governar o Egito).
Será crucialmente decisivo observar o que acontecerá com o partido AKP, de raízes islâmicas, de Erdogan. É praticamente certo que, nas próximas eleições no Egito, a Fraternidade Muçulmana aparecerá jabeando. É também praticamente certo que a Fraternidade pressionará na direção de relacionamento minimalista com Israel, inclusive com revisão completa dos acordos de Camp David. Teoricamente, a Turquia apoiará tudo isso.
E há ainda o front líbio. No primeiro discurso em Trípoli, o presidente do sinistro Conselho Nacional de Transição, Mustafa Abdel Jailil, destacou que a lei islâmica, Xaria, seria a principal fonte da legislação. Mas acrescentou, rápido: “Não aceitaremos nenhuma ideologia extremista, à esquerda ou à direita. Somos povo muçulmano, por um Islã moderado.”
Não há qualquer sinal ainda, sequer, de que o Conselho de Transição consiga manter a integridade do país, para nem falar de ter condições para promover “Islã moderado”. Os abutres (estrangeiros) continuam rondando. O secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, andou avisando que a Líbia corre o risco de cair em mãos de extremistas islâmicos, que podem “tentar explorar” o atual vácuo de poder. Não se sabe com clareza que papel terá a Turquia – membro chave da OTAN – numa OTAN plenamente implantada na Líbia.
Dores heavy metal do parto
E tudo isso, enquanto as petromonarquias do Golfo Persa – horrorizada com a Primavera Árabe – propuseram ajuda direta anual de $2 bilhões à Jordânia, que assim se integraria ao Conselho de Cooperação do Golfo, também conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo. Como clube monarquista, o CCG quer a Jordânia e o Marrocos como novos membros. Mas a cereja do bolo seria, isso sim, uma Líbia monárquica.
Em trilha paralela, os contrarrevolucionários foram forçados pela Turquia a garantir – pelo menos verbalmente, apoio à Palestina. Até o rei Abdullah da Jordânia, sólido aliado dos EUA e único “amigo” de Israel que sobrou no Oriente Médio, já disse que “os futuros palestinos são mais fortes que Israel é hoje”.
Ora, Israel procurou por isso – depois da invasão do Líbano em 2006, do massacre de Gaza, em 2008 e do ataque à flotilha turca em 2010. Em termos de opinião púbica, Israel está frita – e até a contrarrevolução árabe teve de perceber.
Inclui-se aí a Casa de Saud. Ninguém menos que o ex-supremo da inteligência saudita, o príncipe Turki al-Faisal, publicou coluna no New York Times em que diz claramente, “líderes sauditas serão forçadas por pressões domésticas e regionais a adotar política exterior muito mais independente e assertiva”[3] se os EUA vetarem o pedido dos palestinos no Conselho de Segurança.
O príncipe Turki também destacou que tudo deve evoluir em torno de uma solução de dois estados baseado nas fronteiras de antes de 1967 – o que todos os grãos de areia do Sinai sabem que Israel jamais aceitará.
No caso de os EUA vetarem, o príncipe Turki ameaçou que a Arábia Saudita “fará oposição ao governo do primeiro-ministro Nuri al-Maliki no Iraque” e “se separará de Washington no Afeganistão e também no Iêmen”.
Imaginem, então, a Casa de Saud financiando prodigamente uma dupla guerra de guerrilhas por todo o “arco de instabilidade” do Pentágono – sunitas contra xiitas no Iraque, mais os já super hiper turbinados Talibã no Afeganistão –, ao mesmo tempo em que fazem lobby a favor de governos islâmicos no Egito e na Turquia; e, isso, enquanto Egito e Turquia, por sua vez, unem-se plenamente contra uma isolada e furiosa Israel. É. São essas as tais “dores do parto do novo Oriente Médio”.
NOTAS
           [1] “Robust private sector gives Turkey fastest H1 growth worldwide” Zaman, 12/9/201.
[2] Ver “Turkey: the sultans of swing”, Pepe Escobar, 7/4/2011, Asia Times Online, em inglês, e “Fazer andar outra vez o fluxo da história”, Ahmet Davutoglu, Al-Jazeera, 16/3/2011, em portuguê [NTs]

[3] 12/9/2011, New York Time.

‘Chutamos a bunda dos policiais!’


Estudantes impediram a entrada da PF na Unicamp. Foto: Divulgação

Uma operação da Polícia Federal foi frustrada hoje por um cordão de estudantes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que impediu a entrada dos agentes. Segundo estudantes, a PF entrou no campus à paisana e sem mandado judical para levar equipamentos de uma rádio comunitária organizada por alunos. A Rádio Muda, alvo da operação, é um dos principais meios de comunicação usados pela comunidade acadêmica na Unicamp, segundo Carolina Filho, estudante de Ciências Sociais e coordenadora do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade.
A operação ocorreu às 11h30 da quinta-feira 15. Segundo a estudante, não foi a primeira vez que a polícia tenta fechar a rádio, que não é oficializada. “Para os estudantes, é sempre mal vista a entrada da polícia no campus”, diz Carolina. Como o episódio já havia acontecido outras vezes, os alunos já estavam em alerta quanto a possíveis abordagens de policiais à paisana – provavelmente com intenção de sondar o ambiente.

Quando perceberam a aproximação, alunos da rádio se uniram para impedir a passagem. Estudantes que passavam pelo local se uniram, formando um aglomerado de cerca de 30 pessoas. Os policiais foram embora, mas indicaram que retornariam com o mandado.
Banner da Rádio Muda, organizada por estudantes da Unicamp. Foto: Divulgação

A Rádio Muda existe há mais de 10 anos e foi criada pelos próprios estudantes. Atualmente, conta com mais de 200 programadores, que tocam uma programação de hip-hop, MPB, reggae, rock, heavy metal, samba, hard-core e noise e falam sobre “futebol, esperanto e movimentos sociais” , segundo o site da instituição. Surgiu a partir de uma iniciativa de estudantes da Física e Engenharia Elétrica em 1994 e desde 1999 sua transmissão atinge diversos bairros da zona Norte de Campinas.
Ilustração de Larte para rádio Muda

No site da emissora, há relato de operações anteriores, em que equipamentos foram levados. Sobre o episódio desta quinta-feira, postaram: “Chutamos a bunda dos policiais!” e “Rádio Muda 4 X 1 PF+Anatel”. A rádio divulga também uma campanhas contra os grandes conglomerados da comunicação e pela democratização da radiodifusão. Conhecidas por muitos como rádio piratas, a Muda autodenomina-se como rádio livre. Segundo eles, não permitir funcionamento do veículo vai contra o artigo  5 da Constituição Brasileira: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”
A entrada de policiais (estes militares, ligados ao governo estadual) no campus da Universidade de São Paulo (USP) também mobilizou estudantes no início do ano, depois do assassinato de estudante Felipe Ramos de Paiva. Após o crime, a reitoria da instituição fechou acordo com a PM paulista que, a partir de então, pode atuar normalmente na Universidade e fazer patrulhamentos. Antes, sua entrada só era permitida se fosse solicitada em alguma ocorrência. Na época, o DCE da USP se manifestou contra a decisão.

