Serra e a direita kamikase
Por Márcia Denser*, no Congresso em Foco via Viomundo
“Ao sugerir extiguir o Mercosul, o que Serra propõe é um caminho
suicida, desfavorável para o pais como um todo: sair do integrador
periférico e submeter-se completamente às turbulências do mercado
internacional”
Em nossos dias, optar por correr na contramão da História não leva
meramente ao retrocesso – sempre corrigível lá na frente – mas ao
suicídio, este sem volta. Porque a megacrise de 2008, que decretou a
morte do neoliberalismo global como ideologia e política hegemônica,
determinou duas conseqüências importantes:
1) globalmente,forçou os vários países a um movimento autodefensivo
integrador-regionalista como estratégia, não só de evasão da crise, mas
já apontando, em seus desdobramentos, para um novo realinhamento de
forças político-comerciais globais, índice claro do fim dum mundo
unipolar comandado pelos EUA;
2) globalmente, deixou como viúvas as chamadas “direitas loucas”,
praticantes do kamikazismo histórico, representando setores agora
mergulhados numa crise sistêmica que vai jogando-os numa posição
caótica, não só no nível econômico, como também no plano psicológico – o
que os torna cada vez mais perigosos e imprevisíveis.
Segundo a excelente análise de Jorge Beinstein, economista e
professor da Universidade de Buenos Aires (Carta Maior em 02/05/2010),
um bom exemplo disto é a proposta de Serra no sentido de revisar,
“flexibilizar” e até abolir os acordos do Mercosul, uma posição
direitista kamikase que, se mantida, levaria ao suicídio do sistema
industrial brasileiro que ficaria exposto à feroz concorrência na
América Latina de países desesperados por aumentar suas vendas, a
começar dos gigantes econômicos como Alemanha, França, Espanha, na UE,
EUA e até China (que acaba de registrar seu primeiro déficit comercial
em cinco anos) – todos acossados pela contração do comércio
internacional provocada pela crise. Em 2009, as exportações brasileiras
caíram cerca de 22% devido à crise,mas essa queda teria sido muito maior
sem a existência da retaguarda latinoamericana, sem esses países
vizinhos ligados ao Brasil por múltiplos laços econômicos, políticos e
culturais. Romper ou “flexibilizar” esses laços em um contexto
internacional como o atual, marcado por uma crise que vai se agravando
seria uma loucura. O Brasil estaria dando de presente a sua parte dos
mercados regionais a competidores de todos os continentes.
A proposta de Serra vai na contramão da tendência global dominante
rumo às integrações periféricas em resposta às crescentes dificuldades
das economias das potências centrais (EUA, União Européia e Japão). No
começo de 2010, a China firmou acordo de integração comercial com os
países do Sudeste Asiático, agrupados na ASEAN, um mercado com cerca de
1,9 bilhão de pessoas, e a ASEAN, por sua vez, fez acordo semelhante com
a Índia. Somados os dois acordos e as populações envolvidas (China,
Índia e países da ASEAN) chega-se a cerca de três bilhões de pessoas, ou
seja, quase 45% da população mundial. E esse processo está relacionado
com a integração entre China e Rússia que, através da Organização de
Cooperação de Shangai, agrupa as ex-repúblicas soviéticas da Ásia
Central, devendo também integrar proximamente Índia, Paquistão, Mongólia
e Irã.
Este movimento de integração eurasiática incluindo mais da metade da
população mundial está mudando não só a estrutura do comércio
internacional, mas também suas relações políticas e militares, e é hoje o
coração do processo de despolarização mundial, do fim da unipolaridade
norte-americana. A outra tendência integradora importante é a da América
Latina que, partindo do Mercosul, foi se ampliando, incluindo a Unasul
(390 milhões de habitantes) e a recentemente criada Comunidade de
Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELC).
O vínculo entre esses dois fenômenos regionais é o BRIC –
convergência entre Brasil, Rússia, Índia e China, onde o Brasil é
precisamente o elo que os articula estrategicamente. O que Serra propõe é
um caminho suicida, desfavorável para o pais como um todo (e a médio
prazo, desfavorável até mesmo para a elite que ele representa) ou seja:
sair do integrador periférico e submeter-se completamente às
turbulências do mercado internacional sem nenhum tipo de escudo protetor
regional. Assim, o Brasil passaria a fazer parte da estratégia de
recomposição geopolítica imperial dos EUA, cujo objetivo principal é a
desestruturação das integrações regionais tanto na Eurásia quanto na
América Latina.
