Do conjunto de mulheres ocupadas no país, 17% são trabalhadoras domésticas, em sua maioria negras
Inesc
Assessor
de diversidade e apoio aos cotistas da Universidade de Brasília (UNB),
Joaze Costa é autor do estudo Sindicatos das trabalhadoras domésticas no
Brasil: teorias de descolonização e saberes subalternos, de 2007.
Coordenador
da mesa Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial, no
Seminário Internacional Igualdade, Racismo e Políticas Públicas, que
acontece dias 30 e 31 de março no anfiteatro 12 da UNB, Joaze é também
segundo secretário da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e
Negras (ABPN).
O evento contará com alguns dos principais
especialistas da área e, além de tratar das desigualdades e do racismo
enfrentado pelos brasileiros, tem como objetivo discutir temáticas como:
cotas, ações afirmativas, Estatuto da Igualdade Racial, comunidades
quilombolas, modelo de desenvolvimento e racismo institucional à luz de
experiências internacionais e também da atuação do Estado brasileiro.
Inesc - Quantas trabalhadoras domésticas existem no país e quantas são sindicalizadas?
Joaze Costa - A
Pnad 2009, divulgada no final de 2010, indica um contingente de 7,2
milhões de trabalhadores domésticos, em sua expressiva maioria mulheres.
Trata-se de uma categoria socioprofissional extremamente significativa
numericamente, representando 7,8% da População Economicamente Ativa. Se
considerarmos apenas o conjunto das mulheres ocupadas no país, 17% das
mulheres empregadas são trabalhadoras domésticas.
Infelizmente,
não tenho dados mais recentes em mãos, mas com certeza trata-se de uma
categoria que também tem uma sobrerrepresentação de mulheres negras, o
que torna muito interessante os estudos sobre estas profissionais, pois
sobre elas incidem práticas discriminatórias de gênero e raça,
conjugados obviamente com fatores classistas. Porém, além dessa dimensão
analítica, a categoria profissional das trabalhadoras domésticas impõe
enormes desafios no campo das políticas públicas.
Também lamento
não ter dados atuais sobre o número de trabalhadoras domésticas
sindicalizadas. Porém, quando defendi minha tese de doutorado no
Departamento de Sociologia da UNB, em 2007, o índice de trabalhadoras
sindicalizadas era em torno de 1,6%.
Este não é um percentual muito baixo?
Com
certeza trata-se de um índice baixo, entretanto, numa perspectiva
histórico-sociológica torna-se compreensivo este índice, podendo
inclusive ser motivo para comemorações. As barreiras para uma luta
política das trabalhadoras domésticas são inúmeras, para se ter uma
idéia, citaria apenas um dos obstáculos, talvez o central: o isolamento
intramuros das trabalhadoras domésticas nos seus locais de trabalho.
Da
fundação da Associação Profissional das Empregadas Domésticas de
Santos, em São Paulo, em1936, à criação da Federação Nacional das
Trabalhadoras Domésticas, em 1997, que conquistas a classe conseguiu?
Esta
é uma ótima pergunta; para uma resposta mais completa recomendo a
leitura da minha tese de doutorado. Mas, posso adiantar que a principal
conquista do grupo foi a sua própria organização como categoria
profissional. Essa história inicia-se com Laudelina de Campos Melo, na
década de 30 do século 20, passando por uma articulação com o Teatro
Experimental do Negro, e com a corrente progressista da igreja católica
nas décadas de 50 e 60.
Em minha pesquisa de doutorado descobri
que na sombra de cada direito conquistado – mesmo que insuficiente,
comparado aos outros/as trabalhadores/as – havia uma forte militância
das trabalhadoras domésticas. Por exemplo, os primeiros direitos da
categoria profissional em 1972 foram um produto direto do 1o Congresso
Nacional das Trabalhadoras Domésticas, que ocorreu em 1968, no Rio de
Janeiro. Em 1974, elas realizaram o 2o Congresso Nacional para avaliar
os ganhos com a lei 5958/72. Após o 5o Congresso Nacional da Categoria
em 1985, em Recife, as trabalhadoras domésticas iniciam uma forte
articulação nacional com outros movimentos sociais, especialmente as
feministas, com Constituintes, com a própria igreja católica
progressista, para apresentar uma proposta de lei, que contemplasse os
direitos da categoria. Esta longa e silenciada história, revela o
ativismo destas mulheres, divididas entre cuidar da casa dos outros e
pensar no futuro delas mesmas e até mesmo do país. Com a Constituição de
1988, as trabalhadoras domésticas foram contemplados com alguns
direitos, muito aquém dos demandados. Aliás, é muito revelador o
parágrafo único dos Direitos Sociais da Constituição Cidadã, que
menciona as trabalhadoras, é para dizer que 25 dos 34 direitos sociais
previstos na Constituição Federal para todos/as os trabalhadores
brasileiros/as não se aplicam às domésticas. Após a década de 80, os
sindicatos criados a partir de 1988 sentiram a necessidade de uma
representação uniforme, sobretudo para lidar com o governo federal.
Decidiram então pela criação da Fenatrad, a Federação Nacional das
Trabalhadoras Domésticas, que tem como sua atual presidenta Creuza de
Oliveira.
E que desafios tem a categoria agora?
Os
desafios continuam enorme à categoria. Por exemplo, a elevação do
número de trabalhadoras com carteira assinada e com contribuição à
previdência social, regulamentação da jornada de trabalho, campanha da
casa própria, obrigatoriedade do FGTS, hora extra etc. Estes direitos
têm estado na pauta da categoria após 1988 e talvez ganhem novo fôlego a
partir da Conferência Internacional da OIT, que ocorrerá em junho de
2011.
