sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

UM EPITÁFIO PARA O PT

Por Marco Arenhart.

A morte política do PT tem sido anunciada ou celebrada praticamente desde seu nascimento. Muitos desses anúncios têm pouca importância por serem apenas frutos de disputas e confrontações de adversários ou dissidentes. Eles podem ser contraditos facilmente como fazia Mark Twain, em relação aos seus freqüentes obituários: “as notícias sobre minha morte são um tanto prematuras”. Mas, hoje, podemos perceber um momento histórico no qual é preciso pensar seriamente em um epitáfio digno do grande partido operário brasileiro.

Compor epitáfios não é uma tarefa fácil. Registrar em pedra duradoura a síntese de uma vida, particularmente das intensamente vividas, é um compromisso demasiado sério – ou não. Este registro duradouro é uma tradição tão antiga quanto a escrita. Do relato da vida de faraós ao simples encomendar da alma aos deuses por um comerciante assírio, estes epitáfios constituem uma valiosa fonte para a compreensão da história humana, especialmente a partir da perspectiva das pessoas comuns.

Dos ex-votos das estrelas da antigüidade, que apelavam por favores divinos na próxima vida, os epitáfios evoluíram para assumir, em meados do século XIX, no ocidente, um tom irônico, mesmo jocoso, as vezes desafiando a morte e os vivos. Devemos encarar essas mudanças no caráter das mensagens à posteridade como fruto do secularismo que impregnou a cultura contemporânea. Sem o conforto metafísico da eternidade da alma, o humor acaba sendo um grande aliado. Graças a isso, ao invés de prometer sacrifícios de cabras ou votos de castidade, muitos epitáfios nos presentearam com verdadeiros diamantes literários.

Um rápido passeio entre essas mensagens garante muitas reflexões e uma boa diversão:

No túmulo de de Robespierre:

Passant, ne pleure pas ma mort (Passante, não chores minha morte)

Si je vivais tu serais mort. (Se eu vivesse tu estarias morto)

Em um cemitério de Thurmont, Maryland

Aqui jaz um ateu completamente vestido para não ir a lugar algum.


De Moliere, escrito por ele mesmo:

Aqui jaz Moliere o rei dos atores

Neste momento se faz de morto

e de verdade o faz muito bem


De William Shakespeare

Good friend for Jesus sake forebear

To dig the dust enclosed here

Blessed be the man that spares these stones

And cursed be he that moves my bones

(Caro amigo em nome de Jesus abstenha-se

De cavar o pó que aqui se encontra

Abençoado o homem que preserve estas pedras

E amaldiçoado seja aquele que mover meus ossos)

De Werner Heisenberg (que formulou o princípio da incerteza)

He lies here, somewhere. (Ele jaz aqui, em algum lugar.)

De Groucho Marx

Groucho Marx 1890-1977 (mas ele queria: “Desculpe-me mas não posso levantar.”)

De Karl Marx

Trabalhadores de todas as nações, unam-se. Os filósofos tem apenas interpretado o mundo de várias formas; a questão é mudá-lo.

De Fernando Pessoa

Fui o que não sou

Do filósofo cínico Diógenes:

Ao morrer, joguem-me aos lobos

já estou acostumado

De George Bernard Shaw

I knew if I waited around long enough something like this would happen

(Eu sabia que se eu esperasse por aqui o bastante algo assim iria acontecer.)

Do Mausoléu de Júlio de Castilhos (do pensamento positivista de Augusto Comte):

Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos

Refletindo sobre esses epitáfios, sou obrigado a reconhecer que a tarefa à qual me propus está muito além de minha capacidade literária. Mas não sou pessoa de desistir facilmente e o ônus de encarar o resultado fica transferido para o leitor.

Propor um epitáfio para o PT é necessário, primeiro porque ele é digno de algo mais que uma sepultura de indigente sob o edifício da estatal eleitoral na qual a sigla se converteu; segundo porque os anúncios de sua morte, feitos por detratores costumeiros ou por aqueles que desejam construir seus “own private PT” , alem de pouca credibilidade, não fazem justiça à bela experiência vivida por milhares de lutadores sociais deste país.

O PT sempre será o maior partido operário do Brasil.

