quarta-feira, 20 de julho de 2011

Após seis meses, Primavera Árabe segue e sinaliza abertura política


Protestos continuam no Cairo. A imagem é do dia 8 de julho | Foto: Lilian Wagdy/Flickr

Felipe Prestes e Igor Natusch no Sul21

Quem esperava uma onda de mudanças no mundo árabe, após as revoltas populares do começo do ano, pode interpretar o atual momento como pouco animador. Afinal, apenas dois países – Egito e Tunísia – derrubaram governos autoritários e ainda buscam um novo modelo político. Enquanto isto, outros países vivem confrontos sangrentos, especialmente a Líbia, com uma guerra civil que não dá sinais de solução. Pouco mais de seis meses depois da queda do ditador tunisiano Zine al-Abidine Ben Ali, ocorrida em 14 de janeiro, a “Primavera Árabe” pode não render manchetes como antes, mas ainda está longe de seu fim. Até o momento, a realidade indica um movimento em direção à democracia – embora não seja a democracia que nossos olhos ocidentais estão acostumados a ver.

– Qual é a situação de cada país árabe após os protestos populares

Antônio Jorge Ramalho da Rocha, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), identifica no mundo árabe sinais que apontam para uma flexibilização dos regimes, algo que vai além de Egito e Tunísia. “Não diria democratização, porque a palavra tem uma conotação inadequada no caso, mas vejo uma tendência a um grau menor de autoritarismo e uma comunicação maior entre governantes e governados”, avalia. Governos de países como Marrocos, Argélia e Iêmen, cientes de que não poderão se manter na base da força, sinalizam com a abertura gradativa e parcial. “Parece haver uma compreensão de que é preciso fazer concessões, de forma que a insatisfação da população não se avolume ainda mais. Com a maior circulação de informações, amplia-se o acesso do povo a instrumentos de pressão”, afirma.
O professor Renatho Costa, da Unipampa, concorda com essa leitura, mas faz ressalvas. Segundo ele, as particularidades de cada país indicam diferentes pressões internas. “Alguns países podem fazer concessões, mas o autoritarismo está na base de alguns regimes. O vício autoritário pode ser retomado se determinados reis ou ditadores sentirem-se ameaçados”. Mas o professor admite que a mudança de panorama é perceptível. “Há uma mudança na percepção do poder da população”, diz. “Para permanecer no poder, os governos estão entendendo que precisam negociar. Mesmo que alguns países façam uma repressão mais dura, há uma inclinação geral pela adoção de reformas”.
O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Maurício Santoro, diz que as revoltas que obtiveram êxito ocorreram em países mais homogêneos, sem grandes tensões étnicas, tribais ou religiosas. São os casos de Egito, Tunísia e também do Marrocos, onde o rei Mohammed VI promoveu abertura significativa de seu regime. Em outros países, ditadores conseguiram utilizar divisões para obter o apoio de parte da população. “Nos países mais fragmentados ditadores conseguem explorar as diferenças para se manter no poder”, afirma.
O que Santoro diz é flagrante na Líbia e no Iêmen, onde há fortes divisões tribais, e na Síria em que uma minoria étnico-religiosa, os alauítas, detém o poder político diante de uma população majoritariamente sunita. Nestes países, os governos autoritários têm conseguido reagir, mas, segundo Santoro, na Síria e na Iêmen a tendência também é de maior abertura. “No Iêmen há uma negociação avançada que pode culminar com a renúncia de Ali Abdullah Saleh. Na Síria, não está claro se Bashar al-Assad conseguirá se manter no poder, mas se conseguir será de forma negociada”.
Foto: Al Jazeera English/Flickr
Segundo especialistas, conflito na Líbia não tem hora para acabar. "Emprego da força mostrou-se um erro", diz Antônio da Rocha, da UnB | Foto: Al Jazeera English/Flickr

