Os argumentos políticos e ideológicos são apenas pretexto para os que
pretendem destruir a educação pública e gratuita para todos: eles
correm atrás é de lucro. A matriz é estadunidense, mas o movimento é
global e encontra forte apoio na mídia corporativa, já que grandes
empresas do ramo também oferecem “serviços educacionais”. O lobby dos
empresários do ramo conven$e à esquerda e à direita. Culpar os
professores pela falência sistêmica abre espaço para a venda dos testes
padronizados, das apostilas de apoio didático, de vagas e de outras
invencionices que rendem bilhões de dólares e reais.
Por isso traduzimos o artigo a seguir, do New York Review of Books: é um mapa do que já está acontecendo ou pode vir a acontecer no Brasil.
A deseducação de Mitt Romney
por Diane Ravitch, no NYRB
Em 23 de maio a campanha [do pré-candidato republicano à Casa Branca
Mitt] Romney divulgou o programa de educação do candidato intitulado
“Uma oportunidade para toda criança: o plano de Mitt Romney para
restaurar o futuro da educação estadunidense”. Se você gostou das
reformas educacionais do governo George W. Bush, você vai amar o plano
de Romney. Se você acha que entregar as escolas para o setor privado vai
resolver o problema, o plano vai deixá-lo entusiasmado.
Os temas centrais do plano Romney são um requentado das ideias
republicanas para a educação dos últimos trinta anos, ou seja, subsidiar
os pais que querem mandar suas crianças para escolas privadas ou
religiosas, encorajar o setor privado a operar escolas, colocar os
bancos privados no controle de programas de financiamento de bolsas de
estudos, cobrar de professores e escolas os resultados de exames obtidos
por alunos e reduzir as exigências para a admissão de novos
professores.
Estas políticas refletem a experiência dos assessores de Romney,
dentre os quais há uma dúzia de ex-integrantes do governo Bush e vários
acadêmicos conservadores, entre eles o ex-ministro da Educação Rod
Paige, o ex-subsecretário de Educação Bill Hansen e os militantes pelo
direito de escolha dos pais, John Chubb e Paul Peterson.
Ao contrário de George W. Bush, que negociou com um Congresso
controlado pelos democratas para aprovar o [programa de educação]
“Nenhuma Criança Deixada para Trás”, Romney não faz acordo com ninguém.
Ele precisa provar à base do Partido Republicano — especialmente a
evangélica — que é realmente conservador. E este plano é o seu “missão
cumprida” [referência à anedótica "Missão Cumprida" de Bush, que
celebrou a vitória no Iraque antes da insurgência que devastou o país].
Romney dá apoio total ao uso do dinheiro do contribuinte para pagar
bolsas de estudos em escolas privadas [vouchers], às escolas gerenciadas
pela iniciativa privada e às escolas online que buscam lucro, além de
qualquer outra alternativa às escolas públicas. Como Bob Dole [candidato
republicano] em 1996, Romney demonstra desprezo pelos sindicatos de
professores. Ele assume posição firme contra a certificação de
professores — as exigências mínimas de que futuros professores devem
passar por exames estaduais ou nacional para demonstrar seu conhecimento
–, alegando se tratar de uma barreira desnecessária. Ele acredita que o
número de alunos por sala de aula não importa (embora ele e os filhos
dele tenham frequentado escolas privadas de elite, onde as classes são
pequenas). Romney alega que “escolha” na educação é “o direito civil de
nossa era”, um tema familiar entre os reformistas da educação de hoje,
que usam a ideia para fazer avançar suas tentativas de privatizar a
educação pública.
Quando se trata de universidades, Romney ataca Obama pelo aumento nos
custos da educação superior. Ele alega que ajuda federal leva ao
aumento das anuidades, por isso não pretende dar financiamento aos
estudantes endividados. O plano não menciona que as anuidades aumentaram
também em universidades públicas (onde estudam 3/4 de todos os
estudantes), já que os estados reduziram seus orçamentos para educação
superior e transferiram o peso de pagar dos contribuintes para os
estudantes.
