Felipe Prestes no SUL21
Como se não bastassem as mazelas de uma política instável e as
dificuldades socioeconômicas e ambientais, o Haiti tem sido assolado por
tragédias em 2010. Os problemas não cessaram, depois que a capital
Porto Príncipe foi destruída por um terremoto, que provocou a morte de
300 mil pessoas e deixou 1,5 milhão desabrigadas. Agora, uma epidemia de
cólera se alastra pelo país, que também sofre com a costumeira passagem
de furacões.
Um pequeno grupo de brasileiros, coordenado pela Via Campesina, trabalha para amenizar as dificuldades por que passa o povo haitiano e para que a imagem do país mundo afora não fique marcada apenas por tragédias e miséria. O gaúcho José Luis Patrola coordena o grupo da Via Campesina, batizado de Brigada Dessalines (Dessalines foi um dos heróis da independência haitiana), que desde 2009 coopera com camponeses haitianos. Patrola está no centro de apoio do grupo, que fica na província de Latibonit, região mais atingida pela epidemia de cólera.
Um pequeno grupo de brasileiros, coordenado pela Via Campesina, trabalha para amenizar as dificuldades por que passa o povo haitiano e para que a imagem do país mundo afora não fique marcada apenas por tragédias e miséria. O gaúcho José Luis Patrola coordena o grupo da Via Campesina, batizado de Brigada Dessalines (Dessalines foi um dos heróis da independência haitiana), que desde 2009 coopera com camponeses haitianos. Patrola está no centro de apoio do grupo, que fica na província de Latibonit, região mais atingida pela epidemia de cólera.
Ele conta, por e-mail, que o número de mortos pela doença já
ultrapassou os 1.110, e que há 18.382 haitianos hospitalizados. O
problema se deve especialmente à qualidade da água no país – é pela água
contaminada que a cólera se espalha – e também pela precariedade dos
serviços de prevenção e tratamento. Em países com melhores condições, a
cólera já não é, há bastante tempo, uma doença tão letal. “A grande
maioria dos mortos são camponeses da região de Latbonit que consumiram
água contaminada. Os hospitais da região estão lotados há um mês”, conta
Patrola.
Para Patrola, a comunidade internacional precisa repensar o tipo de
auxílio que dá ao Haiti. Ele explica que problemas estruturais do país
precisam ser resolvidos. Não bastam paliativos emergenciais. A passagem
do furacão Tomas, por exemplo, há duas semanas, devastou plantações nas
regiões Sul e Noroeste do país e pode gerar desabastecimento de
alimentos no Haiti nos próximos meses. “O Haiti vive um grave problema
de desmatamento, acompanhado por técnicas agrícolas predatórias ao meio
ambiente, que levarão a um caos generalizado caso o problema não se
resolva de maneira sólida”, explica.
É o que explica também o colega de Patrola, o alagoano Thalles Gomes.
“Uma das grandes crises do Haiti é ambiental: 95% do país estão
desmatados. Isso agrava o efeito de terremotos e ciclones”, diz. Gomes
faz parte da Brigada Dessalines e esteve no Haiti entre abril e outubro
de 2010. De passagem por Porto Alegre, nesta semana, teve um longa
conversa com o Sul21.
Thalles conta que o grupo trabalha no Haiti desde 2009. Os objetivos
principais são a cooperação agrícola e o auxílio aos camponeses
haitianos, para que estes problemas ambientais possam ser sanados. Em
2010, a Brigada Dessalines já instalou 1.300 cisternas no interior do
Haiti. As cisternas, feitas de polietileno (um tipo de plástico), são
são fáceis de instalar e utilizadas em emergências. Foram obtidas em
parceria com o governo da Bahia.
O grupo também ajudou a formar seis bancos de sementes no país,
porque grande parte dos camponeses não consegue armazenar sementes e
precisa comprá-las. E criou ainda viveiros de mudas, para auxiliar o
processo de reflorestamento tão necessário no país. Ao todo, 40
brasileiros da Via Campesina já passaram pelo Haiti neste período,
trabalhando para a Brigada, que também recebe auxílio e auxilia pessoas
de outras partes da América Latina. “A gente recebeu paraguaios,
argentinos, venezuelanos e colombianos. Servimos como centro de apoio
para quem passa por lá”.
Para além da tragédia
Após o terremoto de janeiro de 2010, a Brigada intensificou suas
atividades, enviando, além de pessoas especializadas na questão
agrícola, médicos, enfermeiros e pessoas ligadas à construção civil. “A
ideia não era ajudar diretamente as vítimas do terremoto, porque não é
nossa especialidade, mas ajudar os camponeses neste momento difícil,
porque o terremoto atingiu a capital Porto Príncipe – 300 mil mortos e
1,5 milhão de desabrigados -, mas as pessoas desabrigadas foram para o
campo. O Haiti já tem problema forte de estrutura no campo, com o
terremoto isso piorou”, conta Thalles.
Neste novo grupo, Thalles – graduado em Cinema, e membro da Comissão
Pastoral da Terra, que integra a Via Campesina – foi enviado como
responsável pela área de comunicação. Ele conta que sua tarefa foi atuar
em dois níveis. Um deles era a cooperação com rádios locais, ligadas a
organizações de camponeses. Thalles explica que, devido ao analfabetismo
de 40% e à falta de infraestrutura no Haiti, o rádio é o meio de
comunicação mais difundido. “Os haitianos têm o hábito de conviver com o
país através do rádio”.
