Jacques Távora Alfonsin (*) no Rsurgente
A Romaria da Terra deste ano se reúne em Candiota, neste 8 de março,
sob a inspiração do lema “Do clamor da terra à esperança da vida”.
Todos os anos, em plena terça-feira de carnaval, uma multidão de
gente ligada às Igrejas, aos sindicatos rurais, às pastorais como a CPT,
a movimentos populares como o MST, o MAB, o MMC (Movimento das mulheres
camponesas) o das/os desempregadas/os, das/os índios (CIMI), das/os
catadoras/es de material, e outros, colocam-se em marcha para rezar,
reverenciar suas/seus mártires. Roseli Nunes e Sepé Tiaraju, entre
tantas/os outras/os são lembradas/os com respeito, carinho e exemplo,
nessas ocasiões.
Não é só o fato de Sepé ter sido assassinado num 7 de fevereiro
(1756), num passado superior a três séculos, que reune todo esse povo,
na maioria camponês/a, agricultor/a, pequena/o proprietária/o, colona/o e
pobre. É a causa dessa morte e a semelhança dos seus efeitos se
desdobrando até hoje, o motivo desse clamor da terra aparecer repetido
em cada romaria.
As/os caminhantes não cansam de insistir naquelas canções, belas
testemunhas da nossa arte popular, nas quais os sacrifícios de agora
ainda geram vítimas de terra e gente. Uma parte do hino a São Sepé, por
exemplo, diz assim:
“Tiaraju morreu peleando no arroio Caioboaté / mas depois noutro
combate todos viram São Sepé / que vinha morrer de novo junto a gente
Guarani / pra embeber seu sangue todo neste chão onde nasci. / Mais um
valente guerreiro a morrer pelo seu pago/ é por isso que seu nome pro
Rio Grande é sagrado / São Sepé subiu pro céu e sua cruz ficou no azul/
cai a noite ela rebrilha ele é o cruzeiro do sul”.
“Isso é história”, afirmam alguns com indiferença, “águas passadas”,
“hoje é outra coisa, vive-se num Estado de direito e numa democracia”,
“vivemos época de globalização da economia”, “só é pobre, hoje, quem não
quer trabalhar”, são observações freqüentes partidas de quem está
satisfeito com a distância mantida da realidade miserável, sofrida
pelas/os descendentes de Sepé e de outras vítimas do mau uso da terra e
da exploração de sua gente.
Fica parecendo mentira, então, mas a mesma injustiça daquele tempo, o
poder econômico-militar e colonizador estrangeiro, atualmente refletido
em transnacionais responsáveis por massacre de índios, desrespeito a
quilombolas e sacrifício da terra, feito por desmatamentos, pesticidas,
transgênicos, dá seguimento a mortes de terras e gentes como a do tempo
daquele índio. Ela está retardando a tramitação do projeto de lei que
pune o trabalho escravo, impedindo discutirem-se índices de
produtividade das terras e dos limites indispensáveis à sua apropriação,
inclusive por empresas estrangeiras ou brasileiras com maioria de
capital estrangeiro. Atropela o debate sobre as modificações pretendidas
sobre o nosso Código Florestal, usa de qualquer pretexto para instaurar
CPIs que persigam movimentos populares, barra enfim qualquer política
pública de reforma agrária.
Por macabra coincidência, portanto, Elton Brum da Silva, um sem-terra
assassinado por um brigadiano em 21 de agosto de 2009, parece ter
provado como aquele hino a São Sepé, cantado nessas romarias, continua
atual. Morto na mesma terra onde foi trucidado Sepé (município de São
Gabriel) – por força de uma ordem judicial, para vergonha nossa,
atendendo defesa de latifúndio – Sepé parece ressuscitado na pessoa do
Elton.
Por isso, aparece bem motivado o convite redigido para convocar as/os participantes desse evento: “Somos
jardineiros de um belo jardim cujo dono é Deus, o criador da vida. No
entanto, ao longo dos séculos, nós, seres humanos, nos esquecemos de ser
jardineiros. Pretendemos ser os donos e, com nosso egoísmo e
prepotência, usufruímos e destruímos o jardim belo e viçoso que Deus
criou por amor. Onde nós impedimos a vida de brotar e florir, onde
calamos a vida, agora estamos ouvindo os clamores de agonia da natureza.
A natureza clama através de catástrofes e desequilíbrios que são sinais
visíveis da perversidade do ser humano, que se esqueceu de ser o
jardineiro do universo. Os clamores que surgem fazem eco e se reproduzem
na 34ª Romaria da Terra que acontecerá dia 08 de março de 2011, no
assentamento Roça Nova, município de Candiota, Diocese de Bagé.”
Quem sabe o PAC Regional, idealizado em novembro passado, neste
mesmo lugar, como um instrumento de reforma agrária, assim reconhecido
pelo Incra, possa dar mais um sinal de que existe, sim, possibilidade de
uma nova economia, solidária, sustentável do ponto de vista social,
econômico, ecológico, efetivamente participativo.
Se não é “só de pão que vive o homem”, como Jesus Cristo ensina no
evangelho, as romarias da terra dão testemunho anual dessa outra
verdade: os sonhos de Sepé por uma “terra sem males”, onde “mane o leite
e corra o mel” pode substituir os maus tratos que a transformem em
terra de fel, a ponto de negarem alimento e vida para a maioria do povo.
Dia 8 de março relembra, igualmente, o dia internacional da mulher. O
leite dessa mãe e o mel da fêmea – terra, também ela mãe, não podem
mais ser negados às/os suas/seus filhas/os, em nome de um mercado anti
social e predatório que marcou o martírio coletivo de mulheres
trabalhadoras, não importando aqui se essa mesma data foi escolhida pelo
fato ter tido origem no massacre das trabalhadoras em 1857, ou em outro
ano e por outra razão.
O certo é que, como ocorreu com Sepé, elas também lutavam por
direitos tão evidentes que hoje são considerados simplesmente “humanos”.
A fé inspiradora dessa caminhada-romaria de todos os anos desafia o
lugar comum daquelas versões suspeitas do passado, capazes de desprezar,
hoje, causas econômico-sociais de opressão de gente e de terra, ainda
atuais, com a agravante de, agora, certas interpretações de lei cultural
e ideologicamente servis de preconceitos, lhes darem cobertura. Sepé,
do mesmo modo que Jesus Cristo e outros/as mártires, elas/es estão
ressuscitando nessas caminhadas, encarnados/as no corpo e na alma de
homens e mulheres conscientes de sua ascendência histórica e dignidade.
Como no tempo delas/es, sabem que a terra, inspiradora do lema da
romaria deste ano, é “esperança da vida”.
(*) Procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado, advogado popular e educador.
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