Foi de fato um partido de caráter operário, por sua composição social, suas táticas políticas e seu esboço estratégico dos primeiros anos. A convergência entre lutadores sociais (assalariados, estudantes, ativistas comunitários, camponeses sem terra e pequenos agricultores, que compuseram a maioria numérica dos membros de milhares de núcleos de base que viabilizaram sua organização) e grupos que defendiam uma estratégia socialista e marxista. Todos esses deram ao partido o potencial de vir a ser um instrumento de profundas transformações sociais e mesmo, dentro de conjunturas especiais, um vir a ser revolucionário. Mas, é obvio, isto nunca passou de uma mera possibilidade. Livros e mais livros estão sendo e serão escritos para entendermos como e porquê o PT teve a trajetória que agora podemos ver em perspectiva. Podemos formular hipóteses sobre a conjuntura política global após a queda do muro, sobre o poder de cooptação do Estado clientelista latino-americano, sobre o caráter oportunista de Lula e dos chefes do campo majoritário, sobre as debilidades da esquerda petista, que não assumiu a responsabilidade da defesa da estratégia revolucionária dentro do partido (1) ; e assim por diante, até o infinito. Mas a evolução – ou melhor , deterioração – não nega seu caráter originário, como de inúmeros outros partidos ao longo dos últimos duzentos anos de luta operária.

Sempre será o maior porque antes dele houveram outros que não tiveram sequer perto da dimensão política e social do PT. Temos que reconhecer, também, o caráter de partido operário do PCB fundado em 1922, antes de resvalar para a abominação stalinista na década de 30. Mas ,neste período, o PCB teve pouca relevância . No futuro nenhum outro partido operário será maior que o PT pelo simples fato que a história da luta social já não comporta mais este tipo de partido. As transformações dos sujeitos políticos e sociais decorrentes da evolução do capitalismo demandam novas formas de luta e organização. Nove anos após Seatle, 14 anos após a insurgência zapatista, depois do FSM, passando pela reorganização dos mercados globais e pela precarização das relações formais de trabalho, faz sentido colocar o partido operário como sujeito central da luta? Lutar certamente é preciso. Mais do que nunca, pois o rumo da humanidade aponta não para sua libertação, mas para o aprofundamento da escravização pela mercadoria e pela tecnologia a serviço do capital. Porém as formas de luta precisam se adaptar à realidade política da época em que vivemos. Os clássicos da política são referências importantes, mas não manuais. Se o capitalismo se reinventa constantemente, precisamos reinventar também as formas de articulação da luta anti-capitalista no mesmo ritmo, dessacralizando nossas tradições e histórias, sem menosprezá-las. E ainda, precisamos discernir o que se deve transformar e o qual é excrescência que permanece.

Insisto, justamente por esta sua relevância histórica, que o partido transformador que idealizamos não pode ficar sem uma sepultura digna. Muitos dos seus feitos vão se desmanchando no ar e é por isso que uma mensagem precisa ser gravada de forma pétrea, para que não se esqueça tudo que ele representou. Ao menos uma lição precisa ser preservada.

Da sua morte política, se tínhamos alguma dúvida, ela se dissipou em razão esforço de alguns petistas. Presos aos princípios originais do partido por alguma dívida moral ou coisa parecida, articularam uma plataforma de “refundação” do PT. Formada por várias das correntes de “esquerda” e algumas figuras “históricas”, essa plataforma formulou a hipótese de que seria possível - dentro das limitações das compreensões políticas internas à própria plataforma – recolocar o partido no caminho da ação como sujeito de transformação social (dizer socialista seria ingenuidade demais). Apesar das idiossincrasias deste projeto, havia que se observar seu desfecho, porque, mesmo que não saísse vitorioso, poderia ter tido peso suficiente para estabelecer um ponto de virada no debate interno. Se a proposta de refundação tivesse quebrado a maioria absoluta do campo majoritário e ido para a disputa da presidência partidária em segundo turno, um fio de esperança poderia renascer. Afinal de contas, todo escândalo em torno do mensalão e das atribulações do comandante José Dirceu poderiam ter servido para abrir os olhos da militância. Mas, o resultado da eleição interna, realizada em fins de 2007, colocou a plataforma de “refundação” em terceiro lugar, tanto na composição do Diretório Nacional quanto na disputa pela Presidência, sendo superada no segundo lugar por uma anexo do campo majoritário, capitaneado pela máquina eleitoralista paulista. O resultado desta votação decisiva para o partido mostrou que a militância histórica e comprometida com um projeto de partido transformador, está sufocada no meio de filiações em massa de “cabos eleitorais” que vêem o PT como atalho para ascensão social. No final das contas, a 'combi-lotação' superou o projeto de “refundação”.