Romney pretende encorajar o envolvimento do setor privado na educação
superior ao dar a bancos privados o papel de intermediários nos
empréstimos federais para a educação, o que Obama eliminou em 2010, por
ser custoso. (Até 2010, os bancos recebiam subsídios do governo federal
para fazer empréstimos a estudantes, mas o governo assumia todos os
riscos da inadimplência. Quando o programa foi reformado pelo governo
Obama, bilhões de dólares em lucro dos bancos foram redirecionados para
dar bolsas a estudantes necessitados). Para cortar custos, Romney
encoraja a proliferação de universidades privadas online.
O plano de educação de Romney diz que nenhum dinheiro novo será
necessário, já que gastar mais com as escolas não resolve os problemas
da educação. No entanto, ele propõe o uso de dinheiro público para
promover suas prioridades, como bolsas em escolas privadas, escolas
gerenciadas privadamente e escolas online. Ele também quer usar dinheiro
federal para recompensar estados que “eliminarem ou reformarem a
estabilidade de emprego dos professores, com foco no avanço dos
estudantes”. Traduzido, isso significa que Romney se dispõe a dar
dinheiro federal aos estados que eliminarem os direitos dos professores e
se eles pagarem mais aos professores cujos estudantes tiverem
resultados melhores em testes-padrão, demitindo os professores cujos
alunos não conseguirem isso.
Ao defender as bolsas — nas quais o governo financia o pagamento das
mensalidades em qualquer escola privada ou religiosa escolhida pelos
pais — Romney exagera os dados; algumas de suas afirmações são
simplesmente falsas. O plano de Romney diz que o programa de bolsas do
Distrito de Columbia [onde fica Washington, a capital dos Estados
Unidos], que começou em 2004, o primeiro a usar dinheiro federal para
subsidiar escolas privadas, é “um modelo para a nação”. Afirma que
“depois de três meses, os estudantes podiam ler em níveis que só seriam
atingidos 19 meses depois por alunos de escolas públicas”.
É simplesmente falso. Uma avaliação do programa requisitada pelo
Congresso descobriu que os estudantes que receberam as bolsas não
tiveram ganhos de leitura ou matemática. Como disse o relatório final,
“não há provas de que o OSP [Programa de Bolsas Oportunidade] tenha
afetado as conquistas dos estudantes”. Romney alega que 90% dos
estudantes que receberam bolsas em escolas privadas se formaram no
ensino médio, comparado com 55% nas escolas de baixo rendimento do
Distrito de Columbia. Mas é exagero. A avaliação federal disse que 82%
dos que receberam bolsas se formaram, contra 70% entre os estudantes que
pediram bolsas mas não conseguiram. É um ganho respeitável, mas nem de
perto chega aos números citados por Romney. Como estudantes que disputam
as bolsas tendem a ser mais motivados que os que não disputam, os
cientistas sociais geralmente comparam o resultado final entre os que
conquistaram as bolsas e os que ficaram de fora.
Paradoxalmente, a campanha de Romney assume crédito pelo fato de que
[o estado de] Massachussets lidera a nação nos testes federais de
leitura e matemática conhecidos como National Assessment of Educational
Progress.
Mas Romney não foi o responsável pelo sucesso acadêmico do estado,
que se deve a reformas completamente diferentes das que ele agora propõe
para o país.
A reforma no estado se tornou lei pelo menos uma década antes de Romney começar seu mandato de governador, em 2003.
O Ato de Reforma de Educação de Massachusetts envolveu o compromisso
do estado de dobrar o financiamento da educação de 1,3 bilhão de dólares
em 1993 para 2,6 bilhões em 2000; o compromisso de financiamento mínimo
para todo distrito escolar, de acordo com suas necessidades básicas; o
desenvolvimento de um forte currículo de Ciências, Artes, Língua
Estrangeira, Matemática e Inglês; a implementação de um programa de
testes baseado no currículo completo (por causa do custo, o estado
testava apenas para leitura e matemática); a expansão do desenvolvimento
profissional dos professores; e o teste de futuros professores. No fim
dos anos 90, antes que Romney assumisse o governo, o estado aumentou o
financiamento para as crianças em idade pré-escolar.
