"A Civilização ficou cega frente à natureza"
Os recentes terremotos no Haiti e no
Chile trouxeram mais uma vez ao noticiário global perguntas perplexas
sobre o que estaria acontecendo com a natureza. Desde o final do século
XX, sentimentos catastrofistas tornaram-se mercadoria comum nos meios de
comunicação e na indústria de entretenimento, especialmente no cinema.
Mas estará, de fato, ocorrendo algo incomum? Na avaliação do geólogo
Rualdo Menegat, professor do Departamento de Paleontologia e
Estratigrafia do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (Ufrgs), o único fenômeno novo que esses terremotos estão
mostrando é a progressiva cegueira da civilização humana contemporânea
em relação à natureza. Ele alerta que a humanidade está bordejando todos
os limites perigosos do planeta Terra e se aproxima cada vez mais de
áreas de riscos, como bordas de vulcões e regiões altamente sísmicas.
“Estamos ocupando locais que, há 50 anos atrás, não ocupávamos. Como as
nossas cidades estão ficando gigantes e cegas, elas não enxergam o
tamanho do precipício, a proporção do perigo desses locais que elas
ocupam”.
Em entrevista à Adverso, Menegat relata sua vivência de um terremoto no Peru e critica as sociedades contemporâneas que não conseguem manter memórias dos fenômenos naturais, como mantinham os povos míticos, que eram capazes disso, justamente por causa do mito. “O nosso sistema cultural, por dar as costas tão violentamente à natureza, está sofrendo enormemente. Essa civilização excessivamente urbana que esquece do meio ambiente está sofrendo e tem gente que chama isso de “vingança da natureza”. Mas o universo não é um ser animado que se vinga. O que ocorre é uma falência cultural da civilização que, por ser muito grande, tornou-se autônoma em relação à natureza, ou melhor, tornou-se cega à ela”. E a mídia, adverte o geólogo, contribui enormemente para isso, ao espetacularizar essas tragédias naturais.
Por: Marco Aurélio Weissheimer
Adverso- Qual sua avaliação sobre a percepção que a população tem hoje de fenômenos como os terremotos do Haiti e do Chile a partir da cobertura que os meios de comunicação fazem sobre esses acontecimentos?
Rualdo Menegat - Há três coisas aí que precisamos reconhecer. A primeira é que a vida urbana contemporânea está tão absorvente - faz com que as pessoas fiquem tão ligadas em suas rotinas - que parece que nada pode atrapalhar esse modo de existência. Mas, felizmente, ainda temos natureza. Há um universo aí fora, que requer atenção humana, pois é em relação a ele que podemos ou não construir o processo civilizatório. Quem determina essas possibilidades civilizatórias ainda são os processos dinâmicos da Terra. Vivendo em um mundo absorvido pela máquina urbana, nós pensamos que somos absolutamente autônomos em relação à natureza. Não somos.
A segunda questão diz respeito ao trabalho da imprensa, que torna os fenômenos naturais que afligem a humanidade em espetáculos. Ela espetaculariza essas tragédias de uma maneira que não ajuda as pessoas entenderem que há uma manifestação das forças naturais aí e que nós precisamos saber nos precaver. Isso é o que chamamos de civilização: a forma de ocupar uma determinada região da Terra de modo que seja possível garantir proteção, alimentos, segurança e longevidade a um grupo humano. A maneira como a grande imprensa trata estes acontecimentos (como vulcões, terremotos e enchentes), ao invés de provocar uma reflexão sobre o nosso lugar na natureza, traz apenas as imagens de algo que veio interromper o que não poderia ser interrompido, a saber, a nossa rotina urbana. Essa percepção de que nosso dia a dia não pode ser interrompido pelas manifestação das forças naturais está ligada à ideia de que somos sobrenaturais, de que estamos para além da natureza.
A terceira e importante questão é que, de fato, estamos diante de uma humanidade gigantesca. Isso é algo muito difícil para nossa percepção cotidiana. Estamos falando de 6 bilhões e 700 milhões de habitantes, dos quais mais da metade, cerca de 3,7 bilhões, vive em cidades. Essas urbes que nos capturam e nos deixam absorvidos por seus afazeres e rotinas. Uma população com tais dimensões, espalhada sobre a superfície do globo, leva a uma situação inédita em termos humanos: para cada movimento da dinâmica natural do planeta temos um impacto em termos de vidas e de recursos materiais e também uma informação imediata.
Isso aumenta a percepção da tragédia como algo assustador. A humanidade gigantesca já está bordejando todos os limites perigosos do planeta Terra. Estamos na borda dos grandes vulcões, na borda das placas tectônicas. Estamos ocupando locais que, há 50 anos atrás, não ocupávamos. Como as nossas cidades estão ficando muito gigantes e as pessoas estão cegas, elas não se dão conta do tamanho do precipício e do tamanho do perigo desses locais onde estão instaladas. Isso faz também com que tenhamos uma visão dessas catástrofes como algo surpreendente. Então, um terremoto no Haiti é recebido como um imprevisto quando todos nós sabemos, pelos estudos geológicos e pelos mapas que já estão prontos, que se trata de uma zona de alto risco sísmico.
Temos vários exemplos disso. A missão do Exército brasileiro no Haiti e uma missão da ONU deram sinais de que não sabiam desse risco. Um soldado relatou que ao mesmo tempo em que fotografava uma igreja que caía por causa do tremor, não sabia o que estava acontecendo. Isso indica que a missão da ONU não tinha conhecimento do terreno, do caráter físico do local para onde foi enviada. E mostra o quão pouco a humanidade está se importando com as questões da natureza. E, neste contexto, o terremoto, a catástrofe, acaba sendo uma surpresa. Bem, o Haiti era a crônica de uma morte anunciada. E, lamentavelmente, uma tragédia deste tipo afeta com muito mais gravidade os pobres. Então, toda essa cegueira humana perante a natureza e a dinâmica da Terra tem uma consequência muito mais grave, pois implica que nem todos sofram da mesma maneira.
Os pobres são os maiores afetados pela cegueira urbana. Isso precisa ser visto em várias medidas. Tivemos uma dimensão sem precedentes como a do Haiti, com mais de 230 mil mortos, quase todos pobres, e uma situação como a de Niterói, no Rio de Janeiro. Nas catástrofes brasileiras quem padece também são os menos privilegiados. As classes média e alta estão, em geral, melhor posicionadas no terreno desta mega-cidade global. Se olharmos um mapa do globo feito com a ajuda de satélites, só pelas luzes das cidades temos um mapeamento das bordas dos continentes, que são bordas de placas tectônicas. Vemos o quanto a humanidade está alastrada até os limites máximos dos grandes perigos da dinâmica terrestre.
Adverso- De um modo metafórico, poderíamos lembrar daquela imagem que os antigos tinham de uma Terra plana e cujos mares acabariam em um abismo. Havia uma noção de limite nesta idéia, que a humanidade parece ter perdido...
Rualdo Menegat - Sim. Embora a imagem estivesse errada na sua forma, ela estava correta no seu conteúdo. Nós temos limites evidentes de ocupação no planeta Terra. Não podemos ocupar o fundo dos mares, não podemos ocupar arcos vulcânicos, não podemos ocupar de forma intensiva bordas de placas tectônicas ativas, como o Japão, o Chile, toda borda andina, a borda do oeste americano, como Anatólia, na Turquia...
Adverso- A impressão que se tem é que o ser humano, na verdade, não quer enxergar...
Rualdo Menegat - Estamos vivendo um processo perigoso de cegueira cultural urbana no mundo contemporâneo. Neste contexto, a catástrofe aparece como espetáculo, como surpresa, e nós, cidadãos, ficamos reféns deste jogo que a grande mídia nos oferece. Ao fazer isso, ela se recusa a ser um instrumento de culturalização, que ajude a sociedade a entender e se preparar para enfrentar esses fenômenos.
Eu tive uma rica vivência neste sentido na belíssima cidade peruana de Arequipa, uma cidade organizada toda em xadrez, com edificações históricas feitas em blocos de rocha vulcânica branca. Devido ao centro de Arequipa ser tão bonito, a cidade foi crescendo olhando para esse centro. E esse crescimento se deu da região central para trás, para as bordas do local. Nos últimos 40 anos, ela cresceu tanto que foi empurrada para a saia do vulcão que emoldura sua paisagem. Arequipa tem hoje 800 mil habitantes e foi empurrada para a saia de um vulcão!
Eu vivi uma experiência de terremoto em Arequipa, onde estava fazendo a pesquisa de meu doutorado, um terremoto de 6,8 pontos na escala Richter e que abalou a cidade. Como um dos poucos geólogos na cidade, fui convocado pelas autoridades para participar do Comitê de Defesa Civil que agiu após o tremor. Pude constatar diretamente a consequência do nosso despreparo cultural para enfrentar esse tipo de problema. A Defesa Civil era desorganizada e parecia não esperar nunca um terremoto. A população também não contava que a Defesa Civil fosse a campo e não respondeu a esse trabalho. Ir a campo, neste caso, significa vistoriar as habitações e edificações. Nós fomos realizar este serviço e encontramos as portas todas as trancadas, com as pessoas com medo de ter que abandonar suas casas e pertences. Isso, é claro, aumenta as chances da tragédia crescer. Nós temíamos novos abalos, o que, de fato, aconteceu. Felizmente foram de magnitudes menores e não causaram grandes danos.
Isso é a cegueira urbana. Todas as cidades contemporâneas estão na mesma situação. Se os cidadãos de Arequipa quisessem falar de Porto Alegre poderiam dizer que nós, portoalegrenses, também temos a mesma cegueira. Nós conseguimos infestar um importante corpo de água que é o Guaíba. Emporcalhamos a água que usamos para beber. Isso não é cegueira? Que ser vivo no planeta polui a própria água que bebe? E podemos falar a mesma coisa de cidades como São Paulo, Paris, Londres e tantas outras.
Adverso- Na sua opinião, existe alguma possibilidade da humanidade resgatar a consciência necessária para se viver em paz com a natureza?
Rualdo Menegat - Claro, para isso é preciso educação, é preciso uma culturalização nesse sentido. Precisamos tornar a natureza algo presente na vida humana. Temos como cultura sempre o dogma tecnológico, acreditando que a tecnologia nos salvará. Algumas pessoas poderiam perguntar: mas nós não temos tecnologia para prever esses terremotos? Não, não temos. Não temos tecnologia para tudo. Além disso, conhecer a Terra e a natureza não é uma prioridade cultural. A prioridade tem sido gastar milhões de dólares acelerando uma partícula subatômica em Genebra. Essa é, no momento, a prioridade cultural da nossa civilização. Faltarão milhões de dólares para fazer as pesquisas sobre terremotos. É uma civilização que não aposta no conhecimento da Terra, de sua paisagem, de sua região. Nós, portoalegrenses, não estamos interessados em conhecer o local onde vivemos. E isso não é um traço terceiromundista. Se vamos para Nova York é a mesma coisa.
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