Escrito por Léo Lince no Correio da Cidadania | |
A morte, na sua condição de mistério profundo, transporta qualquer
cadáver para o território do sagrado. Não se trata, apenas, do
sentimento de familiares, entes queridos, adeptos, mas do espanto geral
diante do destino comum da condição humana. Todos haveremos de morrer e,
pelo menos para o santo de cada qual, ninguém é "qualquer um". Por isso
mesmo, tripudiar, comemorar, sapatear sobre os restos mortais até do
pior inimigo é uma atitude infamante.
Obama mandou matar Osama e, depois do anúncio oficial do sucesso da
empreitada, o espírito de vingança que habita o senso comum produziu
aquilo que Zuenir Ventura chamou de "celebrações com um toque de
necrofilia". Pegou muito mal. Tanto assim que houve uma mudança de eixo
na cobertura jornalística do segundo dia. A euforia laudatória começou a
ceder espaço para a cautela na avaliação do sentido e das múltiplas
implicações do acontecido. Onde se afirmavam certezas, agora proliferam
dúvidas.
Informações oriundas dos serviços secretos serão sempre interessadas e
duvidosas. Mas, para o caso, não se dispõe por enquanto de outras
fontes. Logo, tão cedo não se saberá o que realmente aconteceu, a não
ser o que já se sabe. Tropas especiais americanas, treinadas para fazer o
que fizeram, invadiram sem prévio aviso um país aliado, atacaram na
calada da noite a residência onde supostamente vivia o fundador da
Al-Qaeda.
Desarmado, ele foi morto e teve o seu corpo lançado em algum lugar do mar sem fim.
Local secreto para evitar romarias. Fotografias e filmes dizem ter
feito, mas não mostraram. O diretor da CIA, Leon Panetta, afirmou que
são imagens "horrendas", agridem sensibilidades, rosto "desfigurado" por
tiros de grosso calibre, peças potencialmente "incendiárias". Os
executores são sempre mais grosseiros do que os mandantes.
Retalhos de informações recolhidos nos jornais dão a entender que o
serviço secreto americano já conhecia, pelo menos deste o fim do ano
passado, a localização do mais procurado "inimigo da América". Os
militares aliados paquistaneses, que recebem dos americanos bilhões de
dólares para a "luta contra o terror", na certa, não podiam desconhecer
aquele confinamento entre quartéis. Podiam ter agido antes e de outra
forma. A escolha da data e o formato da operação espetacular, que
superou em mídia o casamento real e a beatificação do Papa Pop, talvez
encontrem explicação nos meandros trevosos da política interna
americana.
As primeiras pesquisas atestam o crescimento exponencial da popularidade
do postulante à reeleição. A oposição republicana ultra-reacionária que
antes acuava o presidente, cobrando dele provas de sua nacionalidade,
agora o elogia. O atestado de óbito de Osama substituiu com vantagem a
certidão de nascimento de Obama. A história política americana, tão
farta em armações e assassinatos, produz um novo giro. Nele, Osama e
Obama são, na verdade, agregados de projeções simbólicas que se acumulam
sobre o pêndulo enigmático da história.
Na grafia do nome, apenas uma letra os separa. Além da sonoridade comum,
carregam no restante da assinatura marcas de famílias estranhas ao
ocidente saxão. Barack Hussein e Bin Laden, nomes estrangeiros, são as
duas personalidades de maior destaque na história recente do Império
americano. Sobre o corpo agora estraçalhado de Bin Laden, o "eixo do
mal" foi construído. O estrangeiro como inimigo absoluto, que está em
toda parte e deve ser caçado sem dó nem piedade. O outro "estrangeiro",
aquele que teria vindo para redimir os pecados do Império, fornece
feição nova na qual se restaura o antes tão execrado "eixo do Bush".
Ao contrário do que se alardeia, a operação americana no Paquistão não
foi uma vitória contra terrorismo. Quando um Estado se concede licença
para matar, se vangloria do uso da tortura para obter resultados, viola a
legislação internacional, atropela a soberania alheia, sem dúvida,
pratica uma fieira de crimes que alimenta o ciclo do terror. A execução
sumária de inimigos, a profanação e o desaparecimento de cadáveres nunca
foram marcos positivos do processo civilizatório. É doloroso constatar,
mas o que aconteceu no Paquistão foi, por todos os títulos, um exemplo
modelar do pior e mais perigoso tipo de terrorismo: o terrorismo de
Estado.
Léo Lince é sociólogo.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sexta-feira, 6 de maio de 2011
A vitória do terror
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