Clara Roman

Centro-esquerda vence eleição na Dinamarca com primeira mulher a assumir governo‎

Do sitio ESQUERDOPATA


 A centro-esquerda venceu nesta quinta-feira as eleições gerais na Dinamarca e pôs fim a uma década no poder da direita, além de eleger pela primeira vez na história do país uma mulher para comandar o Governo: a social-democrata Helle Thorning-Schmidt.

A oposição obteve 50,5% dos votos e 89 cadeiras contra 48,7% e 86 cadeiras do bloco governamental, já com 81% das urnas apuradas. Com este resultado, a centro-esquerda ficaria a uma cadeira das 90 que marcam a maioria no Parlamento dinamarquês, que, no entanto, alcançaria se recorrer a algum dos quatro deputados dos territórios autônomos da Groenlândia e as Ilhas Faroe.
Nesse sentido, três dos quatro partidos autônomos que partem como claros favoritos para conseguir representação em Copenhague anunciaram com adiantamento que apoiarão Thorning-Schmidt. Embora os social-democratas, que dominaram a política dinamarquesa na segunda metade do século XX, tenham recuperado o poder após dez anos, conseguiram a vitória em uma situação precária. O Partido Liberal do primeiro-ministro, Lars Loekke Rasmussen, despontou como vencedor com uma ligeira vantagem na frente dos social-democratas, que além disso poderiam piorar por alguns décimos o resultado de quatro anos atrás e transformá-lo no pior em um século. 
O triunfo da centro-esquerda se deve em boa medida ao resultado dos dois partidos menores: a coalizão Lista Única e principalmente o centrista Partido Radical Liberal. Porém, os radicais recuperam sua condição de "árbitros" da política dinamarquesa, que na última década tinha sido arrebatada pelo ultradireitista Partido Popular Dinamarquês, que desde 2001 impôs sua ferrenha política imigratória em troca de garantir a maioria absoluta do Governo liberal-conservador. 
 Thorning-Schmidt, que ocupará a Presidência rotatória da União Europeia (UE) a partir do próximo 1º de janeiro, deverá abusar da cautela para conciliar as notáveis diferenças no seio da centro-esquerda, principalmente em política econômica e de imigração. Enquanto os membros da Lista Única defendem uma linha mais aberta em imigração que a de socialistas e social-democratas, os radicais apoiam as reformas do Governo anterior do sistema de aposentadorias e pré-aposentadorias e de amplos cortes sociais, algo ao qual se opõem o resto dos partidos de centro-esquerda. As diferenças internas na centro-esquerda e na direita evidenciam o fim da ferrenha política de blocos que impera desde 2001 e apontam para o retorno a uma linha de pactos entre ambos lados do espectro político, mais de acordo com a história política dinamarquesa. 
 Apesar de ceder o poder, os liberais obtêm um resultado muito melhor do que indicavam as pesquisas de semanas atrás, além de manter sua condição de partido mais votado. Pior saiu o Partido Conservador, seu antigo parceiro de coalizão, que vê reduzido à metade seu apoio e se vê igualado à Aliança Liberal. Porém, o grande perdedor é o Partido Popular Dinamarquês e sua líder Pia Kjærsgaard, não só pela baixa votação pela primeira vez desde sua criação em 1995, apesar de seguir sendo a terceira força, mas porque perde toda a influência que a havia transformado na "rainha" da política dinamarquesa. Seu discurso centrado quase exclusivamente nos imigrantes, especialmente nos muçulmanos, ficou em segundo plano na campanha, dominada pelo debate sobre as reformas necessárias para superar a crise econômica e manter o modelo de bem-estar. 
 As eleições que consagraram o fim de uma década da direita no poder e colocaram pela primeira vez uma mulher à frente do Governo serão recordadas também por uma participação histórica da população que pode superar 90%.

Estudantes querem saber: quando é que vou ganhar dinheiro na rede?