A atuação da Brigada neste sentido foi feita em parceria com o
governo venezuelano. Está sendo desenvolvido um projeto para fortalecer
25 rádios que Thalles chama de comunitárias, por sua estrutura. “Apesar
de terem licença comercial, grande parte das rádios do país funcionam
com estrutura de rádio comunitária e não têm equipamentos básicos de
transmissão. As músicas são tocadas em fita cassete”, exemplifica. Ele
conta que as rádios do interior se beneficiam do fato de o Haiti ser
montanhoso. Instalam seus transmissores precários no alto das montanhas,
conseguindo assim atingir um grande número de lares. Como a energia
elétrica no país é racionada, estas rádios também dependem de placas
solares ou geradores. “A ideia é criar condições mínimas para o
funcionamento destas rádios”.
O outro nível de atuação de Thalles Gomes foi produzir informação
para ser disseminada no Brasil e em outros países da América Latina. Do
Haiti, Thalles colaborou com diversos órgãos da imprensa latinoamericana
e produziu dezenas de matéria – trabalho que continua desenvolvendo
mesmo estando no Brasil. Ele explica que sua missão é mostrar para a
América Latina um Haiti não só como um país onde a sorte passou longe.
“O Haiti só tem sido manchete na tragédia. Nossa perspectiva era mostrar
o Haiti para além dos mortos. A gente queria mostrar a economia, a
cultura e a política haitiana. Para além da miséria tem cotidiano. Tem
futebol, festa, religião, vodu, música. Tem o dia-a-dia. Acho que,
quando se pensar no Haiti, tem que se pensar para além da tragédia”,
afirma.
Thalles conta que a experiência no Haiti foi “divisora de águas” em
sua vida e que uma das coisas que mais o surpreenderam foi a consciência
histórica do povo haitiano, presente em todos os níveis da população,
do camponês ao estudante universitário. Eles têm conhecimento da própria
história: o que foi a revolução que levou o país à independência, quais
são os interesses internacionais que estão em jogo, por que o país
chegou neste ponto. Isto foi o que mais me impactou positivamente”, diz.
Ele também exalta dois aspectos culturais que considera mais
relevantes no país caribenho: o idioma kréyol e a religião vodu. “São
duas criações haitianas. O kreyol é uma língua que foi criada pelos
escravos. Eles falavam de uma forma que os franceses não podiam
entender. A partir daí conseguiram se organizar para se libertar. E o
vodu tem elementos das culturas africana, indígena e europeia. Também
foi a partir do vodu que a revolução começou. Hoje em dia é um dos
poucos espaços de organização da população, porque no vodu não há
interferência estrangeira branca”, diz.
Críticas à atuação do Brasil
Thalles Gomes considera a atuação do Brasil no Haiti à frente da
Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) um
“contrassenso” com a política externa proposta pelo Governo Lula, de
integração e cooperação com os povos da América Latina e Caribe. “A
proposta da Minustah era criar a ideia de uma cooperação Sul-Sul, então
ela é formada apenas por exércitos de países subdesenvolvidos. Mas isso
mascara uma ocupação militar. O que o Haiti precisa não é de armas, mas
de solidariedade na área econômica e social”, afirma
Thalles relata que a missão da ONU não tem ajudado na reconstrução do
país, mas apenas tratado de reprimir a população, quando há distúrbios
causados pela desordem política e social e pelos desastres naturais. “Em
seis meses no Haiti não vi nenhuma obra feita pelo Minustah. O que eles
fazem é como o Bope faz nas favelas do RJ: trazer a estabilidade com
repressão”.
Como se isso não bastasse, há fortes indícios de que a cólera chegou
ao Haiti por meio de soldados nepaleses da Minustah contaminados. Devido
a esta suspeita, haitianos têm ido às ruas para protestar contra a
missão. Nos protestos três haitianos já morreram, e Thalles mostra isto
como um exemplo da repressão feita pelas Nações Unidas. “A Minustah não
consegue dar respostas concretas quando a população precisa. Não
conseguiu dar respostas concretas ao terremoto, não conseguiu dar
respostas concretas para evitar os danos causados por ciclones. E para
uma epidemia que pode ter sido trazida pela própria ONU não consegue dar
respostas rápidas e claras”.
Thalles aponta as contradições do modelo de ajuda humanitária que é
realizado pela ONU no Haiti. Ele aponta que a ONU agora acena com mais
US$ 164 milhões para combater a cólera e que já foram despendidos, desde
2004, US$ 3,6 bilhões apenas para manter as operações da Minustah no
Haiti. Enquanto isto, cerca de 50% da população haitiana ainda permanece
abaixo da linha de pobreza.
Para explicar o que ocorre no Haiti, Thalles cita um termo sugestivo,
cunhado pela jornalista canadense Naomi Klein: capitalismo do desastre.
“O Haiti é o país mais pobre da América, mas é o que mais recebe ajuda
internacional no mundo. É um dinheiro que chega a o país, mantém os
altos salários de funcionários da ONU e das ONG’s e esse dinheiro não
muda as condições socioeconômicas do país”, resume.
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