A única coisa que resta a esta militância sincera, porem cansada, atropelada pela história, que ainda sobrevive em meio às engrenagens da máquina eleitoral que chamam de PT, é achar um repouso para os ossos do que outrora fora seu partido. Mas como achar uma síntese de experiência tão rica que mereça os entalhes na lápide?

Nesta hora, vem em socorro o comandante Dirceu. Quem teve o duvidável prazer de ler a infame entrevista publicada na revista Piauí (2) (que pertence ao grupo editorial Abril), viu um desfile de confissões vergonhosas. Desde relatos de crimes de prevaricação, como ceder veículo de uma embaixada para fazer compras pessoais, até admitir abertamente o tráfico de influência, é tudo muito deprimente. Sem constrangimento admitiu que usa sua carteira de relações com integrantes do governo para articular lobies, como se ignorasse que o que esta vendendo não é o profissional independente José Dirceu mas o presidente do PT, o ministro da Casa Civil, o amigo do Lula etc. Dirceu parece concordar que o único crime punido no Brasil é ser pobre e por esta razão se esforça para manter-se longe da cadeia. Alem da falta de ética, Dirceu demonstra uma falta de caráter extraordinário - que deve ter sido a fonte do seu sucesso dentro do partido - ao levantar insinuações levianas contra seus desafetos (Heloisa Helena, Raul Pont). E, por final, uma pérola: “eu nunca fui estalinista!”. Desta afirmação se deduz que ele nunca compreendeu o verdadeiro caráter do stalinismo e, por extensão, do marxismo (o que seria verdade para muita gente, mas não para ele em particular) ou é um cínico de marca maior.

Se eu chegar a conclusão de que José Dirceu é o cínico que aparenta ser, nada mais justo do que aproveitar suas palavras para compor o derradeiro epitáfio para o PT (não a sigla da máquina eleitoral que, por muitos anos, permanecerá no cento do poder, mas o partido da transformação social que embalou nossos sonhos por duas décadas). Basta inverter o sentido e ai teremos sua visão sincera da realidade. De um artigo publicado na Folha de São Paulo em 13/02/08, podemos parafrasear:

“Aqui jaz o Partido dos Trabalhadores. Morreu porque não soube manter seus compromissos históricos, nem ser fiel a uma moral socialista, abandonando o povo brasileiro no combate por sua libertação.”

Parafraseando um pouco mais, busco de Getúlio Vargas o desfecho:

“Deixa a História para entrar na (boa) vida.”

Florianópolis, 23 de fevereiro de 2008.

1. Aqui abro um parêntese sobre a responsabilidade na defesa da estratégia revolucionária, assumida pelas correntes de esquerda. Por mais de 20 anos, militei no PT enquanto membro de uma das ditas correntes de esquerda revolucionárias. Mesmo a distância que mantenho agora não impede reconhecer que a teoria e o programa revolucionário que tínhamos credenciais para defender, eram e continuam sendo alguns dos bens mais preciosos da cultura política e o melhor que se pode despreender do marxismo. Não pretendo desmerecer o valor de outras tradições – anarquistas, autonomistas, situacionistas, utópicas, humanistas e outras, que compõem a diversidade de caminhos possíveis para a emancipação da humanidade. Apenas reafirmo minha opinião de que o marxismo continua sendo, apesar de subprodutos abomináveis que derivaram, o caminho mais consistente para a realização desta emancipação. Voltando para os grupos que atuavam no PT sob esta perspectiva estratégica, fica claro hoje que eles não estavam à altura da responsabilidade que reivindicavam. Recordo um episódio emblemático, quando , no final dos anos 80, no Rio Grande do Sul, Flávio Koutzi, em nome desta esquerda, disputava a candidatura de um cargo majoritário com um grande nome partidário (não recordo se era Olívio Dutra ou Tarso Genro). Nesta ocasião, Koutzi respondeu a uma matéria de um boletim partidário de São Paulo, indagado se levaria a disputa até as últimas conseqüências, que “não era irresponsável”. O que Koutzi quis dizer foi que, embora houvesse uma disputa de estratégia, o eleitoralismo superava de longe qualquer outro projeto. A responsabilidade da esquerda petista, apesar de dar o colorido da diversidade ideológica ao partido, era fundamentalmente contribuir com a contabilização de votos para o partido e , é claro, receber seu quinhão dos frutos obtidos, como pode ser visto anos mais tarde no loteamento de ministérios do governo Lula.

2. Edição de janeiro/2008, www.revistapiaui.com.br .

Nenhum comentário: