segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A crise que se matura: do sub-imperialismo à bolha dos alimentos

  Fernando Marcelino   no Correio da Cidadania
 
Conjuntura internacional e o papel do Brasil
 
Hoje, o sentimento geral impulsionado pelas mídias, grandes corporações e governos é que vivemos num mundo "pós-crise". Afinal, pacotes econômicos na escala de trilhões de dólares foram feitos urgentemente para o salvamento de bancos e o restabelecimento do crédito.
 
Entretanto, num contexto amplo dos grandes países centrais, incluindo EUA, Europa Ocidental e o Japão, a recessão, o endividamento público, o colapso fiscal e os planos de austeridade têm se generalizado. Todos sabem que se cortarem os "auxílios estatais" aos bancos o fantasma da depressão reaparecerá e poderá ser muito pior que em 2008. Todos os presidentes e ministros estão atrapalhados e oscilam entre a continuidade do socorro e/ou a introdução de ajustes fiscais drásticos contra o povo.
 
Num panorama mais abrangente a crise global apresenta algumas tendências claras. Estamos vendo: 1) um processo em que o centro capitalista entra em recessão e em que as conquistas sociais do pós-guerra estão sendo – e têm que ser – destruídas; 2) um terrível empobrecimento da periferia mais pobre do planeta, com a multiplicação de desastres sociais que se generalizam, dentre outras razões, pelo encarecimento dos alimentos e a expropriação dos recursos naturais; 3) a ascensão de economias intermediárias (semi-periferia?) como China, Índia, Brasil, África do Sul e Rússia. São países com experiência prévia de dominação regional ou com grandes recursos demográficos e naturais. Existem diversas denominações para descrever estes novos atores (emergentes, BRICS), porém o mais importante é o aumento de seu poder de barganha geopolítica no sistema internacional.
 
De qualquer forma, esses países não atuam em sintonia com projetos de emancipação popular. Cada sub-potência destas tende ainda a privilegiar seus próprios interesses regionais em detrimento de uma ação conjunta e expressam, em última análise, os interesses de setores enriquecidos que aspiram a consolidar seus negócios e seu poder com ações no exterior.
 
Em síntese, na atual fase da crise existem três mudanças de largo alcance: uma reorganização geral das economias mais desenvolvidas, um maior empobrecimento da periferia e a ascensão de vários países intermediários com características sub-imperialistas. Ruy Mauro Marini costumava definir o sub-imperialismo como a "forma que assume a economia dependente ao chegar à etapa dos monopólios e capital financeiro", desdobrando-se em: 1) exercício de uma política externa expansionista relativamente autônoma; 2) uma composição orgânica média na escala mundial dos aparatos produtivos nacionais capazes de apontar nos mercados externos como forma de resolver as contradições internas; 3) contextos de luta de classes em que as alianças da burguesia se dão pela ampliação do mercado externo.
 
No caso do Brasil contemporâneo esse processo coincide com: 1) orientação da política externa brasileira de maior destaque internacional – busca pelo assento no Conselho de Segurança da ONU, comando das tropas MINUSTAH para a "estabilização social" do Haiti desde 2004; 2) a consolidação de uma fração local da burguesia que retoma o interesse no mercado externo por meio da exportação de capitais, principalmente na forma de investimentos diretos. O aumento da composição orgânica das empresas brasileiras transnacionais ampliou a escala da massa de valor em busca de valorização, recolocando a insuficiência do mercado interno para a continuidade do processo de acumulação.
 
Esse processo se reflete na brusca elevação dos Investimentos Diretos brasileiros no exterior, que acumularam entre 2000 e 2008 mais de sete vezes o volume de toda a década de 1990, tendo como espaço privilegiado a América do Sul. Essa internacionalização da burguesia concentra-se setorialmente em recursos naturais (Gerdau, Vale, Petrobrás, Votorantim), engenharia e construção civil (Odebrecht, Andrade Gutierrez) e manufaturas (Marcopolo, Sabó, Embraer, WEG e Tigre). A expansão das transnacionais brasileiras caracteriza-se por ganhar posições monopolistas.
 