por Luiz Carlos Azenha no VIOMUNDO

É uma pergunta frequente, nas palestras que faço por aí.
Jovens jornalistas, jovens que pretendem ser empresários ou que já são microempresários, de mídia ou não, querem que eu diga quando eles vão ganhar dinheiro na internet.
Diz-se que a rede é o grande equalizador, que basta você ter uma boa conexão de banda larga — mesmo que seja numa lanhouse — para competir em igualdade de condições.
Hoje, no Brasil, isso é uma ilusão para a imensa maioria, diria eu.
Primeiro é preciso qualificar: a existência de lanhouses não garante que a grande maioria dos brasileiros tenha acesso a internet suficientemente rápida e de forma ininterrupta que tocar um negócio através da web.
Existem, sim, algumas exceções, mas não são a regra. Frequentar lanhouse envolve um custo significativo e o mesmo vale para quem quer trabalhar em casa: é preciso pagar o equipamento e a conexão.
Sim, eu sei, as novas tecnologias de informação rebaixaram enormemente os custos para montar um negócio, jornalístico ou não.
Mas, a não ser que você tenha uma ideia genial que não envolva produção/estoque/venda/entrega e cobrança, é forçar a barra dizer que a mera existência das novas mídias cria um campo de negócios em que todos possam competir.
Acesso a capital, portanto, continua sendo tão essencial quanto antes. A não ser que você ganhe na loteria, receba herança ou seja de família rica, precisa de dinheiro para tocar o negócio. Para muitos significa dupla de jornada de trabalho.
Muito embora o acesso a empréstimos no Brasil tenha melhorado muito nos últimos anos, ainda estamos longe do ideal. Os candidatos a pequenos empresários precisam oferecer bens como garantia para obter empréstimos. O capitalismo dos ‘pequenos’ envolve, portanto, riscos relativamente muito maiores. O capitalista corre o risco de perder seu capital. Você corre o risco de perder a casa!
Se uma grande empresa tem capital para manter uma equipe de advogados e para se desvencilhar dos trâmites burocráticos — para não falar do poder de pressão — o que dizer dos jovens empresários?
Dito isso, falemos especificamente do mercado para jornalistas na rede.
Há dinheiro neste negócio que justifique tentar a sorte por conta própria?
Por enquanto, não.
A não ser pelos anúncios do Google, hoje adotados por um grande número de blogs e sites — este, inclusive –, anúncios aleatórios escolhidos pelo Google para casar com o conteúdo publicado, não há nenhuma outra forma de renda constante para um blogueiro em início de carreira, até porque os anúncios do Google dependem de um tráfego de visitantes que ele ainda não tem.
Portanto, também aqui, não há um campo equilibrado.
Como escreveu o publicitário Maurício Machado, há distorções no assim chamado ‘livre mercado’ que são responsáveis pela gigantesca concentração das verbas em alguns grandes grupos de mídia, verbas muitas vezes públicas, já que as três esferas de governo controlam as maiores verbas publicitárias do Brasil.
E os grupos que hoje recebem estas verbas, muitas vezes, exercem um verdadeiro terrorismo para garantir que tudo continue como está. Qualquer ameaça, comercial ou ideológica, ao modelo concentrador, é tratada, no extremo, com assassinatos de reputação.
Há mais um aspecto a considerar, neste caso específico para jovens jornalistas ou estudantes que querem garantir a própria sobrevivência na internet.
Se fazem isso ainda empregados, correm o risco de não ter acesso às ferramentas que poderiam utilizar para promover seus próprios negócios.
Praticamente todos os grupos de mídia exercem controle sobre o uso que seus funcionários fazem das mídias sociais, como blogs, facebook, twitter.
Como escreveu Leandro Fortes, neste texto, existe um caráter de controle ideológico nisso.
Mas há uma questão comercial, também: quem é que vai arriscar o emprego por causa de um post no blog que pretende transformar em seu futuro negócio? Qual o grau de liberdade que pode ser exercido por um jornalista sob estas condições?
Mas, sem o emprego que garante a atividade paralela, qual a perspectiva de sobreviver na rede?
Bem, se você tiver ou conseguir dinheiro privado, por exemplo, para investir em seu próprio negócio jornalístico na rede, sem que o empréstimo limite sua capacidade de produzir conteúdo — o que é, digamos, raro –, se eu fosse você investiria em um blog local ou regional, para aproveitar os buracos deixados pelas grandes mídias na cobertura local, especialmente considerando que os grupos regionais quase sempre estão conectados a um projeto político reprodutor do ‘pensamento único’.
Essa concentração regional é fortemente incentivada pela ausência de leis que limitem a propriedade cruzada, ou seja, que impeçam o mesmo dono/grupo de controlar emissoras de TV, jornais e emissoras de rádio locais.
Temos, portanto, no Brasil, mecanismos fortemente enraizados para promover e manter a concentração do poder político, do dinheiro e da mídia nas mãos de alguns, tanto na esfera federal quanto na local.
Isso não deve servir de desalento a nenhum de vocês, jovens estudantes, jornalistas ou empresários.
É apenas a constatação de que, para sobreviver exclusivamente de negócios na rede, especialmente os ligados à atividade jornalística, não basta querer, ter boas ideias e trabalhar duro.
É preciso ao mesmo tempo lutar por acesso a financiamento a custo baixo, pela pulverização das verbas publicitárias e de fomento e por limites à propriedade cruzada.
Ou isso ou vamos continuar na toada daquele antigo slogan, usado durante o governo Sarney:

Brasil, Tudo pelo Social.

Quem não couber use o de serviço.

No Fantástico, Dilma reforça política como show da vida

  Francisco Bicudo  no CORREIO DA CIDADANIA

  
Sem tergiversar (tenho certeza que a presidenta Dilma Rousseff prefere que seja dessa maneira): fiquei incomodado e lamentei profundamente que a entrevista exclusiva de vinte minutos em horário nobre tenha sido dada a um programa de entretenimento, o "show da vida". No domingão, final de noite, depois do almoço em família e da rodada do futebol, na maioria das vezes quem senta na frente da telinha e procura narrativas como as oferecidas pelo "Fantástico" está justamente disposto a manter a cabeça desligada, prolongando ao limite do impossível mais um final de semana que insiste teimosamente em escorregar pelos dedos, anunciando a agonia de mais uma segunda-feira de trabalho, transtornos, tarefas, reuniões e tensões. Estamos quase a dizer - 'não quero pensar, sem preocupações, só amanhã, mais um pouco, por favor'. É legítimo. Mas é preciso que se trate dessa maneira - como entretenimento.

A presidenta - e a assessoria dela - sabem disso. Não escolheram o Fantástico ao acaso. Não foi aleatório. Não foram obrigados. Foi feita uma opção. Antes de mais nada, depois de alguns dias em que se falou sobre propostas de regulação da mídia, seria bom mostrar afinidades, sintonias e encantamentos com a principal e mais poderosa emissora de TV do país, como a dizer "calma, nada muda, estamos no mesmo barco". A proposta da conversa também não era de forma alguma fazer pensar, mas tocar pelas sensações e emoções. Provavelmente a escolha foi mais uma peça de uma estratégia de popularização da imagem da presidenta, algo como "uma mulher como qualquer outra, informal, leve, risonha e brincalhona". As expectativas estavam explicitamente voltadas para a construção da marca de "alguém que também é comum, que tem desejos, vaidades, manias e vontades, como quaisquer outras brasileiras" - uma presidenta que cria empatias e identidades, capaz de cair no gosto popular. 

Não é difícil perceber que os marqueteiros (figuras cruciais da política como entretenimento) do Planalto não desgrudam os olhos dos tais índices de popularidade. Muitas das ações e das falas presidenciais têm sido guiadas por esses números mágicos de aprovação - ou trágicos de reprovação. Desde os recordes atingidos pelo ex-presidente Lula, a impressão que tenho é que se tornou uma obsessão conhecer como a opinião pública avalia ações de governo - o que obviamente tem lá sua importância, mas, ao mesmo tempo, quando elevada à enésima potência, faz dos administradores públicos reféns de institutos de pesquisas. Pensam em cada lance. Jogam para a platéia. Aguardam os aplausos. Ficam frustrados quando não os ouvem. E repensam suas ações e agendas. Egos precisam ser acariciados - sobretudo.

Mais uma vez, o Fantástico cai como uma luva para dar conta dessa demanda - depois de um período difícil, com turbulências, crises e demissões de ministros, eis agora a presidenta doce e meiga, que se reencontra com seu povo, arruma tempo para brincar com o neto, não gosta de ar condicionado (sabiam?), escolhe sem ajuda as roupas e está sempre muito bem alinhada (tem até usado mais saias, vejam só), faz a própria maquiagem (que bom!) e quer muito perder alguns quilinhos extras. A pauta da entrevista, que tragédia, poderia ter sido feita por uma criança de cinco anos, quem sabe até o neto da presidenta pensasse em questões mais relevantes, como chegou a ser comentado nas redes sociais. Mas e quem estava mesmo interessado no debate político?