O trabalho das empregadas domésticas reúne três
tipos de discriminação: de gênero, de classe e
de raça; ainda assim é
visto com muita naturalidade pela sociedade em geral. O que isso aponta
em termos de cultura nacional?
Esta é uma das questão
que mais me interessa no estudo do trabalho doméstico. Ainda não tive
tempo para uma grande elaboração a este respeito, mas minha hipótese é
que no trabalho doméstico temos uma das chaves para entender a formação
de uma gramática moral que explica a estabilidade da desigualdade social
no Brasil. E é bastante óbvio que o trabalho doméstico herda a
funcionalidade do trabalho escravo.
O livro Levando a
Raça a Sério: ações afirmativas e universidade, lançado em 2004, traz um
panorama de ações de enfrentamento do racismo no campo da educação. O
que pensa da lei 10.639, que torna obrigatório o ensino de História da
África nos currículos escolares?
O livro foi resultado
de um seminário que organizei em 2003, na Universidade Federal de Goiás,
no âmbito do Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira, com o
Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e com apoio da Fundação Ford.
Naquela ocasião, reunimos coordenadores e participantes de alguns dos
projetos daquele programa, que estavam nas suas respectivas
universidades propondo políticas de ação afirmativa. Assim, o foco do
livro foram os debates e negociações que estavam ocorrendo em cada uma
das universidades ali representadas: UNB, Universidade do Estado da
Bahia, UFBA, UFSCar, UFMG, UFG, UFMT etc.
As discussões sobre a
lei 10.639/03 não entraram naquele seminário e, portanto, não foram
expressas no livro. Porém, lembro-me vagamente que meses depois viemos
para uma reunião em Brasília no MEC, quando foi assinada a primeira
minuta do programa Uniafro, voltado para o financiamento de projetos de
pesquisa e atividades sobre a 10.639/03.
E como garantir a implantação efetiva dessa lei?
Devemos
a existência desta lei à professora Petronilha da Silva, relatora do
parecer que aprovou a 10.639/03. Obviamente, outros personagens são e
foram fundamentais para termos alcançado essa conquista legal. Esta lei
se mostra como um primeiro passo para o combate ao chamado racismo
epistemológico, assim também como o primeiro passo para o combate à
cultura racista existente na sociedade brasileira, que até pouco tempo
atrás era ensinada nas nossas escolas impunemente.
Eu diria que o
grande desafio hoje para a implementação efetiva desta lei no sistema
de ensino brasileiro passa pelo envolvimento das universidades. As
universidades têm o dever de formar pessoas capazes de lidar de maneira
qualificada com a 10639/03. Para isso, as universidades têm que
contratar novos professores para desempenhar esta tarefa.
De
que maneira as cotas raciais têm colaborado para o acesso e a
manutenção da população negra nas universidades? Além de garantir o
ingresso, como garantir a permanência do(a) aluno(a) cotista?
As
cotas raciais foram o primeiro passo para uma reestruturação as
universidades brasileiras, porém não podem ser pensadas como ato único e
isolado. As universidades têm que trazer para o seu bojo imediatamente
uma discussão sobre a permanência dos cotistas, o acesso dos mesmos às
redes de pesquisa e a reforma curricular. Enfim, há um conjunto de ações
ainda por implementar para caracterizar uma efetiva política de ação
afirmativa nas universidades brasileiras.
Acredita que políticas de ação compensatória, como o Bolsa Família, são eficazes também para o combate às desigualdades raciais?
Sem
dúvida. Seria um grande engano dizermos que as chamadas políticas
universais não teriam impacto sobre as desigualdades raciais.
Estes
10 primeiros anos deste novo milênio foram fundamentais para a
discussão sobre as políticas de ação afirmativa. Convencemos setores
importantes da sociedade brasileira da necessidade de adoção destas
políticas para quebrarmos o “teto de vidro” e para a adoção de políticas
valorativas. Entretanto, não podemos pensar que as políticas de ação
afirmativa serão a panaceia para todas as desigualdades raciais
brasileiras. As ações afirmativas precisam ser combinadas com políticas
universais de combate à pobreza, de elevação de escolaridade, de
equidade regional etc. Sem abrir mão das políticas de ação afirmativa –
que cumprem um papel decisivo na sociedade brasileira – temos que partir
para um movimento político de elevação da qualidade do ensino
fundamental e médio brasileiro, de aumento de matrículas no ensino
médio, de melhoria do sistema de saúde, de melhoria da habitação etc.
Os
próximos anos de crescimento econômico do Brasil não podem repetir os
erros do passado, quando o crescimento econômico não veio acompanhado de
igualdade social e racial.
Qual sua expectativa em relação ao Seminário Igualdade, Racismo e Políticas Públicas?
O
Seminário traz pesquisadores refinados da questão racial brasileira;
pessoas que com uma seriedade incrível tem refletido sobre nossa
sociedade e os desafios para a igualdade social e racial. Certamente, a
Universidade de Brasília ganhará muito com a presença desses
pesquisadores e pesquisadoras.
Serão colocadas questões
importantes para o desenvolvimento social brasileiro. Para o/a aluno/a
que comparecer, certamente ele perceberá inúmeros possíveis temas de
pesquisa para sua monografia, dissertação e tese. Para os/as
pesquisadores/as será uma ótima oportunidade para intensificar o diálogo
com outros/as pesquisadores/as nacionais e internacionais. E espero que
tenhamos um público expressivo, pois num seminário como este são
discutidas questões que tem a ver com o futuro do nosso país.
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