Fernando Marcelino no Correio da Cidadania | |
Conjuntura internacional e o papel do Brasil
Hoje, o sentimento geral impulsionado pelas mídias, grandes corporações e
governos é que vivemos num mundo "pós-crise". Afinal, pacotes
econômicos na escala de trilhões de dólares foram feitos urgentemente
para o salvamento de bancos e o restabelecimento do crédito.
Entretanto, num contexto amplo dos grandes países centrais, incluindo
EUA, Europa Ocidental e o Japão, a recessão, o endividamento público, o
colapso fiscal e os planos de austeridade têm se generalizado. Todos
sabem que se cortarem os "auxílios estatais" aos bancos o fantasma da
depressão reaparecerá e poderá ser muito pior que em 2008. Todos os
presidentes e ministros estão atrapalhados e oscilam entre a
continuidade do socorro e/ou a introdução de ajustes fiscais drásticos
contra o povo.
Num panorama mais abrangente a crise global apresenta algumas tendências
claras. Estamos vendo: 1) um processo em que o centro capitalista entra
em recessão e em que as conquistas sociais do pós-guerra estão sendo – e
têm que ser – destruídas; 2) um terrível empobrecimento da periferia
mais pobre do planeta, com a multiplicação de desastres sociais que se
generalizam, dentre outras razões, pelo encarecimento dos alimentos e a
expropriação dos recursos naturais; 3) a ascensão de economias
intermediárias (semi-periferia?) como China, Índia, Brasil, África do
Sul e Rússia. São países com experiência prévia de dominação regional ou
com grandes recursos demográficos e naturais. Existem diversas
denominações para descrever estes novos atores (emergentes, BRICS),
porém o mais importante é o aumento de seu poder de barganha geopolítica
no sistema internacional.
De qualquer forma, esses países não atuam em sintonia com projetos de
emancipação popular. Cada sub-potência destas tende ainda a privilegiar
seus próprios interesses regionais em detrimento de uma ação conjunta e
expressam, em última análise, os interesses de setores enriquecidos que
aspiram a consolidar seus negócios e seu poder com ações no exterior.
Em síntese, na atual fase da crise existem três mudanças de largo
alcance: uma reorganização geral das economias mais desenvolvidas, um
maior empobrecimento da periferia e a ascensão de vários países
intermediários com características sub-imperialistas. Ruy Mauro Marini
costumava definir o sub-imperialismo como a "forma que assume a economia
dependente ao chegar à etapa dos monopólios e capital financeiro",
desdobrando-se em: 1) exercício de uma política externa expansionista
relativamente autônoma; 2) uma composição orgânica média na escala
mundial dos aparatos produtivos nacionais capazes de apontar nos
mercados externos como forma de resolver as contradições internas; 3)
contextos de luta de classes em que as alianças da burguesia se dão pela
ampliação do mercado externo.
No caso do Brasil contemporâneo esse processo coincide com: 1)
orientação da política externa brasileira de maior destaque
internacional – busca pelo assento no Conselho de Segurança da ONU,
comando das tropas MINUSTAH para a "estabilização social" do Haiti desde
2004; 2) a consolidação de uma fração local da burguesia que retoma o
interesse no mercado externo por meio da exportação de capitais,
principalmente na forma de investimentos diretos. O aumento da
composição orgânica das empresas brasileiras transnacionais ampliou a
escala da massa de valor em busca de valorização, recolocando a
insuficiência do mercado interno para a continuidade do processo de
acumulação.
Esse processo se reflete na brusca elevação dos Investimentos Diretos
brasileiros no exterior, que acumularam entre 2000 e 2008 mais de sete
vezes o volume de toda a década de 1990, tendo como espaço privilegiado a
América do Sul. Essa internacionalização da burguesia concentra-se
setorialmente em recursos naturais (Gerdau, Vale, Petrobrás,
Votorantim), engenharia e construção civil (Odebrecht, Andrade
Gutierrez) e manufaturas (Marcopolo, Sabó, Embraer, WEG e Tigre). A
expansão das transnacionais brasileiras caracteriza-se por ganhar
posições monopolistas.