Pois esse é justamente o ponto fundamental da discussão, o que mais me incomoda e para o qual desejo chamar a atenção - ao escolher o Fantástico e favorecer mais uma vez a lógica e a estética do entretenimento, sempre grandiosas e arrebatadoras, a presidenta faz submergir o complexo exercício de racionalidade que marca o debate político. Diante dos olhares desejosos de distração da opinião pública, em horário nobre, a política aparece banalizada, surge como frivolidade, algo secundário, curioso, superficial, simplificado, leve, quase sem conflitos, professoral - vá lá, um tema até interessante, mas não exatamente importante. 

Esse movimento, aliás (o que é mais preocupante e acachapante), parece ser a tendência dominante do atual governo - e também do anterior. Quais são afinal de contas as iniciativas políticas que estão sendo sustentadas e bancadas pela administração Dilma Rousseff? Para além do gerenciar a herança lulista, quais as transformações de fato que estão acontecendo na área social, por exemplo? Quais suas bandeiras e prioridades? Pois não nos disseram que o tal presidencialismo de coalizão era fundamental exatamente para garantir maiorias, a governabilidade e a implementação das ações de governo? Ah, entendi... as alianças não foram ideológicas, mas fisiológicas; não foram programáticas, mas pragmáticas. 

O que acontece é que a Política (com "P" maiúsculo mesmo)... não acontece. O Código Florestal aprovado pela Câmara dos Deputados não era o que Dilma queria - mas o governo também não fez força alguma no Parlamento para aprovar proposta alternativa. Temeu melindrar aliados ruralistas. Foi só a ala amiga-religiosa-reacionária gritar um pouco mais alto que o kit anti-homofobia que seria distribuído nas escolas públicas com intuito de combater o preconceito foi suspenso, sob a alegação que não é "consenso no governo". Dilma não quer a aprovação da emenda 29, diz ser contra a volta da CPMF, mas reconhece que a saúde de fato precisa de mais recursos. De onde virão, afinal? O governo não quer se comprometer. Abre mão de contrariar interesses - ou seja, de fazer política. Lava as mãos. Não quer se desgastar com a classe média (imagem é tudo, lembram-se?). Líderes de trabalhadores rurais são mortos. A presidenta não vem a público para condenar com veemência os assassinatos - e explicitar ao lado de quem está nessa disputa. Democratizar e regulamentar a mídia, quebrar monopólios da informação, cobrar impostos de grandes fortunas? Nem pensar. Podem achar que ela é muito radical, não? Sobre a abertura dos arquivos secretos, puxa vida, as mudanças de discursos já foram tantas que já nem sabemos mais o que Dilma pensa. E até mesmo a Comissão da Verdade, que era questão de honra, precisa das bênçãos do DEM (que patrocinou a ditadura militar) para ser aprovada, para "não causar traumas". Durma-se com um barulho desses.

Fica difícil. Respeitados os fundamentos e princípios da democracia, política significa tensão. Divergência. Debate. Disputa. Enfrentamento. Exige escolhas. E não aceita omissão. Nem medo. Como bem lembra o poeta, escritor e dramaturgo alemão Berthold Brecht, não adianta estufar o peito e nele bater dizendo "não gosto disso". Quando nos recusamos a fazer política, há certamente alguém disposto a fazê-lo por nós. Espaço vazio é espaço ocupado. Que o diga o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que em nome da conciliação, de afagos em republicanos e por imaginar que seus competentes discursos e belos olhos seriam suficientemente sedutores para governar o país, enfrenta atualmente a fúria fanática de um movimento chamado Tea Party. 

Não tenho dúvidas: lá, como cá, a desmobilização do debate que deveria marcar a esfera pública e ser a tônica da vida cotidiana, patrocinada por aqueles que tratam a política como mero produto do entretenimento, em grande medida é diretamente responsável pelo avanço do discurso e das práticas conservadoras.

Francisco Bicudo é jornalista e professor de Comunicação Social.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Sobre algumas ilusões a respeito da Palestina

Idelber Avelar na REVISTA FORUM

Há uma espécie de euforia tranquilizadora de consciências em curso. A Autoridade Palestina deve solicitar em breve às Nações Unidas a sua admissão como estado membro com plenitude de direitos. Essa admissão deve ser aprovada por ampla maioria, com o tradicional voto contrário de Israel, acompanhado dos indefectíveis EUA e de algum outro país (em geral são as Ilhas Marshall). Como era previsível, há grande apoio popular à iniciativa em praticamente todo o mundo. Mas também há, me parece, uma enorme má consciência com respeito ao tema, como se a admissão à ONU fosse uma espécie de solução definitiva do problema, o tão esperado aplacador da culpa ocidental. Lamento, mas não é o caso.
Quem não acompanha de perto o problema talvez se surpreenda com a notícia de que há pouquíssimo entusiasmo na Palestina, tanto em Gaza como na Cisjordânia, com respeito a essa entrada na ONU. É evidente que a admissão às Nações Unidas muda algo no tabuleiro formal internacional, mas o que se convencionou chamar, nos processos de negociação, de “facts on the ground”, não se move absolutamente um centímetro. Aliás, muita gente se convenceu de que estamos vivendo a época do enterro definitivo da possibilidade de uma solução biestatal para a tragédia do povo palestino.
A solução biestatal sempre teve, a seu lado, a legitimidade internacional. A Resolução das Nações Unidas 242—numerozinho mágico que qualquer palestino sabe de cor—afirma a inadmissibilidade da conquista de território por guerra e exige que Israel retorne às fronteiras anteriores à guerra de 1967. Na prática, ela estabelece as atuais Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental como território legalmente palestino. Há 44 anos esse território continua sob ocupação militar israelense, no caso da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental e, no caso de Gaza, sob bloqueio aéreo, terrestre e marítimo.
O número de colonos só cresceu durante esse período e hoje chega a 280.000, na Cisjordânia, e 180.000, em Jerusalém Oriental. A política de remoção forçada da população palestina de suas casas, especialmente em Jerusalém, continua galopante. A implantação de estradas exclusivas para colonos, checkpoints e monopólio da água só se intensificou nos últimos anos. A rotina dos espancamentos, tortura e encarceramentos extra-judiciais também. Periodicamente, reinicia-se a farsa da “negociações de paz”, nas quais não se concede aos palestinos sequer a interrupção do roubo de território. Nada nesse quadro se altera com a admissão da Palestina à ONU.
Especialmente entre os palestinos mais jovens, o atual pedido de admissão à ONU tem sido visto como instrumento para que a Autoridade Palestina faça ainda mais concessões, acelere ainda mais a sua transformação em capanga a serviço do poder colonial israelense e dissemine ainda mais ilusões sobre uma “solução” que já está, na prática, morta, assassinada pela picotagem, confisco e ocupação do território que seria palestino segundo a Resolução 242.
Uma das grandes vozes israelenses contra o Apartheid, Ilan Pappe—o primeiro historiador de Israel a escrever a história do Nakba (a catástrofe) de 1948-9 com fontes orais árabes—, recentemente escreveu um artigo que este blogue recomenda com ênfase (o link leva à minha tradução do texto ao português, publicada aqui na Fórum). Pappe se refere à entrada na ONU como o funeral da solução biestatal, a sua revelação definitiva como farsa de pouquíssimas relações com qualquer realidade existente ou possível. Um número cada vez maior de palestinos e analistas internacionais começa a ver como única possibilidade de solução a emergência de um estado plurinacional e pluriétnico, onde judeus e árabes gozassem de completa e equânime cidadania e direitos iguais. Para que isso se realize, claro, seria necessária uma revolução, nada menos que uma das mais inesquecíveis revoluções da era moderna.
Outras revoluções já tomaram seu impulso inicial de situações assim, em que uma “solução” imaginária, exatamente ao ser colocada sobre a mesa, se revela como ilusão destinada a acalmar más consciências.

domingo, 11 de setembro de 2011

Sistema tributário progressivo

Marcio Pochmann no PORTAL CTB
A trajetória do desenvolvimento contempla a existência de um sistema tributário progressivo. Ou seja, a presença de impostos, taxas e contribuições que atuam em proporção maior com a elevação da renda e riqueza. Assim, a justiça tributária se manifesta logo na arrecadação do fundo público e se mantém na medida em que o gasto governamental seja proporcionalmente maior com a redução da renda e riqueza. Para se conhecer a eficiência do Estado, basta saber a forma com que tributa a sociedade e redistribui o que arrecadou para a população.

Pela tradição do subdesenvolvimento, a capacidade do Estado tributar os pobres tem sido proporcionalmente maior que a renda e a propriedade dos ricos. O inverso se estabelece na redistribuição do fundo público constituído por impostos, taxas e contribuições, uma vez que os pobres ficam geralmente com a parte menor do que contribuíram e os ricos com a parcela maior. Isso tudo porque os segmentos privilegiados demonstram inegáveis condições de pressionar o Estado a seu favor, bem mais que os demais estratos sociais, sobretudo os mais vulneráveis e desorganizados politicamente. Sobre isso, aliás, valeria aprofundar o debate acerca da eficiência do Estado.

Na virada do século XXI, o governo brasileiro demonstrou considerável interesse em elevar a qualidade do gasto social, o que permitiu melhorar o tratamento dos segmentos sociais mais vulneráveis e desorganizados politicamente. Por diversas modalidades de atuação das políticas públicas os segmentos de menor renda terminaram ampliando a absorção do fundo público. O impacto distributivo do Estado brasileiro se mostrou inegável, com queda no grau de desigualdade pessoal da renda de 9,5%, passando de 0,55, em 2003, para 0,50, em 2009 (índice de Gini, quanto mais próximo de 1 mais desigual a distribuição). Se desconsiderada a atuação do Estado sobre os rendimentos do conjunto da população, ou seja, a renda original sem incluir as políticas de transferências de renda, a redução no grau de desigualdade seria de apenas 1,7% (de 0,64, em 2003, para 0,63, em 2009).

Em síntese, constata-se uma positiva contribuição recente do Estado no tratamento da desigualdade da renda, especialmente pelo lado da redistribuição do fundo público arrecadado. Mas falta ainda, por outro lado, avançar na qualidade da arrecadação tributária, que permanece fortemente concentrada na parcela da população de baixa renda. Os ricos seguem demonstrando importante capacidade de driblar o conjunto dos tributos. Um bom exemplo disso pode ser observado na marcha da sonegação fiscal existente no Brasil. Inicialmente pela ausência de tributação nas aplicações financeiras de residentes nas operações realizadas no exterior, sobretudo nos chamados paraísos fiscais. Em 2009, por exemplo, somente os recursos aplicados em quatro dos 60 paraísos fiscais (Ilhas Cayman, Virgens Britânicas e Bahamas, mais Luxemburgo) existentes no mundo representaram mais de ¼ do total de recursos considerados investimentos diretos externos (IDE) pelo Banco Central. A intransparência e, por que não dizer, escassa regulação permite que esses recursos aplicados externamente possam retornar legalizados e com contida tributação. A ausência de uma taxação internacional faz prevalecer a sistemática de poderosos e ricos evadirem-se de suas contribuição ao fundo público.

Na sequência, podem ser identificadas diversas modalidades existentes no Brasil que facilitam a evasão fiscal. O contrabando nas fronteiras e o exercício da informalidade consagram funcionalidade à concorrência não-isonômica, ao mesmo tempo em que permitem que riqueza existente deixe de ser tributada. O resultado disso tem sido a concentração da renda e, sobretudo, da riqueza. Também nesse sentido segue inalterado o curso da tributação sobre as grandes fortunas no país, sem qualquer contribuição ao fundo público, devido à ausência de taxação específica conforme verificado nas economias desenvolvidas.

No caso ainda do favorecimento aos privilegiados e poderosos, cabe mencionar a baixa eficácia da tributação direta nas três esferas do federalismo brasileiro. Em relação ao imposto de renda da pessoa física, por exemplo, o Ipea estima que R$ 1 a cada R$ 3 deixa de ser arrecadado, ao passo que segmentos de maior renda podem financiar os seus gastos privados com educação, saúde, previdência e assistência social por meio de abatimentos na declaração anual. Só no financiamento da educação privada, o Estado brasileiro deixou de arrecadar R$ 5 bilhões daqueles que fizeram a declaração anual do Imposto de Renda em 2010.

Por fim, os tributos diretos sobre a propriedade rural (ITR) e urbana (IPTU) seguem inacreditavelmente regressivos, uma vez que sinais exteriores de riqueza concentrada manifestada por latifúndios e mansões em progressão sigam quase imunes à contribuição justa ao fundo público. Além disso, constata-se também que o imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) permanece sem incidir sobre aviões, helicópteros e lanchas.

O adequado enfrentamento da injustiça tributária atual impõe a elevação da eficiência do Estado, seja no formato da arrecadação do fundo público como na sua redistribuição. Isso implicaria abandonar o vergonhoso peso do Estado proporcionalmente maior sobre os segmentos de menor rendimento, que transferem todo o mês praticamente a metade do que recebem por força do esforço do seu trabalho. Já os ricos, que por força de suas propriedades obtêm rendas elevadas, quase nada contribuem com o fundo público no Brasil.

Marcio Pochamann é economista e presidente do Ipea. Texto publicado no Valor Econômico.