O plano de Romney, em contraste, é animado pela reverência ao setor
privado. Embora fale pouco sobre a melhoria ou o investimento em
educação pública, que é tratada como instituição falida, um grande
entusiasmo é dedicado à inovação e ao progresso que supostamente ocorrem
quando pais usam dinheiro público federal para colocar os filhos em
instituições privadas ou em escolas privadas online. Massachusetts
conseguiu sucesso ao melhorar o padrão de exigência para novos
professores, não ao reduzí-lo. Massachusetts não eliminou a estabilidade
dos professores, ou seja, o direito que os professores experientes têm
de serem ouvidos antes da demissão.
A educação superior, garante Romney, vai florescer quando “inovação e
novas aptidões” forem mais importantes que “tempo em sala-de-aula”. Em
português simples, a última sentença significa que a educação superior
se tornará mais acessível quando estudantes se matricularem em escolas
online, muitas das quais visam lucro e custam barato. Naturalmente que
as universidades online são mais baratas; não envolvem custos de
capital, bibliotecas, prédios e o pessoal é mínimo. Algumas estão sendo
investigadas por fraude nos métodos usados para recrutar alunos; elas
evitam regulamentação federal com um alto investimento (bipartidário) em
lobby.
A primeira resposta do governo Obama às propostas de Romney foi dizer
que as políticas de Obama para o ensino médio têm o apoio entusiástico
de conservadores proeminentes como os governadores republicanos Chris
Christie de Nova Jersey e Susana Martinez do Novo México. Infelizmente, é
a verdade. Tirando a oferta de bolsas para escolas privadas e a redução
da certificação de professores, o programa “Corrida ao Topo” de Obama
promove virtualmente tudo o que Romney propõe — gerenciamento privado,
competição, avaliação de professores baseada nos resultados de testes
dos alunos. O ministro da Educação de Obama, Arne Duncan, tem defendido
as escolas gerenciadas privadamente e a cobrança a partir de resultados
de testes tanto quanto Mitt Romney. E, como Romney, Duncan despreza a
ideia de que é preciso reduzir o número de estudantes por professor.
A proposta de Romney de dar bolsas em escolas privadas usando
dinheiro federal é carne crua para a base direitista do Partido
Republicano, especialmente os evangélicos. As bolsas são vendidas como o
terceiro trilho da educação desde que foram propostas por Milton
Friedman, em 1955; foram colocadas sob votação em vários referendos
estaduais e foram rejeitadas consistentemente. De forma geral, o público
não quer ver dinheiro público usado para promover escolas religiosas. E
várias escolas religiosas não querem dinheiro público, que vem ligado a
vários exigências federais. Mas nos últimos anos as bolsas foram
reanimadas por legisladores estaduais de Indiana, Wisconsin e Louisiana,
sem passar pelos eleitores.
Os resultados não são nada animadores. Em Louisiana, onde a reforma
da educação do governador Bobby Jindal foi aprovada em abril, a nova lei
declara que os estudantes de escolas com baixa performance nos
testes-padrão podem transferir o dinheiro do financiamento público que
recebem para qualquer escola privada ou religiosa pré-aprovada. Cerca de
400 mil estudantes (mais da metade do total) podem competir, mas há
apenas 5 mil vagas nas escolas privadas ou paroquiais do estado. Quando o
estado divulgou a lista de escolas, a que se propôs a receber o maior
número de estudantes bolsistas foi a New Living Word School, que
ofereceu 315 vagas. Hoje ela tem um total de 122 vagas, mas não dispõe
de instalações ou professores para os futuros estudantes, embora prometa
construir um novo prédio antes do início do ano escolar. A maior parte
das aulas na escola é dada através de DVDs.
Outra escola, a Academia da Eternidade Cristã, que atualmente tem 14
estudantes, concordou em receber 135 bolsistas. De acordo com um artigo
recente da agência de notícias Reuters, os estudantes da escola ficam a
maior parte do dia sentados em cubículos e trabalham com livros
didáticos cristãos, um deles, de Ciência para iniciantes, com um texto
que explica “as coisas que Deus fez” em cada um dos seis dias de
criação. As crianças não aprendem sobre a teoria da evolução.
O pastor-diretor explicou: “Tentamos ficar longe de todas as coisas
que confundem nossas crianças”. Outras escolas aprovadas para receber
estudantes bolsistas, pagas com dinheiro público, “usam textos de
estudos sociais que advertem contra liberais que ameaçam a prosperidade
global [por acreditarem na teoria do aquecimento global]; livros de
matemática baseados na Bíblia que não tratam de conceitos modernos; e
textos de biologia construídos em torno de negar a teoria da evolução”.
O repórter da Reuters descreveu a lei de Louisiana como “o mais
ousado experimento nacional para privatizar a educação pública, com o
estado preparado para transferir milhões de dólares em dinheiro do
contribuinte para pagar à indústria privada, empresários e pastores para
educar crianças”. No ano que vem, todos os estudantes de Louisiana
poderão disputar bolsas para fazer cursos com empresas privadas ou
corporações que ofereçam ensino ou treinamento. Podem esperar por um
boom nos negócios da educação no estado.
O que o governador Jindal está fazendo soa como uma ensaio do plano
Romney. Sem dinheiro novo no orçamento, todo o dinheiro para bolsas e
empresas privadas e escolas online será deduzido do orçamento estadual
das escolas públicas. O governador Jindal e Mitt Romney deveriam
explicar como a educação vai melhorar nos Estados Unidos se o dinheiro
público for usado para mandar estudantes para escolas sectárias ou
pagando cursos em empresas privadas ou online. Pela visão apresentada
por Romney, dinheiro público vai ser usado em escolas que ensinam
criacionismo. Qualquer um poderá ensinar, sem passar por testes de
conhecimento e habilidade e sem preparo profissional. Professores
poderão ser demitidos por qualquer razão, sem a proteção garantida pela
liberdade para ensinar. Em alguns estados ou regiões, professores vão
temer dar aulas sobre a teoria da evolução, o aquecimento global ou
questões controversas. Nem vão ousar ensinar sobre livros considerados
ofensivos por qualquer um na comunidade, como Huckleberry Finn.
O candidato Romney deveria explicar como a privatização da forma como
educamos nossas crianças vai nos fazer atingir o objetivo de “restaurar
a promessa da educação norte-americana”. “Restaurar” sugere uma volta
ao passado. Quando na história dos Estados Unidos as escolas foram
colocadas a serviço do lucro? Que estado permitiu isso antes do advento
das escolas gerenciadas privadamente e das corporações da educação
online? Qual dos fundadores do país foi contra a educação pública? John
Adams, aquele encardido conservador, disse: “Todo o povo deve assumir a
educação de todo o povo e deve arcar com os custos disso. Não deve
existir um só distrito de um quilômetro quadrado sem uma escola, não
financiada pela caridade individual, mas mantida às expensas de todos”.
Restaurar a promessa da educação norte-americana deveria significar o
rejuvenescimento das escolas públicas, não a destruição delas.
Um comentário:
A patetice sempre esteve com a esquerda clássica que achava que riqueza da nação viria pela educação e o voto de valor era por consciência. A moderna aprendeu os óbvios: ignorância produz tanta riqueza tanto quanto (o Brasil já é mais rico do a Inglaterra) e o que leva ao poder é quantidade de votos, não importa se para tanto vai ter arranjar um mensalão ou uma ONG para onde chutar uma boa quantidade de recursos públicos.
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