Líbia: conflito não deve ter solução tão cedo

No momento, a Líbia é o campo de batalha onde a marca ocidental se faz mais presente. Desde março, tropas internacionais sob comando da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) bombardeiam o país e tentam garantir a saída de Muammar Kadafi do poder. No entanto, o conflito se arrasta, e o ditador líbio não parece dar sinais de que vá desistir – ainda que o governo dos Estados Unidos já tenha reconhecido oficialmente a autoridade rebelde como legítima governante da Líbia.
Para Antônio Jorge Ramalho da Rocha, da UnB, o conflito na Líbia seguirá se arrastando por muito tempo. “O emprego da força mostrou-se um erro, ainda mais nos termos colocados pela resolução da ONU. Acabou fortalecendo Kadafi junto a seus acólitos, já que agora ele pode se enrolar na bandeira nacional e se colocar como alguém que resiste a um invasor externo”, argumenta. “Era uma situação complexa, já que parecia claro que Kadafi usaria força contra o próprio povo. O dilema era se omitir, deixando os rebeldes à própria sorte, ou agir, o que também traria consequências. Mas alguns países (do ocidente) foram contrários desde o início à intervenção, e a ação da OTAN não produziu resultados”.
“A Líbia ainda é uma carta aberta”, diz Renatho Costa, da Unipampa. O especialista detecta não apenas um confronto em aberto pelo poder líbio, mas uma luta das forças ocidentais por uma influência maior na região. “Kadafi não tem mais condições de permanecer, não é mais líder nacional. As batalhas já estão fora deste tabuleiro”, sustenta. Como exemplo, o professor cita a decisão da Rússia de não aceitar o Conselho Nacional de Transição, instituído pelos rebeldes, como legítimo governo da Líbia – decisão que foi anunciada recentemente pelos EUA. “Apoiar o governo paralelo, na prática, é alinhar-se com os Estados Unidos”, observa.
Maurício Santoro concorda. “O impasse não deve se resolver em pouco tempo. A intervenção não demonstrou força nem para impelir Kadafi a uma negociação”, diz. O professor da FGV ressalta que as potências envolvidas com a intervenção tem hoje preocupações internas muito maiores, com a crise econômica que abala Europa e Estados Unidos, o que certamente prejudica a luta contra o regime líbio.

Egito e Tunísia terão eleições no final do ano, mas seguem instáveis

Egito e Tunísia mantêm governos provisórios até o final do ano. O Egito, maior país árabe, terá eleições para uma assembleia constituinte em novembro. Na Tunísia, o mesmo pleito ocorrerá em outubro. Caberá a estas assembleias definir o sistema político e eleitoral para que a população escolha um novo governo. Enquanto isto não ocorre, os protestos continuam.
No Egito, manifestantes pedem a saída de todo e qualquer integrante do governo que tenha participado do regime do ditador Hosni Mubarak. Além disto, há uma preocupação crescente com a influência que o exército egípcio terá sobre o novo governo. São as Forças Armadas que estão à frente do governo provisório. Maurício Santoro acredita que os militares não tentarão manter o poder político e realizarão as eleições, mas explica que, de qualquer forma, continuarão com muito poder. “O exército parece comprometido com eleições, mas deve manter o seu poder, mesmo com uma ordem democrática. As Forças Armadas no Egito controlam várias empresas, têm muito poder econômico”, destaca.
A Praça Tahrir continua rugindo no Cairo. A imagem é de protesto no último dia 15 | Foto: Lilian Wagdy/Flickr

Tentando acalmar os ânimos, o regime de transição promoveu nesta terça-feira (19) mudanças em mais de 15 ministérios – mantendo, porém, nomes da velha guarda, como o ministro do Interior, Mansour Essawy, ligado ao regime de Mubarak. A indefinição política se reflete na economia, bastante desestabilizada. Não à toa, o ministro das Finanças foi um dos que teve sua cabeça cortada. O governo provisório tem distribuído alimentos aos egípcios.
Na Tunísia, a situação não é diferente. Já em fevereiro, a população tratou de correr o primeiro-ministro interino Mohammed Ghannouchi por ele ter sido tradicional aliado do ditador Ben Ali. Mudanças nos ministérios também têm sido recorrentes. O atual premiê, Beji Caid Essebsi, tem demonstrado preocupação ainda com os conflitos nas ruas, porque teme pela segurança na realização das eleições em outubro. Na segunda (18), um garoto de 14 anos foi morto por uma bala perdida disparada por forças de segurança, durante um protesto em uma pequena cidade próxima a Sidi Bouzid.
Não por acaso foi em Sidi Bouzid, cidade no centro do país, que tudo começou, em dezembro de 2010, quando um jovem desempregado ateou fogo ao próprio corpo. A Tunísia tem um nível de vida razoável se comparado aos demais países do Norte da África, mas sofre com uma crise econômica e com uma desigualdade entre o litoral e o interior do país. É no interior que vive a maioria dos 700 mil tunisianos desempregados, número extremamente significativo para uma população economicamente ativa de apenas três milhões de pessoas.
rachid ghannouchi
Rachid Ghannouchi, ao centro, lidera partido islâmico que quer conjugar na Tunísia religião e democracia, aos moldes da Turquia | Foto: Magharebia/Al Jazeera