Produção do agronegócio fica longe da mesa do brasileiro


Virginia Toledo, Rede Brasil Atual
Desgastado por estar no centro dos argumentos contra as mudanças no Código Florestal, o agronegócio brasileiro tenta se associar a uma "agenda positiva". De um lado, há a aposta no discurso de uma produção sustentável; de outro, a ideia de que a produção em larga escala no país vai garantir alimentos para o mundo.
Um exemplo foi um evento realizado na semana passada pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a organização presidida pela senadora Kátia Abreu (ex-DEM, a caminho do PSD-TO). O lema do Fórum Internacional de Estudos Estratégicos para o Desenvolvimento Agropecuário e Respeito ao Clima (Feed 2011) foi direto: "o desafio de alimentar 9 bilhões de pessoas".
A referência é à população estimada do planeta no ano de 2050, feita pelo órgão responsável por estudos sobre demografia da Organização das Nações Unidas (ONU). As empresas agrícolas brasileiras colocam-se como a "galinha dos ovos de ouro" da produção de alimentos, colocando em xeque a segurança alimentar num mundo sem a indústria agropecuária.
Na programação do fórum da CNA, discussões voltadas a questões ambientais, formas de tornar a produção mais eficiente – inclusive do ponto de vista ambiental, já que a segunda maior fonte de emissões de gáses de efeito estufa é a pecuária.
Na abertura do evento, Kátia Abreu afirmou que o Brasil é o único país do mundo que optou por abrir mão de terras agricultáveis e férteis em nome da preservação ambiental. Ela qualificou a medida como um "legado" do país para o mundo, mas afirmou que isso demandaria contrapartidas dos outros países para retribuir com esse bônus oferecido durante tanto tempo.
Nem parece o mesmo grupo que defende alterações no Código Florestal brasileiro, em tramitação no Senado, com redução nas áreas de preservação permanente (APPs) e a possibilidade de os estados legislarem sobre o tema, diminuindo ainda mais o espaço em que atualmente a manutenção de áreas florestais é obrigatórias.
Qual o intuito de colocar a si próprio a obrigação de suprir a fome da população mundial? A necessidade de justificar a expansão da fronteira agrícola – que será legitimada em caso de aprovação das mudanças no Código Florestal.

Longe da mesa

O conceito de segurança alimentar envolve bem mais do que a produção de alimentos em quantidade necessária para a população. Para se considerar que a condição de um país, de uma cidade ou de uma comunidade oferece segurança alimentar é preciso, por exemplo, que a comida consumida venha de áreas próximas. A ideia é que, deslocamentos muito grandes aumentam os riscos de problemas de abastecimento, por exemplo.
A ideia de colocar o Brasil como "celeiro do mundo", responsável por "alimentar" a população do planeta até a metade do século, tenta responder a um desafio colocado mundialmente, mas com uma resposta convencional.
Mas as contradições vão bem além. Dos alimentos consumidos pela população brasileira, 70% dos que têm origem agropastoril vêm de propriedades da agricultura e da pecuária familiar. Quer dizer, arroz, feijão, leite, mandioca e outros itens básicos da dieta do brasileiro são produzidos por pequenos ou médios agricultores, em propriedades que não demandam a devastação total do bioma em que se encontram.
Outro dado: apesar da pretensão de alimentar a população do mundo, a agroindústria nacional ainda está longe de dar conta da demanda em seu próprio quintal. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2009 mostra que 30,2% da população brasileira ainda vive em situação de insegurança alimentar.
Contudo, nosso agronegócio segue quebrando recorde atrás de recorde da produção de grãos – com destaque para a soja, pouco consumida in natura no país -, e para a cana-de-açúcar, cada vez mais voltada para a produção do etanol para fazer rodar nossos veículos. Os números da produção para exportação aumentam, as reivindicações do empresariado por mais terra agricultável se intensificam, mas o sustento da população do país ainda está longe de garantida. 
O geógrafo Ariovaldo Umbelino, professor da Universidade de São Paulo, é um dos críticos à insistência de que o agronegócio precisa de mais áreas para suprir as necessidade de alimentar o mundo. "Se o agronegócio ainda não consegue alimentar o Brasil, como será capaz de ser o protagonista da solução do problema da segurança alimentar mundial?", questiona.
"A produção do agronegócio não é uma produção de alimentos", resume Raul Krauser, coordenador da Via Campesina e membro do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). "É uma produção de commodities destinada à exportação para o mercado internacional, em que grande parte da soja é usada na fabricação deração de animais, ou combustível, sobretudo na Europa", pontua.
Para Krause, a atual legislação ambiental foi construída numa perspectiva de uso sustentável da natureza e dos recursos naturais. Entretanto, o setor do agronegócio quer expandir desenfreadamente suas fronteiras agrícolas, sem sequer rever as áreas de pastagens extensiva, que apresentam baixíssima produção por hectare.
É hora de rever conceitos. É preciso deixar de ver a floresta como uma barreira ser derrubada e é preciso também que se entenda definitivamente que a produção de alimentos - de qualidade e acessível a todo cidadão, sem exceção - não é tarefa para quem visa apenas e tão somente o lucro, nada mais.

Quem financia o ódio aos muçulmanos nos EUA?


Uma nova reportagem detalha como um pequeno grupo de doadores e "intelectuais" disseminaram a islamofobia.

Por MJ Rosenberg na REVISTA FORUM

Faz cerca de uma década que a islamofobia explodiu neste país. O momento em que o World Trade Center e o Pentágono foram atingidos por terroristas da al Qaeda. A islamofobia existia antes do 11 de setembro, mas as perdas daquele dia e o terror geral que aquilo causou sobre este país fez com que muitos, muitos americanos se tornassem mais cautelosos ainda com árabes e, bastante rapidamente, mais amedrontados da religião que professavam os terroristas.
O primeiro sinal de que o 11 de setembro seria explorado para fazer avançar diversos programas veio de Benjamin Netanyahu, que foi citado no New York Times dizendo que os ataques seriam bom para Israel:
“Quando questionado hoje [11 de setembro de 2001] sobre o que significaram os ataques para as relações entre os Estados Unidos e Israel, Benjamin Netanyahu, ex-primeiro ministro, respondeu, “São ótimos.” E então se explicou: “Bem, não ótimos, mas gerarão simpatia imediata”. Ele previu que os ataques iriam “fortalecer a união entre os dois povos, por terem experienciado o terror durante muitas décadas, mas os Estados Unidos agora haviam experimentado uma hemorragia massiva de terror.”
Netanyahu subsequentemente reiterou seu ponto de vista sobre o 11 de setembro.
E, é claro, desde os ataques o lobby “pró-Israel” obteve sucesso em se utilizar deles para construir um apoio para as políticas da direita israelense nos Estados Unidos.

Mas o lobby não veio sozinho.

