Rachel Duarte no SUL21
Convidado pela presidenta Dilma Rousseff para o lançamento da
Comissão da Verdade, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do
Rio de Janeiro, Wadih Damous, é conhecido como apoiador da luta por
verdade e justiça e da punição às violações de direitos humanos
ocorridos no Brasil na ditadura militar. No exercício do segundo
mandato, que encerra em dezembro deste ano, Wadih Damous defende que a
verdadeira democracia só será desfrutada pelo Brasil quando a sua
história for esclarecida. “Houve tortura e milhares de pessoas estão
desparecidas. E os agentes do Estado que o fizeram não foram
identificados. Existe uma série de perguntas sem resposta que precisam
vir à tona”, defendeu em entrevista ao Sul21.
O advogado confia e afirma defender junto aos movimentos de direitos
humanos e de familiares de desaparecidos políticos o trabalho dos
integrantes da Comissão da Verdade brasileira. Ele admite que não prever
punição é uma limitação da Comissão, mas diz que os jovens brasileiros
estão dando um exemplo com o ‘escracho’ dos agentes da ditadura. “Já que
o Estado brasileiro não pune, eles punem moralmente, apontando o dedo
para aqueles que macularam a história do Brasil”, afirmou.
Ainda que esperançoso na possibilidade de revisão da Lei de Anistia,
diante da abertura de uma brecha jurídica levantada pelo Ministério
Público Federal no caso do coronel Sebastião Curió Rodrigues de Moura,
Wadih Damous é realista ao afirmar que, apesar dos esforços, o
conservadorismo do Poder Judiciário poderá vencer mais uma vez.
“Infelizmente o Judiciário tem arquivado estes procedimentos. Este é o
grande obstáculo que temos aqui no Brasil para punir estes agentes
públicos. Se o julgamento fosse hoje, acredito que a posição atual do
STF seria não rever sua decisão”, falou.
“É muito melhor sofrer diante da verdade do que viver na omissão dela ou na mentira, como acontece hoje no Brasil”
Sul21 – Quem teme a verdade da história brasileira?
Wadih Damous – Os agentes que praticaram crimes de
lesa-humanidade que ainda estão por ai. Eles vivem no Brasil, gozando de
liberdade e convivem de forma absolutamente tranquila entre nós, com a
sustentação judicial de já terem sido considerados anistiados. A
sociedade brasileira, por sua vez, não tem o que temer. Eu acho que a
verdade, em qualquer situação individual ou jurisdicional que envolva
toda uma nação, é sempre necessária e imprescritível. É muito melhor
sofrer ou sentir dores por estarmos diante da verdade do que vivermos na
omissão dela ou na mentira, que é o que acontece hoje no Brasil.
Sobretudo quando pensamos na futuras gerações. Quando em sala de aula se
fala sobre ditadura militar, os jovens imaginam que foi algo que
ocorreu há muito tempo na história, centenas de anos atrás. E o que
aconteceu é muito recente. É fundamental nossa democracia amadurecer
enfrentando as mazelas que aconteceram a partir de 1964. Por isso é
necessário que nós apoiemos a Comissão da Verdade e cobremos para que
ela atue na revelação da verdade. E não é só revelar a verdade dos
familiares de mortos e desaparecidos. O ex-presidente Juscelino
Kubitschek morreu em um acidente mesmo ou foi assassinado? O
ex-presidente João Goulart morreu doente ou morreu envenenado? Há uma
série de episódios que precisam ser esclarecidos.
Sul21 – De qual verdade o senhor está falando?
Wadih Damous – A verdade de que houve tortura e os
autores que torturaram não foram identificados na história. A verdade de
que milhares de pessoas estão desaparecidas. Precisamos saber quem os
fez desaparecer. E, se os mataram, a mando de quem o fizeram? Onde estão
enterrados os corpos? Então, existe uma série de perguntas sem
respostas deste período que precisam vir à tona. Para isso, confiamos na
capacidade da Comissão da Verdade.
Sul21 – A Lei de Acesso à Informação e a Comissão da Verdade
foram duas conquistas importantes para a democracia, mas entidades e
ativistas dos Direitos Humanos alegam que no formato em que foi
instituída e com alguns de seus integrantes, ela corre risco de ser
ineficiente.
Wadih Damous – Isso vai depender do trabalho que for
feito pela Comissão da Verdade e do que ela irá conseguir de fato
apurar. Eu não sei exatamente o que alguns críticos qualificam como
‘meia verdade’. Se for o fato da Comissão ser criada para apurar as
arbitrariedades cometidas pelo Estado e os atentados aos direitos
humanos e desejarem também que se investigue os perseguidos políticos, é
algo descabido. Porque quando se fala em Direitos Humanos, nós estamos
falando de práticas cometidas pelo Estado, pelos agentes públicos. E é
isto que a Comissão da Verdade vai investigar. Dizer onde algum
desaparecido foi enterrado, revelar o nome de quem torturou ou matou não
é meia verdade, é uma verdade inteira. Não aceitamos este tipo de
crítica.