Por exemplo, em 2006, a Petrobrás correspondia a 17% do PIB da Bolívia, e
grandes produtores brasileiros controlavam 95% da produção de soja
paraguaia; na Argentina, a Camargo Correa controla 50% do mercado de
cimento e a FrigoBoi controla o mercado de carnes; no Peru, a Votorantim
controla 62% da produção de zinco;
Por fim, temos o aumento dos conflitos envolvendo a burguesia brasileira
em países da América do Sul – empresários da soja em terras paraguaias e
bolivianas, Petrobrás na Bolívia, Odebrecht no Equador.
O governo Lula procurou trabalhar pelo fortalecimento das relações
Sul-Sul a fim de diversificar os destinos das exportações brasileiras.
Enquanto a burguesia industrial interna se beneficia com o aumento do
acesso aos mercados de países periféricos, bem como da instalação das
suas empresas nestes países, a burguesia agrária (agrobusiness) depende
em grande medida dos mercados dos países centrais, tendo como destino os
EUA, Europa e China. É uma condição contraditória de dependência e
conquista, de servidão e imposição ao mesmo tempo.
Da crise imobiliária à crise dos alimentos
A população mundial é de 6,5 bilhões de pessoas. Desse total, utilizando
uma noção de "fome" extremamente rasa, cerca de um bilhão está
subalimentada. Cerca de três bilhões de pessoas vivem em áreas rurais e
estima-se que deste contingente 800 milhões passam fome. De acordo com
dados da FAO, a distribuição dos famintos do mundo se encontra da
seguinte forma: 642 milhões nas áreas da Ásia e do Pacífico; 265 milhões
na África Subsaariana; 53 milhões na América Latina e Caribe; 42
milhões no Oriente Médio e 15 milhões nos países mais desenvolvidos.
Desde 2002 estamos vendo o aumento do preço de diversas commodities no
mercado mundial. Por trás desse aumento encontra-se o
inter-relacionamento de diversas causas como a maior demanda por parte
de grandes países asiáticos – China e Índia – e o deslocamento da
produção de algumas culturas, como a do milho, para a produção de
biocombustíveis.
O crescimento da China, Índia e outros países "emergentes" exerce uma
enorme pressão de demanda, cujos principais sintomas se manifestaram
pela elevação dos preços de matérias-primas minerais, do petróleo e,
mais recentemente, dos alimentos. O Brasil entrou surfando nessa onda.
Entre 2000 e 2007, por exemplo, as exportações brasileiras de soja
passaram de 11,5 milhões para 25,5 milhões de toneladas. A exportação de
milho passou de 700 mil toneladas para 11 milhões.
A trajetória de alta nos preços teve uma subida considerável em 2007 e
no primeiro semestre de 2008. Os maiores incrementos foram nos preços
dos metais, em especial do minério de ferro, cobre e estanho. No segundo
semestre de 2007, petróleo e alimentos passaram a registrar fortes
aumentos de preço e volatilidade. A partir do início da crise
hipotecária norte-americana, em agosto de 2007, houve uma grande fuga de
capitais das aplicações relacionadas aos derivativos dos contratos
hipotecários em direção aos mercados internacionais de commodities, em
busca de ganhos ou redução de perdas.
As commodities tornaram-se investimentos atraentes ante a menor
rentabilidade dos ativos financeiros, resultante tanto dessa depreciação
como das turbulências dos mercados financeiros das economias centrais. A
atratividade das commodities como forma alternativa de valorização da
riqueza aumentou ainda mais com a redução da taxa de juros nos Estados
Unidos, a partir de setembro de 2007.
Assim, os fundos de investimento especulativos (os chamados hedge funds)
e outros investidores institucionais (como os fundos de pensão)
direcionaram suas apostas para os mercados de commodities e seus
derivativos. Os investidores institucionais alocaram parcela crescente
de suas carteiras em investimentos nos mercados futuros de commodities,
que negociam 25 tipos de commodities (doze produtos agropecuários, seis
tipos de petróleo e derivados, cinco metais básicos e dois metais
preciosos).