É somente um dos componentes de um orquestrado e bem-financiado esforço para fazer com que os norte-americanos temam e odeiem muçulmanos e árabes.
Tenho que admitir, no entanto, que até ter lido uma reportagem publicada hoje pelo Centro de Progresso Americano (CAP, por seu nome em inglês), eu não tinha ideia de precisamente quão orquestrado e bem-financiado era este movimento.
A reportagem “Medo Ltda.: As raízes da Rede de Islamofobia nos EUA” demonstra que um pequeno grupo de autoproclamados especialistas (Frank Gaffney, David Yerushalmi, Daniel Pipes, Robert Spencer, e Steve Emerson) apoiados por um grupo de fundações e doadores (muitos dos quais financiam o lobby) colocaram a islamofobia no mapa.
Para colocar de maneira simples, sem estes “especialistas”, seus doadores e a Fox News (o porta-voz midiático) você jamais teria ouvido falar que um centro comunitário muçulmano (a “Mesquita Marco-Zero”) estava sendo construído em Nova Yorque. E o centro certamente não teria se tornado manchete. Nem mesmo os candidatos republicanos (e até mesmo alguns democratas) à presidência, ao Congresso, e até mesmo à prefeitura, seriam chamados para condenar o Islã e a “Lei da Sharia” ou ter que enfrentar o fato de ser rotulado de apoiador do terrorismo. Nem Newt Gingrich, Herman Cain e Rick Santorum teriam feito com que o ódio por muçulmanos americanos fosse uma parte integral de suas campanhas.

Tudo começa com o dinheiro. De acordo com o CAP:

Um pequeno grupo de fundações e doadores ricos são o sangue da rede de islamofobia nos Estados Unidos, fornecendo financiamento fundamental a uma ninhada de direitistas formadores de opinião que espalham ódio e medo de muçulmanos e do islã – em forma de livros, reportagens, sites, blogues, e apontamentos cuidadosamente concebidos que organizações de base anti-Islã e alguns grupos religiosos de direita usam como propaganda para seus eleitorados.
Algumas dessas fundações e doadores ricos também fornecem financiamento direto a grupos de base anti-Islã. De acordo com nossa extensa análise, aqui estão os sete principais contribuintes responsáveis por promover a islamofobia neste país:

Fundo Donors Capital
Fundações Richard Mellon Scaife
Fundação Lynde e Harry Bradley
Fundações e Fundos de Caridade Newton D. & Rochelle F. Becker
Fundação Russell Berrie
Fundo Beneficente Anchorage e Fundo William Rosenwald Family
Fundação Fairbrook

Muitos destes são novos para mim, ainda que quando trabalhei na AIPAC foi difícil não ver o fato de que alguns deles apoiam tanto a AIPAC como seu formador de opinião, o Instituto Washington de Políticas no Oriente Próximo.
A coisa mais incrível na reportagem do CAP é que ela expõe pessoas que tentam de tudo para cobrir seus rastros. Uma coisa é ser conhecido por apoiar a AIPAC, mas é outra bem diferente ser alinhado a Steve Emerson, Daniel Pipes e Pam Geller, que aparecem na reportagem do CAP somente como um segundo nível de ódio cuja veemência anti-muçulmana não passa de nojenta.
Os financiadores do ódio estão particularmente determinados a se esconder desde o massacre de 76 pessoas na Noruega em julho por um autodeterminado Cristão conservador chamado Anders Breivik, que disse ser influenciado por Robert Spencer, Pam Geller e David Horowitz (outro proeminente propagandista contra muçulmanos e beneficiário de várias fundações anti-Islã).
Mas o CAP seguiu o dinheiro, foi atrás dos nomes de fundações que aparentavam ser inocentes, e cruzou estes nomes. E agora nós temos: a rede do ódio exposta.
E o retrato é bem feio. Judeus cuja principal preocupação é Israel se alinham com os direitistas cristãos que não gostam de judeus. Há até mesmo alguns muçulmanos enviados pela rede para dizer para plateias em igrejas e sinagogas quão más pessoas eles são. É estranho.
Mas também é muito perigoso, como o massacre da Noruega contesta.
A coisa mais estranha sobre a matança é que ela ocorreu na Noruega. Lendo este artigo, você deve se perguntar por que não ocorreu aqui. Ainda.

A Al-Qaeda existe?


A resposta óbvia é sim, ela existe, mas é preciso qualificá-la: ao contrário do que diz o senso comum, a Al-Qaeda não é uma organização, mas uma rede de grupos locais fragilmente unidos, e Osama Bin Laden não tinha tanto poder como os EUA e ele próprio queriam fazer o mundo crer. Sem essa compreensão, a natureza do ativismo islâmico, inclusive de sua vertente radical, não pode ser devidamente esclarecida.


Há um senso comum sobre o que é a Al-Qaeda. Pergunte a alguém ao seu lado. A maioria provavelmente responderá que se trata de uma organização terrorista fundada décadas atrás por um fanático religioso saudita e bastante rico, que, enquanto viveu, recrutou e treinou homens para criar células de ataque em vários países, inclusive no Ocidente, a fim de atingir cinematograficamente alvos escolhidos por ele próprio.

É com uma provocação desse tipo que Jason Burke, correspondente dos jornais Observer e The Guardian no sul da Ásia, inicia um dos capítulos de seu livro “Al-Qaeda - a verdadeira história do Islã radical” (Editora I. B. Tauris, 2003, 357 páginas) – uma referência para os que querem explorar as entranhas do grupo ligado ao terrorista Osama Bin Laden. Repórter de campo com experiência em frentes de batalha e amplos contatos com militantes mulçumanos, Burke desmonta aquela visão simplificada compartilhada por muitos de nós, mas ainda amplamente legitimada nos meios de comunicação.

Para o jornalista, o que chamamos de Al-Qaeda trata-se na verdade de uma rede global pouco conectada de grupos terroristas com histórias e objetivos distintos entre si, muitas vezes mais interessados nas disputas por projetos nacionais do que por metas determinadas por uma ideologia islâmica global. Nessa rede, Bin Laden e seus aliados mais próximos tiveram um poder frágil, regularmente contestado pelos grupos e lideranças nacionais.

Burke relata diversas histórias para provar que a decisão de tratar Bin Laden como o inimigo público número um do planeta não encontra muitas justificativas na realidade. Uma delas diz respeito aos chamados “campos da Al-Qaeda” para treinar militantes no Afeganistão e no Paquistão, entre 1990 e 1996. Bin Laden tem sido até hoje insistentemente considerado o coordenador desses centros de treinamento. No entanto, segundo o jornalista, não há qualquer evidência de que o saudita tivera controle sobre os campos.