Sul21 – Mas a Comissão da Verdade do Brasil, diferente de
outros países, como Argentina, África, não punirá os agentes da tortura.
Wadih Damous – Cada país tem seu processo e
condicionâncias da história. Aqui o caminho que se encontrou foi este.
Infelizmente o Supremo Tribunal Federal entendeu que os agentes públicos
que cometeram estas atrocidades e atos bárbaros estavam anistiados,
perdoados. Então, a Comissão da Verdade foi criada neste contexto de
interpretação da Lei de Anistia. Mas, de fato, ela acaba limitada. Se
comparado com as comissões de outros países que também passaram por
ditaduras, ela é limitada. Realmente, não punir é uma limitação que nós
teremos.
“ Ao anistiar torturadores, o Brasil está na contramão de toda a Justiça internacional”
Sul21 – Sobre os crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis
na maior parte do mundo, o Brasil descumpre as recomendações da
Organização dos Estados Americanos (OEA) ao não revisar a Lei de
Anistia. O presidente da OAB nacional, Ophir Cavalcante, afirmou ao Sul21 que isto é um desrespeito com a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Qual a sua posição?
Wadih Damous – Sem sombra de dúvida. Ao anistiar
torturadores, o Brasil está na contramão de toda a Justiça
internacional, que age no sentido de não reconhecer leis de autoanistia e
de considerar imprescritíveis os crimes de lesa-humanidade, como os
praticados pelos agentes da ditadura brasileira. O STF já decidiu que
as normas internacionais têm natureza supralegal no ordenamento jurídico
brasileiro, mas isso não quer dizer que as decisões emanadas da Corte
Interamericana sejam hierarquicamente inferiores às suas. Ao contrário.
Tampouco se pode falar em atentado à soberania nacional, por dois
motivos: a Corte Interamericana não usurpa a competência do STF de
analisar a constitucionalidade das leis brasileiras, já que sua análise é
de convencionalidade, de adequação das leis à convenção, e soberania
não é conceito absoluto. Sendo assim, só caberia uma decisão legítima a
partir do requerimento feito pelo Conselho Federal da OAB: o
reconhecimento de que a decisão da Corte Interamericana tem validade
jurídica plena no Brasil, tendo retirado do mundo jurídico a Lei de
Anistia brasileira. O que não aconteceu.
Sul21 – Recentemente o Ministério Público Federal (MPF)
descobriu uma brecha na Lei de Anistia e o Brasil tem a possibilidade de
voltar atrás no perdão dado aos torturadores quando o Supremo Tribunal
Federal não revisou a Lei de Anistia em 2010. Qual a sua avaliação sobre
a tese jurídica do caso do coronel Sebastião Curió Rodrigues de Moura
(que considera o sequestro não resolvido de militantes políticos, dos
quais o coronel é acusado, como ainda em andamento e portanto não
passível de prescrição)?
Wadih Damous – Os procuradores da República têm
tentando encontrar uma brecha para rever a Lei de Anistia no Brasil, mas
ainda não conseguiram. As teses não encontram respaldo do Judiciário.
No caso de Curió, foi uma interpretação perfeita a feita pelos
procuradores do MPF. Eles merecem todo nosso aplauso. Mas quem irá
decidir sobre a validade dela é o Poder Judiciário. Infelizmente, o
Judiciário tem arquivado estes procedimentos. Este é o grande obstáculo
que temos aqui no Brasil para punir estes agentes públicos. O
entendimento (do Judiciário) é de que, apesar da tese do MPF, os crimes estão prescritos e os agentes anistiados.
Sul21 – Ainda não há data para o STF julgar os embargos
declaratórios interpostos pela OAB, questionando a validade da Lei de
Anistia, mas o julgamento deve ocorrer em breve. A decisão esteve
marcada para o último dia 22 de março, mas a própria OAB pediu adiamento
porque o jurista Fabio Konder Comparato não poderia comparecer. Com
todos os novos fatos jurídicos e políticos e a nova presidência do STF, o
senhor imagina um desfecho diferente de 2010?
Wadih Damous – Assim nós esperamos e torcemos. Não
sei se no julgamento dos embargos a composição do STF já terá mudado.
Mas não é essa a tendência atual (derrubar a Lei da Anistia).
Neste momento, se fosse julgado hoje, acredito que a posição atual do
STF seria não rever sua decisão. Mesmo assim, nós estamos pressionando
para a revisão da posição anterior e que o Brasil trate de se adequar às
determinações da Corte Internacional de Direitos Humanos.