Por exemplo, em 2006, a Petrobrás correspondia a 17% do PIB da Bolívia, e grandes produtores brasileiros controlavam 95% da produção de soja paraguaia; na Argentina, a Camargo Correa controla 50% do mercado de cimento e a FrigoBoi controla o mercado de carnes; no Peru, a Votorantim controla 62% da produção de zinco;
 
Por fim, temos o aumento dos conflitos envolvendo a burguesia brasileira em países da América do Sul – empresários da soja em terras paraguaias e bolivianas, Petrobrás na Bolívia, Odebrecht no Equador.
 
O governo Lula procurou trabalhar pelo fortalecimento das relações Sul-Sul a fim de diversificar os destinos das exportações brasileiras. Enquanto a burguesia industrial interna se beneficia com o aumento do acesso aos mercados de países periféricos, bem como da instalação das suas empresas nestes países, a burguesia agrária (agrobusiness) depende em grande medida dos mercados dos países centrais, tendo como destino os EUA, Europa e China. É uma condição contraditória de dependência e conquista, de servidão e imposição ao mesmo tempo.
 
Da crise imobiliária à crise dos alimentos
 
A população mundial é de 6,5 bilhões de pessoas. Desse total, utilizando uma noção de "fome" extremamente rasa, cerca de um bilhão está subalimentada. Cerca de três bilhões de pessoas vivem em áreas rurais e estima-se que deste contingente 800 milhões passam fome. De acordo com dados da FAO, a distribuição dos famintos do mundo se encontra da seguinte forma: 642 milhões nas áreas da Ásia e do Pacífico; 265 milhões na África Subsaariana; 53 milhões na América Latina e Caribe; 42 milhões no Oriente Médio e 15 milhões nos países mais desenvolvidos.
 
Desde 2002 estamos vendo o aumento do preço de diversas commodities no mercado mundial. Por trás desse aumento encontra-se o inter-relacionamento de diversas causas como a maior demanda por parte de grandes países asiáticos – China e Índia – e o deslocamento da produção de algumas culturas, como a do milho, para a produção de biocombustíveis.
 
O crescimento da China, Índia e outros países "emergentes" exerce uma enorme pressão de demanda, cujos principais sintomas se manifestaram pela elevação dos preços de matérias-primas minerais, do petróleo e, mais recentemente, dos alimentos. O Brasil entrou surfando nessa onda. Entre 2000 e 2007, por exemplo, as exportações brasileiras de soja passaram de 11,5 milhões para 25,5 milhões de toneladas. A exportação de milho passou de 700 mil toneladas para 11 milhões.
 
A trajetória de alta nos preços teve uma subida considerável em 2007 e no primeiro semestre de 2008. Os maiores incrementos foram nos preços dos metais, em especial do minério de ferro, cobre e estanho. No segundo semestre de 2007, petróleo e alimentos passaram a registrar fortes aumentos de preço e volatilidade. A partir do início da crise hipotecária norte-americana, em agosto de 2007, houve uma grande fuga de capitais das aplicações relacionadas aos derivativos dos contratos hipotecários em direção aos mercados internacionais de commodities, em busca de ganhos ou redução de perdas. 
 
As commodities tornaram-se investimentos atraentes ante a menor rentabilidade dos ativos financeiros, resultante tanto dessa depreciação como das turbulências dos mercados financeiros das economias centrais. A atratividade das commodities como forma alternativa de valorização da riqueza aumentou ainda mais com a redução da taxa de juros nos Estados Unidos, a partir de setembro de 2007. 
 
Assim, os fundos de investimento especulativos (os chamados hedge funds) e outros investidores institucionais (como os fundos de pensão) direcionaram suas apostas para os mercados de commodities e seus derivativos. Os investidores institucionais alocaram parcela crescente de suas carteiras em investimentos nos mercados futuros de commodities, que negociam 25 tipos de commodities (doze produtos agropecuários, seis tipos de petróleo e derivados, cinco metais básicos e dois metais preciosos).
 
De um lado, esses mercados de commodities oferecem possibilidade de retorno elevado ante a menor rentabilidade dos ativos financeiros tradicionais, em razão tanto da queda dos juros americano como da depreciação do dólar. De outro lado, fornecem oportunidade de diversificação de risco, uma vez que esses mercados não estão historicamente correlacionados com os mercados de títulos e ações.
 
Os recursos alocados pelos investidores institucionais nos mercados futuros de commodities saltaram de US$ 13 bilhões para US$ 260 bilhões entre o final de 2003 e março de 2008, enquanto os preços das 25 commodities subiram, em média, 183% nesses cinco anos. Essa crescente "financeirização" gerou hiperinflação nos preços dos ativos financeiros em tais mercados internacionais, em especial petróleo e alimentos.
 
As pressões inflacionárias tomaram as cotações de soja, milho e trigo, com forte impacto no preço de carnes, ovos e leite. O índice de preços de alimentos da ONU/FAO, que engloba 55 commodities agrícolas, apresentou alta de 57% entre março de 2007 e março de 2008.  Os preços globais dos alimentos ainda atingiram recorde de alta em janeiro de 2011. O índice subiu pelo sétimo mês seguido ultrapassando o recorde anterior alcançado em julho de 2008.
 
A bolha de ativos globais cresce diariamente. Um dia essa bolha vai estourar levando ao maior estouro coordenado de ativos já visto. A questão não é se a bolha vai estourar ou não, mas quando e como poderá impulsionar rebeliões populares capazes de apresentar uma alternativa ao funcionamento político da economia.
 
Poderá essa bolha deflagrar uma crise generalizada no capitalismo, atingindo EUA, Europa, China, Índia, Rússia, Brasil e outros países conjuntamente? Qual será o papel do Estado para socorrer a bancarrota capitalista e para reprimir os possíveis levantes sociais? Quais serão as medidas anti-crise articuladas pelos governos? Elas aumentarão a desigualdade social e internacional? E o imperialismo, terá que se intensificar? E as forças sociais do trabalho, conseguirão resistir a uma nova empreitada da "acumulação primitiva" do capital para "administrar a crise"?
 
A situação é alarmante: grosso modo, a divisão internacional do trabalho com crescente importância da China está impulsionando o Brasil a se retomar uma espécie de "vocação agrícola", a partir de uma ligação umbilical entre as finanças e o modelo exportador de commodities. É o agrobussiness da fração da burguesia brasileira que está fundindo os interesses do modelo primário-exportador com o mundo da especulação dos altos preços das commodities globais. É esse processo que sustentou o crescimento econômico e as políticas redistributivas de que o governo petista tanto se vangloria e que a nova presidente buscará aprofundar.
 
A falta de debate sobre esse modelo ainda é (quase) completa, principalmente na esquerda. De forma geral, tem se aceitado que este modelo é viável, possível e adequado para "seguir mudando" o país. O Brasil se apresenta como uma espécie de vanguarda da financeirização do capital primário exportador, mas tudo bem, isso já seria feito ‘para o crescimento econômico que iria redistribuir a riqueza’... ou não? É cada vez mais difícil não nos atentarmos para o caráter domesticador das políticas sociais que aliviam a pobreza – não é a toa que essa é uma recomendação do Banco Mundial. Por mais que menos pessoas passem fome, é incontestável que a desigualdade não pára de crescer.
 
Entretanto, a capacidade dos atores sociais de se lançarem ao conflito diminui numa clara tendência de "transformismo às avessas", não apenas de dirigentes, mas de organizações inteiras. Na realidade, a cooptação e a redistribuição são dois lados da mesma moeda.
 
Existem alternativas ao modelo social-liberal tão popularizado na América Latina e festejado pela esquerda de todo o mundo? Existem atores sociais capazes de combater esse modelo? Quais são as alternativas e pautas comuns para a refundação da esquerda diante do fracasso do governo Lula?
 
Fernando Marcelino é analista internacional e secretário de formação política do PSOL-Curitiba. 

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