Wladimir Pomar - Correio da Cidadania
Os argumentos teóricos de alguns setores da esquerda, contrários ao
governo Lula, reconhecem que nesse governo o Estado não é somente financiador e investidor, mas também instrumento provedor de políticas sociais, sobretudo de mitigação da pobreza.
Eles também reconhecem que, ao contrário da política exterior raquítica
do governo FHC, a política internacional de Lula caracteriza-se pelo
reposicionamento do Brasil na geopolítica mundial. Tal reposicionamento
teria elevado o Brasil à condição de potência e o transformado num player global.
Ainda segundo eles, com Lula o país teria se tornado uma nação
estratégica no continente latino-americano, fazendo-se ouvir nos
grandes fóruns internacionais. De mero coadjuvante, o Brasil teria
passado a importante protagonista nos debates mundiais.
Por outro lado, aqueles argumentos teóricos sustentam que a política
interna de Lula, embora se contrapondo à hegemonia da aliança
tucano-pefelista, mas secundada pelo adesismo peemedebista, transformou
seu governo no tertius da luta de classes.
Isto é, conciliador de classes, absorvendo as representações
corporativas de trabalhadores e empresários, mediando e administrando
interesses conflitantes.
Aqui, limitam-se a fazer analogia do governo Lula com o governo FHC.
Asseguram que Lula manteve a macroeconomia do governo anterior, tendo
como pilares a disciplina fiscal e monetária. Neste sentido, os sinais
seriam abundantes: aumento na taxa de juros, aumento do superávit
primário, cortes no orçamento que atingiram a área social, renovação do
acordo com o FMI etc. etc.
Assim, a expectativa da chegada de Lula ao poder, que deveria refundar o Brasil, dar início a uma nova era, reagir ao Consenso de Washington, trilhar caminhos diferentes da ortodoxia neoliberal e retomar um projeto de nação, de caráter nacional popular,
teria sido frustrada desde a guinada da Carta ao Povo Brasileiro, de
2002, que reafirmara o compromisso em honrar os pagamentos aos
credores.
Esses argumentos teóricos pecam, preliminarmente, em dissociar a política externa da interna e colocar as expectativas
fora do contexto. Qual era a real correlação de forças que poderia
levar Lula e o PT, não ao poder, mas apenas ao governo? Só os
sonhadores, desligados da realidade social e política do país, poderiam
supor que a vitória eleitoral de Lula propiciaria uma refundação do Brasil. Aliás, o próprio uso do conceito de refundação demonstra alienação diante da evolução e do desenvolvimento histórico.
A vitória de Lula começou a se delinear já em 2000, não pela ascensão
das mobilizações e lutas sociais, mas pelo aprofundamento das divisões
no seio da burguesia, diante do estrago que a política neoliberal de recomposição patrimonial da riqueza brasileira causava a grandes parcelas das burguesias industrial e comercial e das pequenas burguesias urbana e rural.
Portanto, a tática política que poderia levar à vitória eleitoral de
Lula teria que considerar seriamente a aliança com esses setores da
burguesia. Por um lado, para isolar a grande burguesia, especialmente
seu setor financeiro. Por outro, para fazer com que a burguesia
afrouxasse sua hegemonia ideológica histórica sobre grandes parcelas
populares, deixando momentaneamente de lado seu mote de que um operário seria incapaz de governar o país.
Em outras palavras, falando francamente, Lula chegou ao governo não só
porque a burguesia estava dividida, mas porque uma parte dela saiu da
neutralidade e o apoiou, permitindo-lhe cravar com mais facilidade, nas
mentes e corações da grande massa popular do país, a idéia de que
alguém, com mente e coração iguais, poderia governar e fazer muito mais
por ela e pelo país.
Achar que isso não imporia um preço à vitória é pensamento típico de
idealistas que desdenham a realidade. Para piorar, a burguesia
financeira nacional e internacional deu indicações de que estava
disposta a retaliar seriamente, caso Lula seguisse os conselhos de refundar o país, não pagar aos credores
etc. etc. Subestimar o poderio e a capacidade desse setor da burguesia,
e pagar para ver, talvez não fosse a atitude tática mais adequada. A
Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, foi um recuo tático e o preço pago
para não correr tal risco.
É evidente que, também em política, só se resolve um problema criando
dois ou mais. Os recuos programáticos e as alianças levaram à
incorporação de aliados duvidosos a postos chaves do governo, e alguns
petistas tomaram o recuo tático como estratégico, causando ainda
maiores dificuldades para a retomada da iniciativa política.
Neste sentido, alguns sinais de continuísmo foram
realmente abundantes. O Banco Central continuou utilizando as taxas de
juros como instrumento de controle, não só da inflação, mas também de
qualquer tentativa de crescimento. O superávit primário manteve o
sistema financeiro tranqüilo, mas impediu a elevação da taxa de
investimento. Cortes no orçamento atingiram algumas áreas sociais,
penalizando principalmente setores médios da população. E a renovação
do acordo com o FMI foi uma indicação de que o governo não pretendia
confrontos com o sistema financeiro internacional.
No entanto, também havia sinais de que o governo Lula
trabalhava para realizar uma inflexão de rota, embora de forma
silenciosa e paulatina, e evitando confrontos. Alguns desses sinais já
eram evidentes no programa contra a fome, na retomada do planejamento,
nos esforços para realizar investimentos estatais e configurar uma
política industrial, na diversificação das parcerias econômicas e
políticas internacionais, na política de integração sul-americana e na
firmeza de contrapor-se às tentativas de criminalização dos movimentos
sociais.
Os teóricos de diferentes procedências desprezaram tais sinais, simplesmente porque jogariam por terra a analogia com o governo FHC. Porém, o que mais impressiona é que, mesmo com tais sinais de mudança de rota
suficientemente evidentes, os argumentos daquelas parcelas da esquerda
continuem dando ênfase a sinais de continuidade que já foram superados,
ou estão em processo de superação.
Wladimir Pomar é analista político e escritor.
Um comentário:
excelente análise
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