Sul21 – Esta convicção vem de alguma informação que o senhor dispõe?
Wadih Damous – Não. O Poder Judiciário brasileiro
tem uma vocação conservadora, tende sempre a manter suas decisões. Ainda
mais se tratando de uma decisão tão recente. Eu até agora não vi ou
ouvi nenhum ministro do STF dizendo que mudou de ideia ou que concorda
em rever posição. Então, isso me leva a fazer uma previsão. Eu tenho o
palpite que se for ser julgado os embargos hoje, não será revista a Lei
de Anistia.
“Já que o estado brasileiro não pune os responsáveis por crimes tão bárbaros, que eles sejam punidos moralmente. É o que os jovens estão fazendo”
Sul21 – Jovens militantes da justiça e da memória têm
promovido, em várias partes do país, atos públicos ridicularizando
militares e policiais acusados de envolvimento em torturas durante a
ditadura pós 1964. A OAB/RJ apoia o ‘esculacho’ feito pelo Levante
Popular da Juventude?
Wadih Damous – Mais uma vez os jovens, e aí pouco
importa qual ideologia que têm ou a que partido político estão filiados,
adotam atitudes corajosas. Talvez sequer os pais deles tenham
vivenciado o que foi de fato a ditadura militar. E eles, de forma muito
combativa, estão fazendo esta cobrança da retomada da memória e
condenação moral dos torturadores. Já que o estado brasileiro não pune
criminalmente os agentes públicos responsáveis por crimes tão bárbaros,
que eles sejam punidos moralmente. É o que os jovens estão fazendo. Ele
estão revelando algumas destas pessoas e apontando o dedo, dizendo o que
eles fizeram, práticas bárbaras e que maculam a história do Brasil. Nós
apoiamos este movimento e recebemos estes jovens aqui (OAB-RJ)
com muita satisfação. Eu afirmo que a OAB-RJ está absolutamente
empenhada no esclarecimento destes fatos, no sentindo de preservar a
memória do Brasil e revelação da verdade. Nós entendemos que a
democracia brasileira jamais se consolidará sem isto ser revelado.
Sul21 – Mas o promotor militar Otávio Bravo criticou a OAB do RJ em março, alegando falta de vontade do órgão em contribuir efetivamente com informações sobre o período da ditadura militar.
Wadih Damous – Eu fiquei espantado com a declaração
deste promotor, porque ele nos procurou na época e teve toda a nossa
atenção. Ele foi inclusive entrevistado pelo nosso jornal, uma
publicação da Ordem com 150 mil exemplares. Porém, ao que parece, ele
está muito mais preocupado em aparecer do que propriamente colaborar com
a busca pela verdade em relação aos episódios da ditadura militar.
Nesta declaração dele, ele talvez tenha nos confundido com órgãos de
informação, porque o que ele alega como informação necessária ele já
dispunha quando veio nos procurar. A afirmação dele de que defende uma
tese nova sobre os desaparecidos também não é verdadeira. É o MPF que
sustenta, com bravura e competência, a tese do crime continuado. De que o
sequestro e o desaparecimento forçado não têm data de inicio para
prescrição – portanto, são crimes que seguem acontecendo. Além disso,
fomos alertados por diversas entidades ligadas aos direitos humanos de
que ficaríamos vinculados a um Inquérito Policial Militar. E nós
consideramos em primeiro lugar que a competência jurídica neste tema é
da Justiça Federal e em segundo, não temos qualquer confiança de que
setores militares tenham competência para ajuizar este tipo de
investigação. Isso compete ao MPF.
Sul21 – Ele alegou ter enviado ofício algumas vezes sem nunca
obter respostas. Ele considerou no mínimo contraditório com o discurso
público da Ordem, que promove campanha e abaixo assinado pela abertura
dos arquivos.
Wadih Damous – Isso é uma inverdade. Eu desconheço a
trajetória deste procurador no combate à ditadura militar. A OAB-RJ tem
história neste sentido. É alguém que saiu da obscuridade e seguirá
falando sozinho.
Sul21 – O senhor confia na possibilidade de investigação e abertura dos arquivos da ditadura militar no Brasil?
Wadih Damous – A dificuldade será na localização dos
arquivos. Porque os detentores da ditadura militar afirmam que boa
parte dos documentos foi queimada. Primeiro temos que focar na abertura
dos arquivos já localizados e garantir que os agentes que integraram a
ditadura militar compareçam para serem ouvidos na Comissão da Verdade. E
que digam aquilo que devem dizer. Nós temos esperança de que a Comissão
da Verdade consiga efetivamente revelar esta face ainda oculta do
período do regime militar no Brasil e recupere a memória de tudo o que
está relacionado aos desaparecidos políticos.