De um lado, esses mercados de commodities oferecem possibilidade de
retorno elevado ante a menor rentabilidade dos ativos financeiros
tradicionais, em razão tanto da queda dos juros americano como da
depreciação do dólar. De outro lado, fornecem oportunidade de
diversificação de risco, uma vez que esses mercados não estão
historicamente correlacionados com os mercados de títulos e ações.
Os recursos alocados pelos investidores institucionais nos mercados
futuros de commodities saltaram de US$ 13 bilhões para US$ 260 bilhões
entre o final de 2003 e março de 2008, enquanto os preços das 25
commodities subiram, em média, 183% nesses cinco anos. Essa crescente
"financeirização" gerou hiperinflação nos preços dos ativos financeiros
em tais mercados internacionais, em especial petróleo e alimentos.
As pressões inflacionárias tomaram as cotações de soja, milho e trigo,
com forte impacto no preço de carnes, ovos e leite. O índice de preços
de alimentos da ONU/FAO, que engloba 55 commodities agrícolas,
apresentou alta de 57% entre março de 2007 e março de 2008. Os preços
globais dos alimentos ainda atingiram recorde de alta em janeiro de
2011. O índice subiu pelo sétimo mês seguido ultrapassando o recorde
anterior alcançado em julho de 2008.
A bolha de ativos globais cresce diariamente. Um dia essa bolha vai
estourar levando ao maior estouro coordenado de ativos já visto. A
questão não é se a bolha vai estourar ou não, mas quando e como poderá
impulsionar rebeliões populares capazes de apresentar uma alternativa ao
funcionamento político da economia.
Poderá essa bolha deflagrar uma crise generalizada no capitalismo,
atingindo EUA, Europa, China, Índia, Rússia, Brasil e outros países
conjuntamente? Qual será o papel do Estado para socorrer a bancarrota
capitalista e para reprimir os possíveis levantes sociais? Quais serão
as medidas anti-crise articuladas pelos governos? Elas aumentarão a
desigualdade social e internacional? E o imperialismo, terá que se
intensificar? E as forças sociais do trabalho, conseguirão resistir a
uma nova empreitada da "acumulação primitiva" do capital para
"administrar a crise"?
A situação é alarmante: grosso modo, a divisão internacional do trabalho
com crescente importância da China está impulsionando o Brasil a se
retomar uma espécie de "vocação agrícola", a partir de uma ligação
umbilical entre as finanças e o modelo exportador de commodities. É o
agrobussiness da fração da burguesia brasileira que está fundindo os
interesses do modelo primário-exportador com o mundo da especulação dos
altos preços das commodities globais. É esse processo que sustentou o
crescimento econômico e as políticas redistributivas de que o governo
petista tanto se vangloria e que a nova presidente buscará aprofundar.
A falta de debate sobre esse modelo ainda é (quase) completa,
principalmente na esquerda. De forma geral, tem se aceitado que este
modelo é viável, possível e adequado para "seguir mudando" o país. O
Brasil se apresenta como uma espécie de vanguarda da financeirização do
capital primário exportador, mas tudo bem, isso já seria feito ‘para o
crescimento econômico que iria redistribuir a riqueza’... ou não? É cada
vez mais difícil não nos atentarmos para o caráter domesticador das
políticas sociais que aliviam a pobreza – não é a toa que essa é uma
recomendação do Banco Mundial. Por mais que menos pessoas passem fome, é
incontestável que a desigualdade não pára de crescer.
Entretanto, a capacidade dos atores sociais de se lançarem ao conflito
diminui numa clara tendência de "transformismo às avessas", não apenas
de dirigentes, mas de organizações inteiras. Na realidade, a cooptação e
a redistribuição são dois lados da mesma moeda.
Existem alternativas ao modelo social-liberal tão popularizado na
América Latina e festejado pela esquerda de todo o mundo? Existem atores
sociais capazes de combater esse modelo? Quais são as alternativas e
pautas comuns para a refundação da esquerda diante do fracasso do
governo Lula?
Fernando Marcelino é analista internacional e secretário de formação política do PSOL-Curitiba.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
A crise que se matura: do sub-imperialismo à bolha dos alimentos
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