Francisco Bicudo em seu blog
Retomo e desenvolvo neste texto alguns posts que escrevi no twitter. O tema merece.
Caderno
especial publicado pela Folha de São Paulo neste sábado, 19 de
fevereiro, sobre os 90 anos do jornal traz um breve relato a respeito do
papel desempenhado pela publicação durante a ditadura militar. O
texto adota a estratégia da afirmação que parece assumir, mas que acaba
por sempre oferecer uma "nuance", uma "justificativa", uma "ressalva"
ou um "mas...", suavizando e pulverizando o que se relata.
A
Folha admite que apoiou o golpe - "como praticamente toda a grande
imprensa brasileira". É justificável o comportamento "maria vai com as
outras, só porque os outros foram eu embarco também?"
O
texto diz ainda que "jornal submeteu-se à censura, acatando
proibições", mas ignora benefícios alcançados por conta do silêncio
conivente. Será que não foi muito mais auto-censura, sem necessidade de
intervenção direta dos militares, justamente porque o jornal compreendeu
com bastante clareza o que era permitido e o que era proibido dizer? A
Folha nunca precisou ter censores em sua redação.
A
matéria deste sábado alega que a redação da Folha da Tarde foi entregue
a jornalistas entusiastas da linha dura como reação à presença de
militantes da ALN. Será mesmo? Seria então aceitável transportar para o
jornal a guerra suja dos milicos e permitir a atuação de agentes
infiltrados no jornal?
No final, diz o texto que "segundo relato depois divulgado por militantes presos na época, caminhonetes de entrega do jornal teriam sido usadas por agentes da repressão para acompanhar sob disfarce a movimentação de guerrilheiros". O
que os militantes contam, desde sempre, é que a empresa emprestava
viaturas de reportagem para transportar opositores do regime para
centros de tortura.
Vejamos
o que escreve o jornalista Jorge Claudio Ribeiro, em passagem do livro
"Sempre Alerta - Condições e contradições do trabalho jornalístico", da
editora Olho D´Água, em parceria com a Brasiliense:
"A
partir de 1969, a FT (Folha da Tarde) fez a festa da direita, atuando
como porta-voz do regime militar e chegando até a ser aparelhada pela
polícia. Lourenço Diaféria lembra como foi essa oscilação: 'A FSP sempre
foi um jornal ambíguo; botava uns caras de direita, outros de esquerda.
Já a FT era feita por gente ligada à ditadura. A empresa tinha ligações
com delegados do Dops".
Em
outro trecho da obra, Ribeiro cita a socióloga Gisela Taschner, autora
de "Folhas ao Vento", que lembra que "jogando sempre dos dois lados no
campo político nos marcos do capitalismo e, na medida de suas
possibilidades, diversificando a linha de produção, mesmo com alguns
desacertos do ponto de vista de segmentação, o grupo consolidou seu
império. Para qualquer tendência de mercado ou da política que se
esboçasse, ele tinha um produto pronto para ser ativado. Nos momentos de
opacidade apostava dos dois lados. Tinha montado um aparato para seguir
os ventos e tirar proveito deles, qualquer que fosse a sua direção".
Eis
o famoso jornal-camaleão, a mudar de cor de acordo com a conjuntura
política, que se cala e sustenta o projeto de terror da ditadura nos
anos de chumbo para em seguida tentar se redimir e se consolidar como o
porta-voz dos ventos da redemocratização no país, quando a tirania do
regime militar já estava com os dias contados. Oportunismo ideológico de
mercado, não?
Em
março de 2009, em ato de repúdio contra a Folha, que havia em editorial
classificado a ditadura de "ditabranda", o ex-preso político Ivan
Seixas lembrou que "o jornal colocava carros à disposição da tortura,
colocou um jornal inteiro à disposição do DOI-CODI" (clique aqui
para ver o vídeo do depoimento). Na época, Ivan chegou a enviar cartas
para a Folha (jamais publicadas), lembrando que a empresa "empregava
carros para nos capturar e entregar para sessões de interrogatórios,
como sofremos eu e meu pai. Ninguém me contou, eu vi carro da Folha na
porta da OBAN/DOI-CODI.” (clique aqui para ler artigo publicado na Agência Carta Maior).
No Observatório da Imprensa, em resenha do livro "Cães
de Guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988", de
Beatriz Kushnir, a jornalista e à época mestranda em História Social
pela Universidade de São Paulo (USP) Juliana Sayuri Ogassawara destaca que "a Folha da Tarde pôde
ser considerada um porta-voz, o "diário oficial" da Operação
Bandeirantes, a Oban, por publicar informes oficiais do governo como se
fossem reportagens. Além disso, a partir de 1969 passaram a circular
pelas redações os setoristas, isto é, jornalistas credenciados e
vinculados à seara policial, dentre os quais se destacam o repórter e
major da PM Edson Corrêa e o editor de Internacional e agente do Dops
Carlos Antonio Guimarães Sequeira".
Como
se vê, há várias outras histórias sobre as relações da Folha com a
ditadura militar. Mas o jornal crítico, plural e apartidário não dá
conta dessas outras versões.
Mais uma vez, quem defende a tese da "ditabranda" tenta mudar a História e apagar a memória dos anos de chumbo no Brasil.
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