Beinstein enfatiza: “Serra propõe substituir o Mercosul e as demais
alianças periféricas (Unasul, BRIC, etc.) por um conjunto de tratados de
livre comércio. A retirada política do Brasil significaria
automaticamente um decisivo aumento da influência dos EUA na América
Latina, abrindo o caminho para suas estratégias de desestabilização e
conquista. O contexto regional de estabilidade obtido na década passada
se deterioraria rapidamente, convertendo uma parte importante do entorno
geográfico do Brasil numa área caótica, infestada de frentes
reacionárias que finalmente conseguiriam afetar nossa estabilidade
democrática e dinâmica produtiva.”
No esquema Serra, sem a rede protetora de tais acordos, o Brasil
teria só um caminho para continuar se desenvolvendo num mundo cada vez
mais hostil: o da competição selvagem respaldada pelo arrocho salarial e
impostos reduzidos para os ricos, ou seja, apoiada na miséria crescente
do grosso de sua população (começando pelos assalariados e seguindo
pelas classes médias), no encolhimento do Estado e, inevitavelmente, na
expansão das estruturas repressivas, e assim na rápida deterioração das
liberdades democráticas.
Em síntese, é um processo que começa com um discurso comercial e
culmina inexoravelmente num modelo político claramente autoritário.
Deste modo, Serra passa a formar parte do grupo de políticos
latino-americanos de raiz neoliberal, nostálgicos das velhas relações
neocoloniais com o Império. Estes políticos, superados pelas tendências
integradoras e autonomizantes hoje dominantes, precisam desesperadamente
reconquistar o poder, mas a realidade lhes escapa porque agora o
momento histórico é seu inimigo.
Cresce assustadoramente a irracionalidade nos sistemas de poder do
centro decadente do mundo e, num movimento mimético, também em seus
lacaios periféricos. Hoje, as direitas loucas expressam não só o passado
(neoliberal) mas, sobretudo, a garantia dum futuro sinistro. Se Serra
pretende realmente posicionar-se como o anti-Lula, com o dito no 1º. de
maio: “Quem fuma é uma pessoa sem Deus”, ele se define por completo: um
composto ruinoso de preconceito, truculência, irracionalidade,
excludência burra e, claro, primeiro lugar absoluto em matéria de gafe
política.
Só que, na verdade, não foi irracional e muito menos, gafe. Segundo
editorial da Carta Maior, o dito condensa mais uma pérola do oportunismo
eleitoral tucano: “De um lado, encontra-se aquilo que a Folha denomina
como sendo ‘a classe média iluminista’, preocupada com o consumo
politicamente correto e a descarbonização do seu almoço sob o
capitalismo. Do outro, segmentos da pobreza urbana abandonados pela
Igreja Católica e capturados pelo salvacionismo religioso, como o da
Assembléia de Deus, de Marina Silva, que patrocinou a pregação de Serra.
A operação embutida na frase do tucano busca dar a esse coquetel uma
coerência ideológica baseada na idéia de que a questão social no século
XXI será resolvida pela ‘técnica’ (agenda verde + ‘gestão eficiente’) e
pelo fanatismo religioso.”
Em suma: expressando o pensamento da direita, Serra nunca falou tão
sério em sua vida!
*A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango
Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado
(1984), Diana caçadora (1986), A Ponte das Estrelas (1990), Toda Prosa
(2002 – Esgotado), Diana Caçadora/Tango Fantasma (2003,Ateliê Editorial,
reedição), Caim (Record, 2006), Toda Prosa II – Obra Escolhida (Record,
2008). É traduzida na Holanda, Bulgária, Hungria, Estados Unidos,
Alemanha, Suiça, Argentina e Espanha (catalão e galaico-português). Dois
de seus contos – O Vampiro da Alameda Casabranca e Hell’s Angel – foram
incluídos nos 100 Melhores Contos Brasileiros do Século, sendo que
Hell’s Angel está também entre os 100 Melhores Contos Eróticos
Universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, é pesquisadora
de literatura, jornalista e curadora de Literatura da Biblioteca Sérgio
Milliet em São Paulo.
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