Ele menciona dois documentos do Departamento de Estado dos EUA para comprovar sua tese. O primeiro, de 1995, seis anos antes dos ataques de 11 de setembro, faz um relato oficial sobre os centros de treinamento afegãos, revela que militantes de várias nacionalidades estavam sendo habilitados para executar atos terroristas e aponta como chefe do esquema, além de setores do próprio governo do Afeganistão, um personagem chamado Abd al-Rab al-Rasul Sayyaf, com diversas conexões com a elite saudita. Mas alguém já ouviu falar em Sayyaf, que mais tarde foi eleito para o parlamento afegão?

O outro documento citado pro Burke, um memorando interno do mesmo Departamento de Estado, de 1996, quando o Afeganistão já estava sob pleno domínio do Taleban, afirma que vários grupos árabes dividiam o controle dos campos. “A verdade é que Bin Laden era uma figura marginal naquela época. Homens como Sayyaf, um dos mais importantes líderes político e religioso do Afeganistão naquele contexto, com excelentes contatos com ricos e devotados sauditas que contribuíam com seu projeto, tinham muito mais importância”, escreveu o jornalista.

Em 2001, após os ataques ao World Trade Center, a tevê norte-americana ABC entrevistou um militante árabe que havia treinado durante oito meses dos campos afegãos. Ele disse que jamais ouvira alguém chamar seu grupo de Al-Qaeda. “Isso revela como os investigadores norte-americanos forçaram a barra para encontrar um grupo, liderado por um personagem identificável, e que tivesse um nome”, aponta Burke.

O próprio correspondente destaca, porém, que não se trata de menosprezar o papel de Bin Laden no terrorismo global e nem mesmo de negar a existência da Al-Qaeda – tese defendida por alguns especialistas em Islã. Para ele, a Al-Qaeda existe, sim, e poderia ser didaticamente descrita como composta por três elementos: um núcleo duro, uma rede de grupos locais e uma ideologia comum. Além do governo norte-americano, no plano do discurso, o próprio Bin Laden se esforçou, entre 1996 e 2001, para fortalecer a unidade da rede e seu próprio poder sobre ela.

Com recursos financeiros nas mãos, o terrorista atraiu para sua órbita proeminentes militantes islâmicos que já estavam ativos ao redor do globo. Isso não significa, porém, que eles operariam sob as ordens de Bin Laden. “Taxar esses grupos locais como Al-Qaeda simplesmente encobre os fatores específicos que fizeram esses grupos surgir”, diz Burke. Segundo ele, Bin Laden passou a usar táticas empregadas por EUA e URSS durante a Guerra Fria – entre elas, fazer acordos de curto prazo com grupos locais, ainda que as diferenças entre eles fossem grandes, e financiá-los, com vistas a um objetivo comum.

A verdade é que a visão de uma Al-Qaeda institucionalizada tem bagunçado as peças de análises sobre a militância islâmica no mundo. Perdem-se as peculiaridades locais dos grupos e todos acabam se surpreendendo, ao menos no Ocidente, quando esses militantes se envolvem em atividades contra governos não-democráticos e corruptos, como foi o caso da atuação da Irmandade Mulçumana na derrubada do governo de Hosni Mubarak, no Egito.

Radicalismo, religião e pobreza
 
A idéia de uma organização composta por fanáticos mulçumanos prontos para se explodirem também é desmontada não apenas por Burke, mas por outro pesquisador da cultura islâmica, o francês Gilles Kepel, em seu livro “Jihad – a trilha do Islã político” (Belknap Press, 2002, 464 páginas).

Segundo Kepel, a violência traduzida pelo terrorismo tem sido causada por uma falha do ativismo político islâmico, incapaz de oferecer uma alternativa viável às populações islâmicas mais empobrecidas na Ásia e da África. Os movimentos anticolonialistas da primeira metade do século 20, os projetos socialistas e nacionalistas que se seguiram, assim como o desenvolvimento do projeto político islâmico, a partir da década de 80, não conseguiram responder aos anseios daquelas populações.

Segundo o pesquisador francês, os ativistas islâmicos radicais são em sua maioria recrutados entre famílias pobres ou da baixa classe média trabalhadora. Muitos constituem a primeira geração de suas famílias a obterem educação formal e viverem em cidades. Kepel identifica neles uma série de aspirações econômicas, traduzidas na idéia de que é justo "melhorar de vida" e lutar por isso. São pessoas que em outros países são naturalmente captadas para o ativismo social, em ONGs, ou político, nos partidos. Entretanto, a fragilidade dessas instituições na sociedade civil de muitas nações islâmicas torna fácil o recrutamento pelos flancos terroristas.

Isso não seria possível, claro, sem uma leitura do Islã que não só permita, mas incentive as atividades violentas. Essa referência tem origem na idéia de missão islâmica, chamada de da'wa, a qual glorifica a Jihad e o martírio como caminhos para a transformação mundana e a redenção divina. Um dos berços das práticas e valores islâmicos mais conservadores é a Arábia Saudita, terra natal de Osama Bin Laden. Hoje, porém, essa vertente da religião já se espalhou pela Ásia e África e não é à toa que entre os principais líderes identificados como da Al-Qaeda estão egípcios e líbios.

Votando a Jason Burke, os anos mais intensos do terrorismo islâmico – e das "Guerras do 11 de Setembro", como ele denomina esse período – ocorreram em 2005 e 2006, ano do ataque ao metrô de Londres. O jornalista lembra que nessa fase a estratégia da Al-Qaeda de confronto com o Ocidente parecia funcionar, tamanho o grau de mobilização que exigiu dos governos europeus e norte-americano. Mas, desde então, a capacidade de mobilização da entidade arrefeceu. A morte de Osama Bin Laden acentuou o fenômeno.

Um outro fator que enfraquece as conexões da Al Qaeda, diz Burke, tem relação com a própria maneira de os mulçumanos enxergarem a organização. Segundo o jornalista, quando a Al-Qaeda foi criada, uma de suas mais explícitas estratégias era executar grandes atentados terroristas com o objetivo de demonstrar às populações islâmicas no mundo que derrubar governos patrocinados pelo Ocidente era possível.

A idéia funcionou bem quando ocorreu em lugares distantes, seja nos Estados Unidos, na Europa ou no meio do mar. Quando, porém, a maioria dos atentados passou a ocorrer em ruas movimentadas de cidades como Bagdá, a população passou a ver com mais restrições os grupos terroristas.

O que concluir de tudo isso? A fase pós-Bin Laden da militância islâmica no mundo exige dos observadores um olhar para a realidade e para além dos discursos dos governos e das próprias redes terroristas. Histórias nacionais e objetivos específicos explicam muito mais sobre a existência desses grupos, seu modo de atuação e mesmo suas ações mais violentas do que uma análise homogênea e global do Islamismo radical. Kabul e Bagdá estão muito mais distantes do que o mapa da Ásia pode revelar.