Os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e
Dilma Rousseff não tomaram uma decisão meramente conjuntural. O ingresso
da Venezuela no Mercosul sinaliza para um processo pedagógico
inequívoco em favor do aprofundamento do conceito de democracia na
América Latina.
Gilson Caroni Filho no VIOMUNDO
Ao decidir suspender o Paraguai e incorporar a Venezuela como membro
pleno do Mercosul, Brasil e Argentina sinalizaram para o aprofundamento
do conceito de democracia na América Latina. Uma decisão que nos
compromete no fluxo da vida, pela responsabilidade que criamos em
relação a novas possibilidades de presente e futuro.
Os donos de colunas fixas na grande imprensa costumavam – e ainda
costumam – invocar o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998, pelo
Mercado Comum do Sul e por seus países associados, que define o regime
democrático como condição indispensável para a existência e para o
desenvolvimento dos processos de integração. A isso supostamente se
aferravam – e ainda se aferram – para protelar a aprovação da Venezuela
como membro pleno do bloco.
Usam o argumento de que o “impeachment” de Lugo foi executado dentro
das normas legais previstas na Constituição paraguaia, esquecendo-se o
que todos sabem: nem sempre legalidade é sinônimo de licitude. O mundo
jurídico é especialista em romper com o espírito da lei dentro da letra
da lei.
Não houve tempo para o exercício da defesa. O golpe ruralista foi
perpetrado e calculado num tempo que impedisse qualquer articulação
nacional em defesa do governo democraticamente constituído.
O mesmo vale para o suposto déficit democrático da Venezuela. Nunca é
demais lembrar que Hugo Chávez chegou à presidência numa eleição, em
1998, em que obteve 56,2% dos votos. Dois anos depois resistiu a uma
tentativa de golpe de Estado orquestrada pelas velhas oligarquias em
conluio com o baronato midiático.
Em 2004, venceu o referendo revogatório da oposição para, dois anos
depois, renovar seu mandato presidencial com quase 60% dos votos. Em
2008, o secretário geral da OEA (Organização dos Estados Americanos),
José Miguel Insulza, não poupou elogios ao processo democrático
venezuelano ao se referir às eleições regionais.
Na ocasião, Insulza parabenizou o governo da Venezuela pela “situação
de normalidade” e destacou a participação maciça da população no
pleito.
Destacou também o comportamento dos partidos e agradeceu pelos
“tempos de paz e tranquilidade”. Em que país os cidadãos participaram
mais ativamente de processos decisórios que os 16 milhões de eleitores
venezuelanos?
É chegada a hora de os historiadores e os bons jornalistas cumprirem o
seu papel em um continente marcado por uma institucionalidade
construída por estruturas de dependência entre as oligarquias e os
interesses do imperialismo. Comparar o que éramos com o que somos é
imperativo.
É fundamental que nós, latino-americanos, nos reconheçamos nas
culturas e histórias que moldaram o mundo como o temos, vemos e vivemos
hoje. Precisamos confrontar os que – detendo o monopólio da narrativa –
impedem o diálogo tão necessário entre sociedades, tempos, histórias,
gerações e sujeitos, para continuarmos lutando por um mundo justo e
democrático.
Nessa tensão dialética, a vida e seus atores são mobilizados por
forças centrípetas e centrífugas, por meio, principalmente, de discursos
que se reproduzem no cotidiano social. No sentido dessas forças,
refletindo sobre o momento histórico, os presidentes José Mujica,
Cristina Kirchner e Dilma Roussef não tomaram uma decisão meramente
conjuntural. O ingresso da Venezuela no Mercosul sinaliza para um
processo pedagógico inequívoco.
A luta pela hegemonia só é eficaz quando governar é educar para a mudança, desfazendo nós semânticos sobre golpes e democracia.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro
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