Democracia com islamismo: Turquia pode servir de modelo

Na Tunísia, os conflitos também ocorrem entre intelectuais que defendem o estado laico e extremistas islâmicos. Estes últimos vêm ganhando terreno nas ruas desde a queda de Ben Ali, mão não se vêem contemplados no atual governo provisório. Jovens islâmicos já atacaram diversas delegacias de polícia nos últimos dias. Um exemplo ilustrativo dos conflitos ocorreu no final do mês de junho. Na capital do país, Túnis, ativistas religiosos quebraram os vidros de um cinema que passava o filme “Nem Alá, nem o Mestre”, em defesa do estado laico, e entraram em conflito com um grupo de advogados. Os islâmicos acabaram sendo presos.
Apesar disto, o partido político tido como o mais forte na Tunísia é o Al-Nahda (Partido do Renascimento, em português), que no mês de junho se retirou das conversas sobre a transição, acusando outros partidos de abuso de poder. O líder do partido, Rachid Ghannouchi, retornou ao país apenas 15 dias depois da queda de Ben Ali, após 20 anos de exílio. Em entrevista recente ao El Pais, Ghannouchi afirmou que é contra o extremismo, e que sonha em “conjugar islamismo com modernidade”. Quer a religião na Constituição, mas com igualdade entre gêneros, por exemplo. E cita como paradigma a Turquia, governada desde 2003 pelo partido Justiça e Desenvolvimento.
Para Maurício Santoro, o governo da Turquia deve balizar os novos regimes democráticos entre os países muçulmanos. “O que está se desenhando é um tipo de Estado onde a religião não domina a sociedade, mas tem papel importante na definição das leis, dos costumes e sobre os partidos políticos. A Turquia mostra que é possível ter um partido como este no poder, convivendo com liberdades democráticas”, avalia. O professor de Relações Internacionais ressalta, contudo, que isto não livrará estes países de tensões entre as liberdades individuais e a religião islâmica, tensões que ocorrem na própria Turquia.
Fotos de Gamal Abdul Nasser, Che Guevara e Osama Bin Laden são vendidas na Praça Tahrir | Foto: Lilian Wagdy/Flickr

Santoro vê mais força do islamismo na Tunísia que no Egito. Ele afirma que a Irmandade Muçulmana tem se fragmentado desde a revolta, principalmente porque os jovens do movimento não têm seguido à risca os ditames de seus líderes. Além disto, ressalta que a interferência religiosa na política sempre foi limitada por leis no Egito e que há uma minoria cristã que não pode ser desprezada. Ele lamenta que as eleições sejam realizadas em um prazo exíguo para a formação de novas organizações. “O prazo prejudica a participação do elemento mais inovador da revolução, que foram os jovens”.
Renatho Costa, da Unipampa, acredita que ocorre disputa de influência entre autoridades islâmicas e forças ligadas ao Ocidente. Ele acredita que o modelo que for adotado especialmente pelo Egito poderá servir como base para outros países árabes e ter grande influência sobre a região. “(Egito e Tunísia) são dois palcos onde se disputa pelo futuro de todo o Oriente Médio. O modelo que prevalecer ali vai ter amplas possibilidades de ditar regras políticas para todo o mundo árabe. Se a influência islâmica prevalecer nesses dois palcos, em especial no Egito, isso certamente provocará uma grande mudança geopolítica em toda a região”, prevê.
De qualquer modo, o panorama que surge aos poucos no mundo árabe aponta para algo novo, que vai além da visão ocidental sobre a região. Renatho, que recentemente passou dois meses no Irã, exemplifica com o que ouviu em conversa com aiatolás locais. “Discuti com alguns deles sobre as perspectivas que viam a partir das mudanças no Egito”, conta, “e eles se manifestaram de forma muito positiva. Para eles, o país pode passar por um processo semelhante (ao do Irã), integrando-se em uma comunidade islâmica. É uma visão diferente da nossa, que não tem o nosso olhar de integração pela ocidentalização”.

Nenhum comentário: